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A recomposição do Titã

Após deixar uma das maiores bandas de rock do Brasil, Paulo Miklos reconstrói a carreira – e a vida – com novos parceiros e inspirações

Lucas Brêda Publicado em 12/08/2017, às 13h02 - Atualizado às 13h04

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<b>À Vontade</b><br>
Miklos na sala da casa onde mora, em São Paulo
 - Bruno Trindade
<b>À Vontade</b><br> Miklos na sala da casa onde mora, em São Paulo - Bruno Trindade

Paulo Miklos está tranquilo. Na casa onde mora, em um condomínio fechado no Morumbi, ele joga lenha na lareira para amenizar o frio em uma das tardes mais geladas do ano em São Paulo, antes de afastar o cachorrinho de estimação e apreciar uma xícara de café. Há um ano, em 11 de julho de 2016, o clima parecia ser mais turbulento. “Os Titãs informam o desligamento de Paulo Miklos, por decisão pessoal, para se dedicar a projetos individuais”, revelou a postagem do grupo no Facebook. Beto Lee, filho de Rita, entrou para a banda – reduzida a três dos nove integrantes originais –, e Miklos repetiu o movimento de Arnaldo Antunes, Nando Reis e Charles Gavin, encerrando um ciclo de mais de três décadas. Foi mais um passo de uma transformação existencial que vem ocorrendo há alguns anos e desemboca na retomada da carreira solo com o disco A Gente Mora no Agora, patrocinado pela Natura Musical e lançado este mês.

“Você sabe que eu nunca pensei [em sair dos Titãs] durante esse tempo todo? Muito pelo contrário: sempre fui o mais indignado com as saídas dos meus companheiros”, Miklos confessa, emendando uma risada conectada com a incoerência da situação. Ele não soa como alguém de saco cheio ou com algum tipo de mágoa dos amigos de longa data. Pelo cuidado com as palavras, é como se estivesse falando de um casamento que chegou ao fim não por excesso de brigas, mas por carências pessoais. “Fui fiel e apaixonado pela ideia da banda, defendia e tudo mais. Foi um processo que se deu internamente. Senti que eu só poderia fazer alguma coisa com a entrega que eu gostaria de ter se estivesse fora. Porque, não fosse isso, o Titãs seria meu principal projeto, pelo qual eu lutaria todo o tempo – como foi por 34 anos.”

Apesar de cuidadosa, a saída de Miklos foi inevitavelmente dolorosa para os integrantes remanescentes. Afinal, dos rapazes que fundaram os Titãs no começo dos anos 1980, há mais gente fora do que dentro do grupo (hoje, seguem empunhando a bandeira Branco Mello, Sergio Britto e Tony Bellotto). “Sempre conversamos muito, tivemos uma proximidade muito grande, inclusive da vida pessoal, de dar apoio e tudo mais. Temos uma vida juntos”, conta o músico, enfaticamente evocando a palavra “amigos” para falar de quem toca ou tocou nos Titãs. “Foi uma coisa pensada da minha parte, mas, a essa altura, outros três já tinham saído. Ou seja, tínhamos uma expertise nisso [risos].”

“Você sabia que ele está limpo há quase dez anos?”, orgulha-se Renata Galvão, produtora cultural casada com Miklos desde 2016. Ela se surpreende com as reações incrédulas dos amigos quando veem o músico recusar uma dose de álcool.

“As pessoas perguntam: ‘Nem um golinho?’ Mas eu nunca fui desses. Se era para tomar, era a garrafa de uísque inteira”, conta o músico, recordando que fumava maconha regularmente nos anos 1980 (“Naquele tempo, ensaio sem dar um ‘peguinha’ era travado”), mas que teve problemas mesmo com cocaína, álcool e cigarro.

A sobriedade é um dos alicerces da vida menos atribulada que o cantor de 58 anos leva atualmente. Não apenas na abstinência das drogas, mas no equilíbrio para superar traumas recentes. Entre 2012 e 2014, Miklos perdeu a esposa (Rachel Salem, com quem vivia desde 1982) e os pais. Na mesma época, estava fazendo Nheengatu, o disco dos Titãs mais bem recebido pela crítica em anos. “No momento de perder o norte, o trabalho e os meus amigos foram minha base de sustentação”, diz. “Estive muito presente naquele álbum. Estava lá, compondo riffs, muito instigado. Só que, ali, eu não estava falando de mim, porque as coisas que escrevia sobre mim eram muito soturnas. Não cabia.”

Há uma aura sombria na fala de Miklos, quando ele perde os adjetivos para descrever o momento que passou. “Difícil”, repete, sempre reflexivo e como se refutasse os pensamentos, mas sem jamais fugir do assunto. A Gente Mora no Agora nasce exatamente desse lugar de dor, mas em um instante seguinte: quando ela é superada. “Senti que eu tinha uma página em branco na minha frente. Sem nenhuma ligação com nada. Zerei. Resolvi começar tratando dos assuntos que me interessam agora.” Gravado ao longo de 2017, sob tempo e vontade de Miklos, este é o disco da reconstrução – da vida em um novo casamento, da carreira sem a banda.

A Gente Mora no Agora foi formatado pelo “núcleo de discussão” integrado por Miklos, o produtor Pupillo (baterista do Nação Zumbi) e o diretor artístico Marcus Preto (que trabalhou com Gal Costa e Tom Zé, entre diversos outros), propositadamente a fim de despertar as influências de música brasileira no ex-titã. As composições saíram de parcerias com Arnaldo Antunes, Nando Reis, Emicida, Russo Passapusso (BaianaSystem), Tim Bernardes (O Terno), Guilherme Arantes, Céu, Lurdez da Luz, Mallu Magalhães, Erasmo Carlos e Silva. “O interessante é que trabalhamos de todas as maneiras [com os colaboradores]”, ele conta. “Com a Lurdez da Luz, por exemplo, eu dei o tema para ela. O Emicida traçou um perfi l meu, a partir de conversas.” Apesar de plural do ponto de vista sonoro (há sambas, baladas conduzidas por piano e violão e até uma espécie de frevo), o disco tem praticamente um único conceito lírico – e apenas Miklos aparece cantando. As 13 canções formam um retrato da renovação do artista, pintado a muitas mãos.

“No disco, tem total essa coisa: você ouve o pianinho e sabe que é o Guilherme Arantes”, analisa. “Mandei uma explicação da letra para o Erasmo, para ele sentir a onda e a ironia que tinha. Ele pegou e recontou aquela história ‘erasmicamente’. E isso que é interessante: são maneiras de um parceiro enxergar você e querer fazer uma música endereçada a você. Foi mais ou menos o que todo mundo fez – e isso é compor em parceria. Você também colocar sua própria marca.” Nando Reis, por exemplo, recebeu um rascunho de Miklos e devolveu outra canção. “Ele me ligou, dizendo: ‘Veio de estalo, acordei com uma música na cabeça, feita para você, sobre você’”, relembra. “A gente se conhece há muito tempo, e ele também sofreu com as minhas perdas, conhecia as pessoas. Acho que ele acessou essa emoção e quis tratar justamente desse assunto, da ausência.”

‘ ‘Um jogo eleitoral mal resolvido” e “uma puxada de tapete” é como Miklos define o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT). Longe dos Titãs, ele parece mais leve para opinar sobre política, sem o medo de atrelar as ideias próprias ao discurso da banda. Recentemente, rendeu algumas manchetes ao comentar, no programa da Globo Conversa com Bial, que estava mais para “um petralha desgraçado” do que para um “coxinha”. “O impeachment foi uma ruptura na democracia. O golpe está aí hoje nadando de braçada nessas reformas, que influenciam conquistas dos trabalhadores feitas ao longo de muitos anos. De repente, de uma hora para a outra, em uma canetada, de madrugada, eles têm modificado tudo, passado essas leis. E isso em um governo transitório, que nem deveria estar lá. É um golpe nos trabalhadores, nas pessoas mais necessitadas deste país. É muito triste ver um retrocesso deste tamanho.”

Apesar de as opiniões continuarem ácidas, Miklos naturalmente não carrega a mesma raiva do cabeludo que incontáveis vezes berrou “bichos escrotos” Brasil afora. Com um suéter bege, os cabelos embranquecidos, curtos e bem penteados, ele exala perfume; parece ter acabado de sair do banho. Hoje em dia, é tão ator quanto cantor, sendo que sua estreia no teatro foi no ano passado, com a aclamada interpretação da lenda do jazz Chet Baker (no cinema, o primeiro trabalho foi em O Invasor, de 2001). É também o jurado “fofo” do programa de talentos da Band X Factor Brasil, ao lado de Di Ferrero (NX Zero), Alinne Rosa e Rick Bonadio. Apesar de ter expandido o leque de atividades, Miklos se diz um “eterno roqueiro”, ainda que não esteja tão otimista em relação ao gênero. “O rap vem com essa imposição da voz, de dizer as coisas duras que precisam ser ditas, diferentemente do rock, que está estabelecido e em um nível de já ser revisitado, né? O rap está dizendo o aqui e agora”, analisa. “Ter uma atitude criativa para conseguir algo novo, com os elementos que temos [no rock], é fundamental.”

Miklos, por sua vez, está construindo algo novo. É isso que sente que deve fazer. “O que eu passei coloca em perspectiva a importância das coisas na vida e aumenta a vontade de abrir novas portas e entrar em novos ambientes”, reflete o artista, que agora ensaia para a primeira turnê solo pós-Titãs. As páginas que ele tinha em branco já estão repletas de cor.

Caminho Livre

Cinco músicas para entender A Gente Mora no Agora

“A Lei Desse Troço” (com Emicida)

A letra é de Emicida, mas poderia ser de Miklos. Single, primeira faixa, núcleo conceitual e base para o título do LP: “Chorar é importante igual a sorrir”.

“Vou Te Encontrar” (Nando Reis)

O emocionante “encontro” dos ex-Titãs é soturno, levado por violão dedilhado e orquestrações, representando a visão de Reis sobre morte, perda e ausência.

“País Elétrico” (com Erasmo Carlos)

“Raio que parta o mentiroso”, Miklos canta em um dos versos da letra dele reescrita pelo Tremendão, nesta que é a canção mais “titânica” – roqueira e política – do registro.

“Estou Pronto” (com Guilherme Arantes)

“Só fiz a música quando soube da sua história”, disse Arantes ao parceiro. Balada ao piano, a faixa vira uma declaração pessoal na voz de Miklos.

“Eu Vou” (com Tim Bernardes)

Miklos é fã de Bernardes e a composição oferecida pelo vocalista d’O Terno, bastante adequada à voz do veterano, encerra o disco em tom firme e otimista.