São frequentes as coligações entre legendas de ideologias opostas na busca pelo poder. E as eleições de 2012 só comprovam que já não há mais limites para os partidos
Os partidos políticos existem oficialmente no Brasil há mais de 160 anos. Entretanto, entre as centenas que surgiram neste período, nenhum deles durou muito tempo. Não há partidos centenários no país, a exemplo dos Estados Unidos, onde democratas (desde 1790) e republicanos (desde 1837), até hoje, alternam-se no poder.
Um dos motivos que explicam essa “precariedade partidária”, que se reflete na falta de enraizamento ideológico, é a inconstância do cenário político brasileiro. Violentada por súbitos e, muitas vezes, abruptos acontecimentos, como mudanças de regime e revoluções, a história contribuiu para golpear a duração dessas agremiações – as quais se viram forçadas a iniciar novas trajetórias a cada interrupção sofrida. Rompimentos foram causados pela implantação da República, em 1889, que enterrou os partidos monarquistas; pela Revolução de 1930, que desativou os republicanos; pelo Estado Novo (1937-1945), que proibiu a existência de partidos; e pelo Regime Militar de 1964, que os decretou à ditadura militar durante 26 anos.
No entanto, para que possa haver uma candidatura, os partidos são uma exigência da legislação brasileira e da Constituição promulgada em 1988. Com o fim do regime militar, inúmeros partidos foram criados e outros, que atuavam na clandestinidade, voltaram a funcionar. O resultado pode ser observado no atual cenário, e traduz-se em uma infinidade de siglas. Uma verdadeira “sopa de letrinhas” na qual a ideologia, no fundo, parece ter importância menor. O fato também confirma o extremo pragmatismo com que certas alianças políticas vêm sendo firmadas atualmente.
As próximas eleições municipais, que escolherão novos prefeitos e vereadores em outubro, têm se revelado uma fiel “fotografia” de tal panorama. Segundo especialistas, pouco ou quase nada diferencia uma sigla da outra: a maioria delas sobrevive sem conteúdo programático – a reboque do projeto de poder ou submetidas a caciques. A chamada “realpolitic” (a política baseada na prática), de forma generalizada, virou o modus operandi que rege as campanhas e coalizões no Brasil hoje em dia.
Para Leonardo Barreto, cientista político da Universidade de Brasília (UnB), o fenómeno das alianças é, possivelmente, o mais complexo da política brasileira. O prejuízo das coligações, ele diz, seria muito maior para quem adere do que para quem comanda a cabeça de chapa, como no caso do PSDB com o Democratas, em 2010, que se uniram nas eleições presidenciais. “O PSDB, apesar de coligado, continuou mantendo a sua marca, líderes e identidades. Mas quem terminou ‘desidratado’ e perdendo completamente a identidade, na verdade, foi o Democratas, que aderiu ao projeto”, explica Barreto, que afirma que a lógica de poder e os valores dos partidos locais são completamente distintos dos nacionais. “São realidades diferentes, em que cada qual joga em seu próprio ‘tabuleiro de xadrez’.” Outro ponto são as condições de competitividade de cada candidato, especialmente nas cidades onde se tem o disputadíssimo tempo de TV no horário político gratuito. “Nesse caso, vale reunir o maior tempo de TV possível, independentemente das pessoas que você vai ter de abraçar ou cumprimentar nas ruas. É um nexo extremamente pragmático: não há espaço para purismo”, define o cientista.
Em junho, não sem causar ruidoso estranhamento, os jornais estamparam a icônica imagem que enquadrava o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o deputado Paulo Maluf e o candidato à Prefeitura de São Paulo, Fernando Haddad. Feita por exigência de Maluf no jardim de sua mansão, a foto revelou-se símbolo da aliança firmada pelo PT com o PP para a disputa da prefeitura da capital paulista. Por motivos óbvios – levando-se em conta o extenso currículo de Paulo Maluf (participação na ditadura militar, denúncias de fraudes e de lavagem de dinheiro, etc.) –, a cena escandalizou eleitores ainda crédulos da ética na política. Na prática, a união deverá acrescentar preciosos 90 segundos diários à campanha televisiva de Haddad. O apoio só foi confirmado após o PP emplacar um aliado, o engenheiro Osvaldo Garcia, na Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental do Ministério das Cidades. A pasta é controlada pelo PP por meio do ministro Aguinaldo Ribeiro, que conduziu as articulações com os petistas.
Mas nem mesmo a recente ação movida pelo Ministério Público contra empreiteiras ligadas a Maluf, suspeitas de desviar dinheiro público para contas no exterior, constrangeu o candidato petista, ex-ministro da Educação de 2005 a 2011. Haddad coloca-se a favor da investigação e, caso provado, afirma que Maluf deveria devolver o dinheiro aos cofres públicos. Porém, afirma que o caso em nada afeta a aliança com o PP, classificando a repercussão do fato como uma “tentativa de estigmatizar um partido e de contestar um movimento natural”.
“Esse assunto sequer vem à tona [a aliança com Maluf ]. As pessoas compreendem isso muito bem. O PP está na base do governo Lula desde 2004. Eu não vejo razão para estigmatizar um partido que está colaborando com o governo federal”, Haddad declara. “As mesmas pessoas que estavam buscando apoio do PP passaram a vê-lo de outra forma depois que ele decidiu reproduzir, em São Paulo, a aliança que mantém no plano nacional. Causa alguma estranheza essa postura.”
A aliança PT/PP, entretanto, levou a deputada federal Luiza Erundina (PSB-SP), dias após o anúncio de que ela estaria na chapa nas eleições municipais, a desistir da candidatura a vice de Haddad. Erundina, que já havia dito que não estaria confortável no mesmo palanque com Maluf, ficou incomodada com a coligação. Para a ex-prefeita de São Paulo, que diz ter “atendido aos apelos da sociedade” ao deixar a chapa, Lula “passou dos limites”. Ela também critica o pragmatismo eleitoral contido na foto clicada na casa de Maluf. “Você vai à casa de alguém quando tem intimidade com ele. Eu não acho que o Lula tenha respeito por Maluf nem vice-versa. O tempo de TV é importante, mas não a ponto de sacrificar uma história.” Ainda assim, ela garantiu que fará campanha para o petista à Prefeitura da capital paulista – sem, porém, participar das agendas nas quais Maluf estiver presente. “Maluf tira a credibilidade de Haddad”, ela critica.
O contraditório vale-tudo eleitoral conseguiu juntar até mesmo evangélicos e católicos. Em uma união “inédita”, ambos os grupos comungaram forças e credos: o Partido Social Cristão (PSC) coligou-se com o peemedebista Gabriel Chalita, fervoroso católico, na disputa das eleições de São Paulo. O pastor e deputado Marco Feliciano, político de maior expressão no PSC, afirma “estar feliz” com a aliança. A ligação do candidato do PMDB com o catolicismo é tão forte que quando a então candidata a presidente Dilma Rousseff foi acusada de ser antirreligiosa e pró-aborto, Chalita foi o escalado para dialogar com líderes católicos, a fim de acalmá-los. Feliciano reforçou ser importante ter um “candidato com princípios cristãos” na disputa pela prefeitura da cidade mais economicamente importante do país. “Para mim, esta é a única forma de blindar a igreja dos pensamentos perniciosos do PT com seu Fernando Haddad, o pai do ‘kit gay’. São Paulo precisa de uma liderança de fato que enxergue o mundo com os olhos dos pequenos”, prega. Há situações semelhantes em todo o Brasil. Em Porto Alegre, por exemplo, o PCdoB aposta em uma parceria com o PSC para a campanha da deputada Manuela d’Ávila pela prefeitura da cidade. A candidata também se encontra em avançadas negociações para obter apoio do PP.
Em Macapá (AP), articulado pelo senador Randolfe Rodrigues, o PSOL selou uma aliança quilométrica com PV, PPS, PCB, PRTB, PTC, PMN e PPL em torno da pré-candidatura do vereador Clécio Luís para as eleições municipais. A salada de siglas, apelidada por Randolfe de “Unidade Popular”, porém, não agradou a setores do PSTU, partido da esquerda socialista com o qual o PSOL comumente é coligado, juntamente com o PCB. As siglas alegam que, já há algum tempo, as principais correntes que compõem o PSOL iniciaram uma “corrida no sentido oposto ao do socialismo”. A verdade, porém, é que nem mesmo o PSTU ficou imune às alianças. Em Belém (PA), o partido fechou uma coligação com PSOL e PCdoB – este último, partido aliado do PT, do qual o PSTU é opositor – para concorrer à prefeitura da cidade. A frente trará Edmilson Rodrigues (PSOL) como candidato a prefeito e Jorge Panzera (PCdoB) como vice.
Zé Maria, o presidente nacional do PSTU, não concorda com tamanha amplitude que se dá à coligação engendrada pelo PSOL em Macapá com “representantes da direita tradicional”. “Passa uma sinalização errada para a população”, ele alega. “Acaba traduzindo-se em um matrimônio político apenas para se ter mais votos. Quanto mais votos possível, melhor. Isso é o que a política tradicional sempre praticou no Brasil.” Para o dirigente, as coligações do PSOL em Macapá podem até viabilizar a eleição de Clécio Luís, mas, por outro lado, inviabilizam a aplicação de um programa político de fato “transformador”.
Randolfe, por sua vez, defende as coalizões na capital amapaense citando um texto utilizado pelo próprio PSTU para justificar a união feita em Belém, no qual o partido defende que é preciso ter “firmeza de princípio e flexibilidade na prática”. “Eu comungo com a opinião da direção nacional do PSTU, e quero utilizar das argumentações dos que me criticam para justificar as alianças que o PSOL tem realizado”, diz o senador, alegando que o “puritanismo” ostentado pela esquerda é contrário à própria existência da democracia e da política. “Quem se reivindica paladino e ‘cavalheiro da pureza’, na verdade, está assumindo uma posição autoritária. E nós já tivemos péssimas experiências com atitudes desse tipo. É uma posição com a qual não comungo.” Para Randolfe, não são as alianças que definem o comprometimento com mudanças e, sim, o programa político. “Não existe política sem aliança política”, define.
Um dos mais bem-sucedidos casos de candidatura independente é o do empresário Ross Perot, em 1992, na eleição presidencial dos Estados Unidos. Perot terminou em terceiro lugar, com quase 20 milhões de votos (pouco menos de 20% do eleitorado) na disputa contra o então presidente, o republicano George Bush e o vencedor, o democrata Bill Clinton.
No Brasil, a proeza de Perot não seria possível: somos parte da minoria de países que exigem dos candidatos o vínculo partidário – ao lado de Argentina, Uruguai, Peru, México, Costa Rica, Guatemala, Israel, Suécia e África do Sul. Afastada pela Constituição de 1946, a possibilidade da chamada “candidatura avulsa” (ou seja, sem a exigência de uma filiação partidária) já foi discutida e pleiteada em diferentes ocasiões no Congresso Nacional. Porém, a proposta nunca foi adiante. Em junho, após aprovada pelo Senado, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) rejeitou a possibilidade de candidatos avulsos disputarem eleições para prefeito e vereador nas eleições de 2012. A proposta (PEC 41/2011) foi apresentada pela Comissão de Reforma Política e – por ironia do destino – recebeu voto contrário de seu relator, o então senador democrata, hoje cassado, Demóstenes Torres.
Desde a década de 90, quando ainda militava no PT, a ex-senadora Marina Silva levanta a bandeira das candidaturas avulsas em todas as instâncias do poder. Marina afirma conhecer muitas pessoas que seriam capazes de dar contribuições à política, mas que, contudo, “não querem saber de partido, por causa de toda a degradação que foi acontecendo no sistema político”. As dificuldades estariam em atrair bons quadros para partidos que, segundo ela, se preocupam somente em ganhar eleições. “Se a proposta for aprovada na reforma política, ela vai contribuir para o processo democrático, trazer sangue novo, oxigenar a política brasileira”, diz. Já o senador Pedro Taques (PDT-MT), um dos poucos a defender a proposta no Senado, afirma que a possibilidade das candidaturas avulsas é bem-vinda devido à “anarquia do sistema eleitoral”. “Muitos partidos transformaram-se em quadrilhas”, fuzila.
Antonio Carlos Segatto, professor da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), opina que uma ampla reforma política, não só eleitoral, poderia diminuir no imaginário do eleitor a ideia de que os partidos transformaram-se em “quadrilhas”. “Financiamento público de campanha e limite em coalizões são medidas urgentes”, defende. Outro detalhe seria o fato de que muitos partidos vivem exclusivamente de cargos, verbas e nomeações públicas, prática que teria se acentuado a partir de 1985, com a redemocratização do país. Por consequência, diz Segatto, as campanhas tornaram-se cada vez mais caras. “É loucura o valor de uma campanha eleitoral hoje em dia. Eleger um vereador em São Paulo, por exemplo, não sai por menos de R$ 5 milhões. E de onde vem esse dinheiro? Ou vem de empresas, do poder econômico, com as quais os partidos fazem conluios; ou vem do Estado, através da corrupção e do caixa 2.”
José Sarney, atual presidente do Senado, pode ser considerado um “monumento vivo” da banalização das alianças políticas no Brasil. Depois de ter sido presidente da República, Sarney só não apoiou Fernando Collor – mas esteve aliado aos mandatos de Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Lula e, agora, Dilma Rousseff. “Quem iria imaginar o Collor no governo do PT e, agora, o Maluf?”, aponta Segatto, que enxerga um cenário de promiscuidade ideológica que só poderá ser modificado após um longo e tortuoso processo de revolução institucional. Antes, entretanto, seria necessário retomar a confiança do eleitorado e devolver à classe política uma boa impressão. “A ideia que a sociedade tem da política é a de uma coisa diabólica”, afirma. E, para exorcizar tal realidade, somente fazendo uso de bom senso e honestidade.