Rolling Stone Brasil
Busca
Facebook Rolling Stone BrasilTwitter Rolling Stone BrasilInstagram Rolling Stone BrasilSpotify Rolling Stone BrasilYoutube Rolling Stone BrasilTiktok Rolling Stone Brasil

Punks gente boa

Os Ramones deixaram uma impressão duradoura nos fãs brasileiros – e por aqui comprovaram o jeito humilde com que sempre trataram o público

Andre Barcinski Publicado em 10/03/2016, às 12h48 - Atualizado às 13h47

WhatsAppFacebookTwitterFlipboardGmail
<b>AMIGO RAMONE</b><br>Barcinski (à esq.) caminha ao lado de Joey logo depois da coletiva de imprensa dos Ramones realizada em São Paulo, em 1991. - Arquivo pessoal
<b>AMIGO RAMONE</b><br>Barcinski (à esq.) caminha ao lado de Joey logo depois da coletiva de imprensa dos Ramones realizada em São Paulo, em 1991. - Arquivo pessoal

Em quase 30 anos cobrindo música como jornalista, ainda não conheci uma banda tão importante e tão pé no chão quanto os Ramones. Nunca ninguém foi, ao mesmo tempo, tão influente e tão humilde. Qualquer pessoa que tenha passado cinco minutos na presença de um dos integrantes da banda – mesmo na de Johnny, considerado o mais esquentado e antissocial da trupe – sabe que eles sempre agiram como quatro moleques gente boa do Queens.

O curioso é que os Ramones nunca tiveram uns pelos outros a simpatia e o carinho que demonstravam pelos fãs. O relacionamento entre eles sempre foi explosivo. O cantor, Joey, e o guitarrista, Johnny, os únicos integrantes originais que permaneceram do início ao fim da carreira do grupo, não se gostavam nem um pouco e passaram cerca de 20 anos sem se falar.

Joey era um liberal, defensor das causas das minorias e preocupado com o meio ambiente. Johnny era conservador, fã de Ronald Reagan e achava que a Amazônia deveria ser toda asfaltada. Para piorar, Johnny se casou com Linda, uma ex-namorada de Joey, e o caldo azedou para sempre. Ponha na mistura a demência do baixista Dee Dee, um alucinado que acabou expulso por vender a van de equipamentos da banda para comprar drogas, e você tem a família mais desajustada do rock.

No total, foram cinco visitas dos Ramones ao Brasil: em 1987, 1991, 1992, 1994 e 1996. Em maio de 1991, a banda veio para uma turnê com o novo baixista, C.J. Ramone. Na cidade de São Paulo, foram três shows com lotação esgotada no antigo clube Dama Xoc. Na passagem de som, quase mataram do coração o vocalista da

banda Ratos de Porão, João Gordo, ao convidá-lo para subir ao palco e cantar “Commando” com eles. “Foi uma das coisas mais emocionantes que aconteceram na minha vida”, lembra João Gordo. No dia seguinte, ao chegar ao clube para o show, o vocalista brasileiro viu os Ramones tomando uma dura da Rota (Polícia Militar), todos eles de pernas abertas e braços no muro: “Tenente, puta que pariu, esses caras são os Ramones!”

Naquela mesma turnê, convidei Joey para uma entrevista em uma rádio paulistana. Ele topou. Depois do show, eu e os amigos André Forastieri e Ronaldo Masciarelli, o Baia, buscamos Joey na porta do hotel, no carro detonado do Baia, e rumamos para a rádio. A ideia era entrevistá- -lo por meia hora. O programa acabou durando quase cinco. Joey tocou umas 40 músicas – os próprios Ramones, Stooges, T. Rex, John Lennon, David Bowie, Dead Kennedys, Jane’s Addiction, MC5, The Kinks, Mott the Hoople, Slade, Cramps, Alice Cooper, Motörhead – e falou pelos cotovelos, enquanto tomava o horroroso café da rádio e comia pizza fria. Ouvintes apareceram na emissora de madrugada com discos e fotos para ele autografar. Joey estava completamente à vontade e contou uma penca de histórias sensacionais.

“Já fizemos muitas coisas esquisitas e enfrentamos muitas plateias hostis. Eu me lembro de 1980, quando fizemos uma turnê com o Black Sabbath. Foi legal, mas o público se matava”, revelou. “Em San Bernardino, uma cidade interiorana cheia de motoqueiros caipiras, o show foi promovido como ‘Os reis do punk contra os reis do heavy metal’. Foi uma guerra, choveram garrafas de uísque e carburadores na nossa cabeça. Chegou uma hora que falamos: ‘Foda-se!’ Johnny mandou as pessoas tomarem no cu e saímos. Nos bastidores, o cara que tomava conta do palco disse que não via uma reação daquelas desde as primeiras turnês dos Rolling Stones. Para mim, foi um dos maiores elogios que os Ramones poderiam receber.”

Sobre a longevidade do quarteto, Joey disse: “Nunca pensei que iria passar 17 anos na mesma banda. Muitas vezes não foi fácil viver com meus companheiros. Mas no fim tudo se resume a coisas básicas. Qual é a sua visão? Em que você acredita? O que a banda representa para você? Muita gente acha que entramos nos shows completamente chapados. Isso é um absurdo. Não poderíamos manter nosso nível de estamina e tocar da forma como tocamos se estivéssemos doidões. Já depois do show, se for para tomar umas cervejas, tudo bem. O caso é que os Ramones são essencialmente uma banda de shows, nosso negócio é ao vivo. Cada dia tocamos para uma plateia diferente, e o cara que pagou tem direito ao melhor que o grupo pode oferecer. Nosso objetivo é fazer com que o garoto saia pensando: ‘Caramba, este é o melhor show de rock que já vi em toda a minha vida’”.

Quando o deixamos de volta na porta do hotel, o dia já havia raiado. “Obrigado por tudo, foi uma noite sensacional”, Joey disse. Todas as vezes em que o encontrei depois disso, o músico fez questão de mencionar a noitada radiofônica. No dia seguinte, no Dama Xoc, dedicou “Pet Sematary” aos “amigos da rádio”.

Em 1992, fui morar nos Estados Unidos e tive mais contato com os Ramones, especialmente com Joey e Johnny. O guitarrista era obcecado por filmes de terror e fez questão de ir a uma convenção de fãs do gênero para conhecer pessoalmente José Mojica Marins, o Zé do Caixão, que era convidado do evento.

Já Joey morava em um pequeno apartamento em Nova York, decorado com cartazes originais de shows dos anos 1960 – Love, The

Doors, Grateful Dead, Jefferson Airplane. O lugar ficava a cinco minutos a pé do CBGB, o clube minúsculo onde eles ajudaram a criar o punk. Naquela época, Joey já não se aventurava tanto a passear a pé pelo bairro, porque mal conseguia andar cinco metros sem ser parado para fotos e autógrafos. Era uma megacelebridade do Lower East Side.

Tive a sorte também de conhecer Dee Dee. Um amigo em comum nos apresentou e, em cinco minutos, ele passou a me tratar como

um chapa. Fui almoçar comida chinesa com ele e a esposa, a argentina Barbara, no quarto em que o casal morava no Chelsea Hotel, o lendário antro de depravação nova-iorquino, lar de William Burroughs, Leonard Cohen e onde Sid Vicious teria matado a namorada, Nancy Spungen, em 1978. “O quê? Sid matou Nancy? De onde você tirou isso?”, questionou Dee Dee. “Todo mundo sabe que não foi isso que aconteceu! Quem matou Nancy foi aquele traficante que vendia heroína pra ela… Como é o nome dele… Porra… Daqui a pouco eu lembro o nome do cara!” Claro que Dee Dee não lembrou o nome do sujeito, mas contou histórias fantásticas envolvendo Stiv Bators (The Dead Boys), Johnny Thunders (New York Dolls, The Heartbreakers) e outros, além de confirmar a lenda de que foi despedido dos Ramones por vender o equipamento da banda para um traficante.

No início de 1995, fui cobrir um leilão de instrumentos raros em Nova York, cuja grande atração era uma guitarra Rickenbacker destruída

por Pete Townshend. Encontrei Johnny Ramone acompanhado pelo produtor da banda, Daniel Rey, e pelo baterista do Blondie, Clem Burke. Ele disse que a banda estava em estúdio gravando seu último disco, ¡Adiós Amigos! (1995), e que Joey já não tinha mais condições físicas de cantar (naquele mesmo ano, ele seria diagnosticado com linfoma). Depois me perguntou o que eu achava de a banda continuar sem Joey. “Joey já não aguenta cantar, e o C.J. canta muito melhor”, ele disse. Eu respondi que não dava para imaginar os Ramones sem Joey. Quando o disco saiu – o 14º da carreira da banda –, ficou evidente que o vocalista não estava bem de saúde. Ele tinha apenas duas composições no álbum, e C.J. cantou quatro faixas.

Os Ramones acabaram oficialmente em 6 de agosto de 1996, com um show no Palace, em Los Angeles. O fato de a banda nova-iorquina por excelência ter encerrado a carreira na Califórnia diz muito sobre seus conflitos internos.

Naquela época, eu estava envolvido no projeto do documentário End of the Century, dirigido por Jim Fields e Michael Gramaglia e lançado em 2003. A ideia era registrar a turnê sul-americana deles, em março de 1996, que culminaria no imenso show no estádio do River Plate, em Buenos Aires, Argentina, o maior da história dos Ramones. O plano inicial era de que a última apresentação da carreira do grupo fosse uma gigantesca celebração, repleta de convidados especiais, no Madison Square Garden, em Nova York. Mas Johnny pôs água na cerveja de todo mundo. Ele já havia mudado para a Califórnia e não aceitou voltar à cidade natal para o derradeiro show. A gravação da turnê sul-americana também foi abortada, embora haja no documentário algumas imagens da banda em Buenos Aires. Uma pena. Os Ramones

acabaram não tendo o final com a chave de ouro que mereciam. Joey morreu em 2001, Dee Dee em 2002 e Johnny em 2004. Parecia que a

banda era o oxigênio que ainda os mantinha vivos. Em 2013, se foi Arturo Vega, o artista que desenhou o icônico logo dos Ramones; no ano seguinte, foi a vez de Tommy, o primeiro baterista. Com a morte dele, todos os quatro Ramones originais – Joey, Johnny, Dee Dee e Tommy –

já não estavam entre nós. One, two, three, four! Foi o fim de uma era.