Como um rapaz solitário da Califórnia conseguiu superar momentos sombrios e inseguranças para se tornar o nome mais elogiado do hip-hop
Josh Eelis | Tradução: Ana Ban Publicado em 16/04/2015, às 14h25 - Atualizado em 08/06/2015, às 18h31
Em uma manhã chuvosa de domingo na cidade de Compton, sob um céu cinza que não é típico da Califórnia, uma SUV Mercedes preta, com muitos detalhes cromados, entra no estacionamento de uma hamburgueria. Ao volante está Kendrick Lamar, de 27 anos, provavelmente o rapper mais talentoso desta geração. Há meia dúzia de sujeitos do bairro esperando para falar com ele: L, Turtle, G-Weed. “Eu fui criado com todos esses caras”, Lamar diz. O artista aponta com a cabeça para Mingo, um garoto doce que é mais ou menos do tamanho do carrão em que ele chegou: “Eu não preciso contratar um guarda-costas. Olha só o porte dele!”
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A hamburgueria Tam’s fica na esquina das ruas Rosecrans e Central, um ponto conhecido que recentemente ganhou má fama quando Suge Knight supostamente atropelou dois homens no local, matando um deles. “O sujeito morreu aqui mesmo”, G-Weed diz, enquanto aponta para uma mancha escura no asfalto. “Aquela câmera de vigilância pegou tudo. Estão reunindo provas.”
Lamar passou a infância a apenas seis quarteirões dali. “Na verdade, aqui foi onde vi meu segundo assassinato”, ele revela. “Tinha 8 anos, estava voltando da escola para casa a pé. O homem estava no drive-thru pedindo comida e o sujeito veio correndo, bum, bum – apagou o cara.” O primeiro assassinato ele testemunhou quando tinha 5 anos: um traficante adolescente foi morto na frente do prédio onde Lamar morava. “Depois disso, você simplesmente fica insensível”, ele constata.
É quase meio-dia, mas o domingo de Lamar está apenas começando – ele passou a noite toda no estúdio. A roupa dele é relaxada – casaco de moletom com capuz, calça de moletom cor de vinho e meias brancas com tênis sem cadarço –, mas reconhecível a ponto de uma senhora que está na fila fazer uma piada ao reclamar do calor. “Pessoal, vocês precisam ligar o ar-condicionado”, ela diz para o gerente. “Kendrick Lamar está aqui!”
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Lamar ganhou dois prêmios Grammy, recebeu disco de platina por seu segundo álbum (good kid, m.A.A.d. City, de 2012, que teve produção executiva de Dr. Dre) e tem fãs que vão de Kanye West a Taylor Swift. Mas, aqui no Tam’s, ele também é Kendrick Duckworth, filho de Paula e Kenny. Dentro da hamburgueria, uma mulher de meia-idade que acaba de sair da igreja se aproxima e dá um abraço nele, e ele paga o almoço para uma senhora que, segundo explica, é uma viciada em crack inofensiva.
Com good kid, m.A.A.d City, Lamar fez nome contando histórias deste bairro, aludindo de modo vívido a um lugar específico (este mesmo trecho da rua Rosecrans) e a uma época específica (o verão de 2004, entre o 1º e o 2º ano do ensino médio). Foi um álbum conceitual a respeito da adolescência, narrado com precisão cinematográfica através dos olhos de uma pessoa jovem o bastante para se lembrar de cada detalhe.
Os pais de Lamar se mudaram para cá, vindos de Chicago, em 1984, três anos antes do menino nascer. O pai dele, Kenny Duckworth, era conhecido por andar com uma gangue chamada Gangster Disciples, então a mãe dele, Paula Oliver, deu um ultimato. “Ela disse: ‘Não posso transar com você se não melhorar’”, Lamar conta. “‘Não podemos ficar na rua para sempre.’” Eles enfiaram todas as roupas que tinham em dois sacos de lixo e embarcaram em um trem para a Califórnia com US$ 500 no bolso. Nos primeiros anos, dormiam no carro, em hoteizinhos baratos ou no parque, quando fazia calor. “Me tiveram quando economizaram dinheiro suficiente para o primeiro apartamento.”
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O ofício de rapper passou longe de ser uma vocação precoce para Lamar. Até o final do ensino fundamental, ele era gago. “Eram só algumas palavras”, pondera. “Aparecia quando eu ficava animado demais ou quando me metia em confusão.” Ele adorava basquete – era baixo, porém rápido – e sonhava em chegar à NBA. Mas, na 7ª série, um professor chamado Mr. Inge fez com que ele se interessasse por poesia – rimas, metáforas, frases de sentido duplo – e Lamar se apaixonou. “Dava para colocar todos os meus sentimentos em uma folha de papel, e tinha sentido”, ele relembra. “Eu gostei disso.”
O rapaz começou a escrever sem parar. “A gente ficava imaginando o que ele fazia com todo aquele papel”, afirma o pai dele. “Eu achava que estava fazendo lição de casa! Não sabia que ele estava escrevendo letras.” Ótimo aluno, Lamar flertou com o plano de fazer faculdade. “Eu poderia ter feito. Deveria ter feito.” Talvez ainda faça: “É uma ideia que sempre está no fundo da minha mente. Não é tarde demais”. Mas, quando foi para o ensino médio, começou a andar com uma turma barra-pesada. É o pessoal sobre quem ele canta em good kid, m.A.A.d City – os garotos que roubavam, que arrombavam casas, que fugiam da polícia.
Segundo Lamar, durante a adolescência, a maior parte das “interações” dele com representantes da lei foi negativa. Ele conta que já teve revólveres de policiais apontados para si em duas ocasiões. A primeira foi aos 17 anos, quando andava de carro com um amigo chamado Moose em Compton. Um tira avistou o Camaro verde-berrante no qual os dois estavam e mandou encostar. Como Moose demorou para achar a carteira de motorista, o policial sacou a arma. “Ele literalmente encostou o cano na cabeça do meu amigo”, Lamar conta. “Eu me lembro de sair em silêncio, me sentindo violentado, e Moose tão irritado que uma lágrima escorreu do olho dele.” A história relativa à segunda vez é mais turva: Lamar se recusa a revelar o que ele e os amigos estavam aprontando, só diz que um policial sacou a arma e todos saíram correndo. “A gente estava errado”, ele confessa. “Mas era só um monte de moleques. Não vale a pena apontar a arma assim. Principalmente quando a gente estava fugindo.”
Lamar cresceu rodeado por gangues, mas seguiu outra rota; ele diz ter aprendido desde cedo que a mudança vem de dentro. “Minha mãe sempre me falou: ‘Quanto tempo você vai ficar se fazendo de vítima?’”, ele relata. “Posso dizer que estou bravo e odeio tudo, mas nada muda de verdade até que eu mude. Não importa quanta merda nossa comunidade encare, sou forte o bastante para mandar tudo se foder e reconhecer minhas dificuldades.
Quando Lamar lançou o primeiro single de To Pimp a Butterfly, “i”, em setembro do ano passado, muitos fãs não entenderam direito. Usar uma explosão de positividade com samples de um sucesso do The Isley Brothers parecia uma decisão estranha para Lamar, que é conhecido por optar por coisas mais complexas. Houve quem dissesse que era cafona; alguns até tiraram sarro do refrão alegrinho no estilo de “Happy”, de Pharrell Williams. “Eu sei que podem achar que sou convencido ou algo assim”, Lamar diz. “Não. [Quando escrevo assim] significa que eu estou deprimido.”
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Lamar está no estúdio de gravação, em Santa Monica. “Acordei de manhã me sentindo um merda”, ele reclama. “Me sentindo culpado. Me sentindo irritado. Me sentindo arrependido. Como um garoto de Compton, você pode ter todo o sucesso do mundo, mas vai sempre questionar seu valor.”
Lamar conta que a intenção era de que “i” fosse uma mensagem do tipo “Keep Ya Head Up” (música de Tupac Shakur, que em português significa “mantenha a cabeça erguida”) para os amigos que estão no sistema penitenciário. Mas ele também escreveu a faixa para si mesmo com o intuito de espantar os pensamentos mais sombrios. Lamar observa que os fãs que ficaram confusos por causa de “i” ainda não tinham ouvido “u” – faixa do álbum que serve de contraponto. “‘i’ é a resposta a ‘u’”, ele diz. Esta segunda faixa, de sinceridade arrasadora, traz o rapper quase soluçando por cima de uma batida discordante, dando bronca nele mesmo por causa de sua falta de segurança e xingando a si próprio de “fracassado”.
“Essa foi uma das músicas mais difíceis de escrever”, avalia. “Há alguns momentos muito pesados ali.” Lamar já documentou suas dificuldades internas antes, mais especificamente em “Swimming Pools”, de good kid, m.A.A.d. City, que explora os problemas que ele teve com álcool e o histórico da família com vícios. O rapper diz que, quando começou a fazer sucesso, as coisas ficaram ainda mais difíceis. Uma questão recorrente é a autoestima – aceitar que merece ter chegado aonde chegou. Parte disso vinha do desconforto dele perto de brancos.
“Vou ser 100% sincero com você: durante todo o tempo que passei na escola, do jardim de infância até o fim do ensino médio, não tinha nenhuma pessoa branca na minha classe. Literalmente zero”, afirma. Antes de começar a fazer turnês, ele mal tinha saído de Compton; quando finalmente saiu, o choque cultural foi violento. “Imagine só descobrir isso quando você tem 25 anos. Você fica perto de gente com quem não sabe se comunicar. Isso traz confusão e insegurança. Mas, ao mesmo tempo, você fica animado, porque está em um ambiente diferente. Existe mundo fora do seu bairro.”
Enquanto good kid, m.A.A.d. City foi um exercício em nostalgia do fim do milênio, o épico To Pimp a Butterfly tem os pés firmes no presente. É a visão dele do que significa ser jovem e negro nos Estados Unidos hoje – e o que significa ser Kendrick Lamar, lidando com sucesso, expectativas e as dúvidas em relação a si mesmo.
Musicalmente, o álbum é aventureiro, com elementos de free jazz e funk dos anos 1970. Lamar diz que escutou muito Miles Davis e Parliament. Derek Ali, engenheiro de som e parceiro das antigas, diz que Lamar trabalhou de maneira sinestésica – “Ele fala em cores: ‘Faça com que soe roxo’. ‘Faça com que soe verde-claro’”. Mas, de todas as cores do álbum, a de maior destaque é o preto. Há alusões a períodos inteiros de história afro-americana, da diáspora às plantações de algodão, do renascimento do Harlem a Obama. “Mortal Man” cita o nome de líderes como Mandela e Martin Luther King. Pairando por cima de tudo, claro, estão as tragédias dos últimos três anos: Trayvon Martin, Michael Brown, Eric Garner, Tamir Rice. “Para mim, o álbum é perfeito para este momento”, diz o produtor Mark “Sounwave” Spears. “Se o mundo fosse alegre, talvez entregássemos um álbum alegre. Mas, neste momento, não estamos alegres.”
Revolução Pessoal
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Graças a Black Messiah, de D’Angelo, e a To Pimp a Butterfly, de Kendrick Lamar, 2015 será lembrado como o ano em que a política negra e a música negra de verdade ressurgiram para se unir ao pop mainstream. A festa começa com o amor que o baixista Thundercat tem por Bootsy Collins. “Wesley’s Theory” é uma brincadeira que desarma, mas também um lamento pela inocência perdida.
Lamar tem reclamações lamuriosas a fazer para ele mesmo, para nós e para os chefões malevolentes que estão no poder: “Você vandalizou a minha percepção, mas não pode tirar meu estilo de mim”, ele versa. No quesito conteúdo insurgente, Lamar domina a relevância do rap em To Pimp a Butterfly. Ele se refestela nas críticas às táticas racistas da força policial, que atualmente são notícia toda semana. Mas o medo que tem de assumir a posição de messias é absolutamente sincero e pessoal.
Dá para imaginar Chuck D ou Dead Prez mandando ver com o mesmo peso e esperteza contra a supremacia branca, como Lamar faz em “The Blacker the Berry” e “King Kunta”. Mas não dá para imaginá-los vulneráveis como Lamar se mostra em “Complexion”, “u” e “i”.
To Pimp a Butterfly é um arroubo denso e estonteante de raiva sem filtros, com confissões, golpes de sofisticação grosseira, autocrítica ferina e ataques de arruaça dignos do melhor do rap.