Lucas Silveira, líder do Fresno, compõe melodias grudentas como quem troca de roupa e pavimenta o caminho para uma carreira promissora - em grupo ou sozinho - como o roqueiro de massa por excelência
Esparramado em uma cama dobrável, Lucas Silveira espera pacientemente para ser atendido. O líder da banda de rock Fresno se encontra em um tradicional estúdio de bodyart em São Paulo, prestes a realizar mais uma tatuagem - sua sexta desde 2006. "Se a gente conversar durante, não vou nem sentir a dor", ele mesmo se tranquiliza, provavelmente se lembrando da aflição causada pelo impacto da agulha sobre a pele. Realizada na parte interna do bíceps, a sessão resultará em um cachorro decorado por uma fl or de lótus, uma homenagem a Spike, o rottweiler que Lucas teve durante dez anos. "Quero eternizar o que foi bom", ele diz, com o braço esquerdo flexionado, fingindo não sentir a tatuadora já rabiscando de preto a sua carne.
Pelo menos 105 mil fãs sabiam bem o que Lucas Cesar Lima Silveira estaria fazendo naquele instante: o rapaz notificou o evento em sua página no Twitter, que utiliza mais como um diário pessoal do que como mural de opiniões. "Como tudo o que se escreve lá vira furo de reportagem, simplesmente não dá para se dizer o que se pensa", ele despista. Isso não o impede de postar pelo menos meia dúzia de frases ao dia, relatando compromissos com a banda, passagens pela academia, passeios de bicicleta e comentários pontuais sobre o nada (atualizações recentes vão de "Bah. Misto quente + muffin de chocolate = Pelo menos 1 hora de invencibilidade emocional" a "Meu pior dia das crianças foi aquele em que eu ganhei uma caixa com 60 Kinder Ovo. O pior de tudo: era exatamente o que eu queria").
Quando encontro Lucas naquela tarde abafada de outubro, ele usa seu costumeiro uniforme de sair à rua, aparecer em público ou tocar com o Fresno: camiseta preta justa, jeans skinny, tênis sujos, os cabelos milimetricamente desarrumados, alargadores nas orelhas. Para os desavisados, pode não parecer que o figurino tenha sofrido variações ao longo dos anos. Mas Lucas, que não tem problemas em se declarar vaidoso ("mas sempre fui muito crítico"), se confirma como um indivíduo em eterna mutação. "O jornalista me pergunta: 'E essas roupas? Que mensagem você quer passar?' Cara, se alguém queria passar uma mensagem com a roupa, era o Ney Matogrosso. A gente ganhou prêmios no VMB, e o mote das matérias era 'de calça justíssima, Lucas diz que é hetero'. Porra! O Ultraje a Rigor tocava usando calças de oncinha e ninguém falava sobre isso!" O tom da reclamação é propositalmente cômico. Lucas se expressa com rapidez, em um tom amigável que versa entre o descompromisso e o deboche, as frases pontuadas por interjeições sulistas. Ali, ele soa inevitavelmente como se tivesse alguns anos a menos do que os 25 que possui (ele completa 26 em 1º de dezembro).
É talvez sem precedentes no cenário atual a trajetória de Lucas Silveira e do grupo que criou em 1999, quando estava no segundo ano do ensino médio junto aos colegas de escola. "Era uma banda de ocasião", ele relembra sobre "a" Fresno, chamada por seus integrantes pelo artigo feminino, seguindo a tradição gaúcha. Fruto assumido da geração criada à base de internet, o quarteto coleciona feitos notáveis para uma banda movida a guitarras, resultado de uma evidente descontinuidade na cena roqueira nacional a partir da metade da década de 1990. Aproveitando as ferramentas digitais à disposição, a banda se sentiu compelida a preencher aos poucos essas lacunas. A reputação indie foi maturada com a distribuição despretensiosa de arquivos em MP3 de faixas gravadas com voz e violão. Posteriormente, se consolidou com a dedicação especial ao marketing e a manutenção de uma sólida, longeva e fiel base de fãs, que foi capaz de dar à banda, em um mesmo ano, os dois maiores reconhecimentos televisivos disponíveis - o Prêmio Multishow de "Melhor Grupo" e o troféu de "Artista do Ano" pelo VMB, da MTV. Hoje, se o Fresno representa o que há de mais popular no rock nacional, deve muito disso a um exaustivo trabalho braçal de catequização das massas. "Nos anos 80, as bandas de rock preenchiam uma lacuna para o povo que hoje é preenchida por outros estilos, como o sertanejo", o vocalista teoriza. "Se tivesse um Rock in Rio hoje em dia, a gente provavelmente tocaria nele."
A citação do sertanejo não vem de graça. Em 2008, o Fresno virou notícia por causa da inusitada (e até elogiada) parceria com Chitãozinho e Xororó exibida na TV. Além da amizade e de churrascos ocasionais, a associação aos sertanejos ainda rende frutos: "Duas Lágrimas", do Fresno, foi regravada no novo disco da dupla.
"Agora que a gente chutou a barraca de tocar com o Chitão, poderia fazer um som com outros caras", Lucas sugere, em tom sério mas nem tanto. "Engenheiros do Hawaii. Isso também seria controverso."
Há meses, Lucas Silveira mora de aluguel em um apartamento na bem cotada esquina das avenidas Paulista e Brigadeiro. Por não dirigir ("É um mal de família", justifica), as formas favoritas de se locomover pela cidade em que vive desde 2006 é o táxi e uma recém-comprada bicicleta cross. A aquisição, aliás, foi fato alardeado em suas declarações sonora online. "Faz parte dessa busca pela essência", justifica, em tom parcialmente solene, misturado ao zumbido causado pelo desenho que começa a se formar em seu braço. Está constantemente acompanhado por Nicolle, a namorada de mais de um ano e meio que mora Curitiba. O relacionamento firme assumido em público não altera o assédio que a condição de galã lhe oferece. "Quando se aparece muito na TV, isso muda. Mas o assédio é ao artista. Não é necessariamente que a mina quer dar pra você", ele solta, meio que medindo as palavras. após minha insistência, Lucas confessa não ter muito do que reclamar. "No fundo, a gente acha isso do caralho", comemora, sobre a condição de ídolo teen dividida com os amigos de banda. "É demais."
A mudança de Porto Alegre para São Paulo com os membros do Fresno veio como necessidade de um salto em uma carreira já consolidada na cena underground do hardcore melódico - o tão alardeado "emo" adotado pela imprensa generalista. "A gente chegou gauchão, sem conhecer nada", Lucas lembra. Após uma rápida passagem por um flat, o quarteto se instalou em uma casa espaçosa na rua Barão do Bananal. "A 'Barão do Bacanal'", ele revela o apelido, "era toda pichada, sem móveis, onde rolavam churrascadas, hospedávamos as bandas amigas... Uma zona!"
Com os integrantes hoje morando cada um em seu canto, as farras são mais moderadas. "Para tocar, preciso estar sempre a 90%. E estou fazendo coisas para manter isso", Lucas garante. "A voz melhorou porque parei de beber. Se estivesse pegando normalmente, bebendo vodca com energético, não estaria monte de shows."
A modéstia não-forçada impede Lucas de admitir a condição de mais certeiro compositor de sua geração. "Todo cara que faz música tem sua forma que só ele faz e que não conta pra ninguém", despista. O aprimoramento da técnica para escrever exatamente as músicas que seus fãs querem ouvir, ele atribui à época em que trabalhou em uma agência de jingles. "Eu conseguiria", dispara, questionado sobre o fictício desafio de escrever sob encomenda para Chitãozinho e Xororó. "Gosto do exercício de compor para os outros. Uso uma área diferente da cabeça."
Ele insiste, porém, que o segredo está na dedicação com que se entrega ao ofício: "Tem aquele papo de que a música é uma coisa divina, que poucos são credenciados a fazer. Mas também não pode esperar o 'São José das Notas' te mandar a música. Tu dominando as ferramentas, é algo 70% braçal. O resto é inspiração, motivação. Se você se disciplinar a escrever todo dia, vai lá e faz".
"Mas as coisas estão no ar", Lucas prossegue. "Sempre que acontecer alguma coisa, pode surgir uma música. Tem gente que cria a própria tragédia pra se inspirar. Eu funciono perfeitamente num dia feliz."
Com o Fresno, foram três discos independentes lançados antes da consagração com Redenção (2008), o primeiro álbum por um grande selo - o Arsenal de Rick Bonadio. O próximo, Revanche, sai em março de 2010. Enquanto isso, Lucas dá vazão às canções que insistem em povoar seu cérebro, gravando um álbum com o Beeshop, codinome de um projeto acústico em inglês que sonora mente remete a nomes como Jeff Buckley e Conor Oberst. "Tem que lançar tudo. É Jack White o negócio", ele brinca, se referindo ao músico multifacetado que se divide entre o White Stripes, o Raconteurs e o Dead Weather. "Sou hiperativo", Lucas sorri, com ares de garoto orgulhoso de uma traquinagem. Olhando para o braço recém- decorado, ele parece satisfeito: "Vou sempre marcar tatuagem com entrevista. Não senti nada".
Na tarde nublada do dia seguinte, Lucas contraria a assumida fama de atrasado e chega adiantado à segunda parte da entrevista, no escritório de sua assessoria, em uma casa de vila escondida no bairro dos Jardins. Está acompanhado dos três integrantes do Fresno, o guitarrista Gustavo "Vavo" Mantovani, o baixista Rodrigo Tavares e o baterista Bell Ruschel. Lucas e Tavares estão encostados no muro e divagam sobre motocicletas, uma das diversas paixões que compartilham. A dupla divide a composição de várias faixas de Redenção, assim como algumas de Revanche. Lado a lado, fica evidente a semelhança de Tavares com o vocalista: é alto, tem os braços fechados por tatuagens e fala rápido, pelos cotovelos. Dada a propriedade e desenvoltura com que se coloca em relação à banda, é difícil acreditar que tenha se juntado ao Fresno apenas em 2006, substituindo o baixista original, Bruno Teixeira.
Sentados ao redor de uma mesa retangular, os quatro se revezam para falar, sem seguir qualquer forma de hierarquia. "A gente divide as funções", começa Tavares. "O Vavo fala mais pelo institucional da banda, atualiza o site. Eu ajudo o Lucas na parte de compor. Cada um se vira como pode." Como uma autêntica banda de rock de massa que se preze, o Fresno se orgulha de não se engajar politicamente e de apenas tomar parte de chamadas "causas universais". "É meio perigoso dar opiniões sobre coisas que as pessoas deveriam aprender com suas famílias", ensina o baixista.
Atualmente, os quatro gargalham ao relatar hostilidades sofridas ao longo dos anos. Mas nem sempre foi assim. Se hoje se divertem com esses casos, é porque dizem simplesmente não se importar mais. O fato é que é improvável que alguma das pessoas que agridem Lucas verbalmente saibam cantarolar algum hit que ele escreveu para o Fresno."Quantas vezes sou xingado de 'viado', mesmo estando com a minha mina?", o líder reclama. "Mas tu se acostuma. No começo, sofre, pensa: 'Será que só acontece com a gente?' Mas não, todo mundo já passou por isso."
"Se fosse outra banda no nosso lugar seria a mesma coisa",Vavo, o mais reservado, que fundou o grupo com Lucas aos 16 anos. "Não vejo as pessoas pegando mais no pé da Fresno do que de outra banda." Para Tavares, tudo é uma questão de o Fresno estar em evidência com o público feminino. "Tem o lance do homem dominante, do orgulho... aí, fudeu." Bell, o último a completar a atual formação (substituiu Pedro Cupertino em 2008), quebra o silêncio: "Quando agradeci o Prêmio Multishow, a primeira coisa em que pensei foi no meu filho. Falei 'Esse vai pro Antônio'. Depois, vieram: 'Que história é essa, quem é Antônio?'"
"A reação natural de quando a pessoa é famosa é dizerem que ele é viado, né?", rosna Lucas. "Tipo, 'olha, é cheirador, viadão. Foi pego dando e cheirando ao mesmo tempo!'"
Os quatro gaúchos descobriram que a melhor defesa, no caso de sofrer com as vicissitudes de uma banda em crescente evidência, é não tentar se defender. "Às vezes fico querendo me explicar, quando na verdade as pessoas não querem a sua justificativa", diz Lucas. "Antes, eu respondia às críticas, agia como um ser humano normal. Hoje, não quero ter que arcar com as consequências disso. Afinal, o cara só quer encher o saco, não quer a sua resposta."
Habitando na selva paulistana, distantes das referências, sublimar os fatos se torna questão de sobrevivência. "É fácil você perder a noção de quem tu é. Ou acredita que é muito fodão, gênio, ou o contrário, fica acreditando nas pessoas que querem que você se foda e se sente um merda", Lucas define.
"Eu sempre defendo ele", Vavo comenta sobre o amigo de banda. "As pessoas dizem: 'O Lucas virou estrelinha!' Eu falo: 'Não, não virou! Eu conheço ele e sei que não virou'." A trajetória de Lucas Silveira carrega elementos que se assemelham a de tantos garotos de classe média gerados nos anos 80, ainda que a maioria não seja tão reconhecida ou bem-sucedida como ele. Nascido em Fortaleza e levado para Porto Alegre "ainda no colo", aproveitou o privilégio de ter acesso à música desde a infância. "Minha mãe tinha um violão e um órgão. Meu pai era cantor. É de família, mas não acredito que seja genético. Tem muita gente que vive em ambiente musical e não sai porra nenhuma", teoriza. "Eu vejo que tenho um dom, só não gosto de dizer." Os pais, Ione e Nilo, se separaram quando Lucas era pequeno. Cresceu brincando na rua e teve sua fase nerd de assistir animes e jogar games. Seu projeto, então, era seguir carreira como desenhista. "Sonhava em trabalhar na Warner, na Disney. Sabia que era o melhor da turma, mas tinha gente que era melhor." Só na adolescência surgiu o ímpeto de enveredar para a música. Em um certo carnaval na praia, pegou o violão do pai e tentou tocar: "Meu irmão me ensinou uns três acordes. Eu descobri os outros".
Fez faculdade de publicidade, mas largou. "Só ia pra lá pra tomar cerveja e jogar sinuca", ele lembra. Acabou jubilado. Assim mesmo, a mãe sempre apoiou as escolhas do caçula. "Na minha cabeça, tinha certeza de que iria viver de música. Era uma tranquilidade." Hoje, a situação da banda que o tornou famoso é contemplada de forma natural. "Para os outros, é como se tivesse sido rápido. Para nós, é o curso normal. A gente nunca estagnou", diz. "Se uma banda fica três meses parada, isso equivale a um hiato de um ano. Não tem descanso, senão o público se esquece."
Na busca pelo olimpo do pop outrora estrelado por Paralamas, Legião e afins, o Fresno não enxerga como um problema a necessidade de fazer concessões ou remar à favor da maré. Para ser a "banda de rock popular" por excelência, é preciso se valer de ferramentas que atinjam o maior público possível. Para isso, Lucas crê, é preciso se adaptar. "O segmento do qual somos parte é bem maior do que o do rock", ele teoriza. "Têm os fãs roqueiros, mas também tem aquela mina que ouve Victor & Leo. É isso o pop rock no Brasil. E para agradar esse povo, é mais difícil."
E se por acaso o sucesso do Fresno se revelar passageiro, seu homem de frente garante ter ideias sobrando nos bolsos das calças justas. "Eu falo numa boa: se um dia acontecer de a banda não dar certo por alguma razão, vou para a gringa tocar violão, vou falar com os caras e vou conseguir de alguma forma. É uma fé meio arrogante, mas vou, porque afinal não tenho um plano B."
"Quando eu falo, a galera até ri", ele afirma, agora sim, sem modéstia, "mas digo que quero tocar na abertura das Olimpíadas do Rio!"