Lixo por todos os lados, 1,5 milhão de desabrigados e, agora, a epidemia de cólera: um ano depois do terremoto que o destruiu, o Haiti segue à mercê de confusões políticas e da falta de organização na ajuda internacional – e sem previsão de melhoras
Haiti, dezembro de 2010. É o primeiro Natal desde que um terremoto de intensidade 7,3 na escala Richter atingiu o país na tarde do dia 12 de janeiro de 2010, matando mais de 250 mil pessoas e deixando outras 300 mil feridas. Nas poucas igrejas que resistiram ao abalo, fieis ouvem mensagens de solidariedade e superação; brancos e negros dividem os bancos da Igreja de Saint Pierre e cantam os hinos em francês. Um dos padres que comanda a cerimônia brada solenemente: "Neste momento de dificuldade, é importante que nos juntemos para, unidos, superarmos todos os desafios que Deus nos impôs". Do lado de fora da igreja, é difícil acreditar naquelas palavras. Nas ruas das cidades de Porto Príncipe, Leogane e Jacmel, ao menos 1,5 milhão de pessoas estão desabrigadas e dormem em barracas de lona montadas em campos. Mais de três mil presos - que fugiram quando os presídios ruíram - aterrorizam os sem-teto e promovem ondas de estupros. Oitenta por cento da população não tem emprego, 60% não sabe ler nem escrever e pelo menos 194 mil pessoas já haviam sido infectadas pelo cólera.
Algumas horas antes, à tarde, Ricardo Seitenfus, um gaúcho de pele branca e bigode grisalho, saboreia, demoradamente, um charuto dominicano. A cada trago, ele parece se despedir do apartamento arejado de três quartos onde vivera por quase dois anos em Petionville, uma espécie de bairro nobre de Porto Príncipe. Uma enorme janela de vidro conduz a uma vista panorâmica da cidade. Ao longe se pode ver um horizonte repleto de casas destruídas, poeira e lixo. Mesmo assim, Seitenfus adora aquela vista.
Em algumas horas, ele partiria de volta ao Brasil, antecipando em três meses o fim de seu mandato como representante especial da Organização dos Estados Americanos (OEA) no Haiti. Mas a partida não havia sido planejada - nem desejada.
Ele deveria ficar em Porto Príncipe até abril deste ano, mas foi destituído do cargo pelo secretário-geral da OEA, José Miguel Insulza, dois dias após conceder uma entrevista ao jornal suíço Le Temps. Nela, ele disse o que muita gente já comenta nos círculos diplomáticos: "O Haiti é a maior testemunha do fracasso da comunidade internacional".
Para Seitenfus, porém, a entrevista foi apenas um pretexto: sua destituição teria começado a ser arquitetada em 28 de novembro, dia do primeiro turno das eleições presidenciais do Haiti. Às 11h da manhã daquele domingo, 12 dos 19 candidatos (incluindo os que lideravam as pesquisas) foram à sede da Comissão Eleitoral Provisória (CEP) denunciando inúmeras fraudes no processo eleitoral que favoreceriam Jude Celestin, candidato apoiado pelo presidente René Préval.
Diante das fortes evidências de que as eleições haviam sido fraudadas, representantes da França, Estados Unidos, Canadá, União Europeia e Brasil se reuniram junto a Seitenfus e ao chefe da Missão das Nações Unidas de Estabilização do Haiti (Minustah), Edmond Mulet, o homem forte do secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, no país.
Segundo Seitenfus, o primeiro-ministro haitiano, Jean-Max Bellerive, perguntou aos presentes se o mandato do presidente René Préval estava em risco. Fez-se silêncio, o que ele interpretou como um sinal de alerta. "Quem cala, consente. Fiquei impressionado com aquele silêncio. Horas antes, estavam todos felizes com a realização das eleições. De repente, todos estavam com medo." Seitenfus diz que, secretamente, foram discutidas duas hipóteses para a solução da crise. A primeira era encurtar o mandato de Préval, conduzi-lo para fora do país e instituir um governo provisório. A segunda, esperar o fim do mandato de Préval e instituir um governo provisório de até dois anos para que se fizesse uma outra eleição. "O próprio Edmond Mulet me disse que tinha oferecido um avião ao Préval para sair do país. Mas o presidente disse que estava mais para Salvador Allende do que para Jean-Bertrand Aristide [ex-presidente que se exilou na África do Sul em 2004, após ter sido deposto com o apoio norte-americano]", conta Seitenfus. O embaixador brasileiro no Haiti, Igor Kipman, nega que essas propostas tenham sido apresentadas, mas se recusa a contar o que ocorreu naquela reunião. Mulet, chefe da Minustah, que também poderia ajudar a esclarecer o caso, também não quis se pronunciar.
Dois meses depois do primeiro turno das eleições haitianas, o cenário político do país ainda estava indefinido. O segundo turno, que deveria ter sido realizado em janeiro, foi adiado por tempo indeterminado. O mandato de Préval termina em fevereiro, mas pode ser estendido até abril. Até lá, parece difícil que o nó político haitiano tenha sido desatado, e a pergunta é inevitável: quem vai comandar o país quando Préval se for?
Ele estava ali: pendurado por um barbante grosso, exposto ao sol do Caribe, à venda em uma rua poeirenta e movimentada de Delmas, cidade da região metropolitana de Porto Príncipe. Era o único retrato em meio a centenas de pinturas abstratas feitas a tinta a óleo. Terno branco, óculos de armação preta e olhos vigilantes. François Duvalier, o Papa Doc, em cores, por US$ 150. Para quem é de fora e só conhece por meio de livros o ex-ditador do Haiti, que comandou o país com mão de ferro entre 1957 e 1971, é fácil imaginar que os haitianos não o queiram vê-lo nem pintado de ouro - que dirá a tinta a óleo. Apoiado política e economicamente pelos Estados Unidos, que temiam o avanço do comunismo da vizinha Cuba, Papa Doc implantou um regime de terror no Haiti. Aniquilou a oposição, censurou a imprensa e criou uma milícia conhecida como Tonton Macoutes ("bichos-papões"), responsável por milhares de assassinatos. Mas ao contrário do que eu mesmo podia supor, percebi que 39 anos depois de sua morte, Papa Doc ainda é admirado no país, cujo território ocupa um terço da Ilha de São Domingos. "Vocês dizem que o Duvalier era ditador, mas para nós ele era um grande líder. O Haiti era a Pérola das Antilhas. Não tinha essa pobreza, essa sujeira e nem tinha corrupção. Ele era violento, sim, mas tinha um braço forte e uma mão amiga", relata o tradutor haitiano Pierre Andregéne, 58, repetindo o slogan do Exército Brasileiro, para quem ele trabalha atualmente.
Não é apenas nos quartéis que Duvalier segue cultuado. Nos campos de desabrigados, o desejo por um líder forte, carismático e capaz de tirar o país do caos em que ele se encontra cresce a cada dia. Desde 1986, quando o filho de Duvalier, Baby Doc (que governava o país desde 1971), foi deposto, o Haiti viveu uma sucessão de golpes militares e períodos breves de democracia. Quem mais chegou perto do carisma de Duvalier foi o ex-padre Jean-Bertrand Aristide, eleito presidente duas vezes por voto popular e deposto com o apoio dos Estados Unidos em 2004. E enquanto tudo isso acontecia, o Haiti deixou de ser a "Pérola das Antilhas" para se transformar no país mais pobre do Hemisfério Ocidental.
O prédio da Faculdade de Etnologia do Haiti é um dos poucos edifícios do centro de Porto Príncipe que não desmoronou com o terremoto. Mesmo assim, sua aparência é péssima. Tem três andares, a fachada pintada de um branco encardido, corredores escuros e salas que parecem abandonadas. Mas no pátio, o vai-e-vem de alunos é vivo e intenso. Alguns deles usam cordões com a efígie de Ernesto Che Guevara e discutem o futuro do país. Enquanto isso, em uma das salas da Faculdade, o professor Antoine Augustin se mostra preocupado. Com a voz grave e um semblante aparentemente tranquilo, Augustin é pessimista. "As tentativas de impor uma democracia nos moldes ocidentais fracassaram no Haiti. O povo está desmobilizado politicamente e isso pode abrir portas para novos ditadores. Hoje, o povo não quer democracia. Quer comida", define. Na noite do dia 16 de janeiro, as portas do Haiti se abriram, novamente, para um ditador. Jean-Claude Duvalier, o Baby Doc, desembarcou de surpresa no país que governou por 15 anos. Acusado de corrupção, desvio de dinheiro, crimes contra os direitos humanos e de ter comandado um dos regimes mais violentos do século passado, Baby Doc foi recebido com festa por uma multidão de haitianos.
A Natali Aladin, responsável pelo orfanato Fondation dês Enfantes de Dieu (Fundação dos Filhos de Deus), diz, com os olhos voltados para o teto baixo de amianto do local: "São US$ 70 mil por dois anos". Por US$ 70 mil eu poderia alugar o orfanato, com suas 30 crianças e adolescentes, para fazer o que bem entendesse. Frederick, meu tradutor, suava de nervoso, afinal, para chegar a Anatali e ouvir sua proposta, precisamos nos disfarçar de missionários à procura de uma instituição para ajudar.
O aluguel de crianças é uma modalidade nova de transação no Haiti. Desde o terremoto de 2010, o número de jovens abandonados aumentou assustadoramente. Surgiram, então, centenas de casas que se autodenominam orfanatos oferecendo cuidado, quase todas privadas e clandestinas. Segundo o Unicef, Fundo das Nações Unidas para a Infância, há aproximadamente 700 casas como essa em funcionamento no país, mas boa parte não tem registro junto ao governo haitiano. Sem uma fiscalização rigorosa, ninguém tem controle sobre o quanto essas entidades arrecadam, o quanto gastam e como as crianças são tratadas. "Muita gente usa as crianças como um meio de conseguir recursos. Às vezes, elas nem são órfãs. Os donos dessas casas chegam às famílias e prometem que as crianças serão bem tratadas nessas instituições. Para muitos pais e mães, qualquer lugar que ofereça comida duas vezes por dia já é um bom lugar. Que mãe não deixaria seu filho ir embora se fosse para ter uma vida melhor?", indaga Virgínia Pérez, coordenadora do Programa de Proteção Comunitária do Unicef.
O orfanato de Anatali é uma casa de pouco mais de 200 metros quadrados construída em alvenaria, encravada em Delmas, na região metropolitana de Porto Príncipe. Para se chegar até ela, é preciso enfrentar um labirinto de ruas estreitas e sem asfalto que passa por um campo de desabrigados repleto de barracas de lona.
Os 30 jovens se amontoam em beliches de metal em dois quartos mal ventilados e de teto baixo. Os colchões são finos e sujos e os únicos que estão cobertos têm lençóis com o brasão do Exército Brasileiro, que faz doações regulares para o local. Eles deveriam, na própria casa, ter aulas do que os haitianos chamam de Ensino Clássico (o equivalente ao nosso ensino fundamental), porém, o que mais se assemelha a uma sala de aula é a garagem. Algumas cadeiras de madeira espalhadas pelo chão e um quadro branco constituem toda a estrutura pedagógica do local. Dentro da casa, o ar é úmido e tem um cheiro agudo de urina. O odor vem do banheiro, que não tem portas e é coletivo.
Não há quintal para as crianças brincarem. Também não há tempo para isso, já que elas são as principais responsáveis pelas tarefas domésticas. Varrem, lavam e cozinham. E enquanto põem ordem na casa, Anatali e seu marido se revezam na administração burocrática.
Sentado no chão sujo do terreno nos fundos da casa, Vladimir, 17 anos, quebra alguns gravetos e os coloca numa fogueira sobre a qual está uma panela de ferro fundido com o jantar das crianças. Uma sopa feita com a água de um camburão de plástico, arroz e alguns legumes doados pelos brasileiros era a primeira refeição do dia - e já eram 15h40. O silêncio de Vladimir revela o clima de tensão que impera na casa. Mais do que medo, o olhar do garoto tem algo de melancólico: talvez ele também saiba que, assim como no Brasil, as crianças haitianas preferidas para adoção, legal ou ilegal, são as meninas de até 2 anos de idade. Vladimir está fora até da mira dos traficantes de seres humanos, que antes do terremoto movimentavam duas mil crianças anualmente, segundo estimativas do Unicef. Com quase 18 anos, as chances de voltar a ter família são mínimas. Até lá, a casa sem sorrisos continuará a ser o seu lar.
"Se vocês quiserem fechar o negócio, é melhor fazer rápido. Em janeiro chega um pastor norte-americano que está interessado em alugar o orfanato", interrompe Anatali, em um português carregado de sotaque. "Vocês não vão ter que se preocupar com nada. Nos papéis, eu ainda serei a responsável pela casa", afiança. Se o aviso de Anatali foi um blefe ou não, é difícil saber. Também é difícil saber se ela é algoz ou vítima. A dura verdade do Haiti é que é impossível dizer onde as crianças estariam pior: num orfanato como aquele ou nos campos de desabrigados.
Centenas de organizações não-governamentais de todo o mundo enviam missionários ao Haiti para encontrar instituições que possam ser ajudadas ou para montar, elas mesmas, seus próprios orfanatos. Diante da burocracia imposta pelo governo haitiano para que estrangeiros abram instituições do gênero (algumas taxas chegam a US$ 10 mil), muitas entidades acabam se associando a casas já estabelecidas, ainda que de forma ilegal.
O aluguel de orfanatos é apenas um dentre as centenas de problemas que assolam o Haiti, uma terra sem lei - e com pouca esperança. Ernest Paul, um garoto de 14 anos, exemplifica a nova mazela haitiana: o cólera. Deitado em uma cama de madeira sem colchão, Ernest tenta alcançar uma mosca que passeia por seu rosto com o olhar. É tudo o que consegue fazer - a doença lhe tirou as forças e ele não consegue espantá-la com as mãos. Beatrice, 28, tenta ajudar como pode, mas está cansada. Além de Ernest, seu filho mais novo, de apenas 4 anos e cujo nome não consegui descobrir, também está internado no centro de atendimento a doentes do cólera montado pela organização não-governamental Médicos Sem Fronteiras (MSF). Tudo o que faz para um filho, tem de fazer para o outro em um revezamento exaustivo. Desde que chegou ao hospital de campanha montado pela MSF, ela limpa o balde colocado abaixo da cama para receber as evacuações dos filhos, passa-lhes um pano umedecido na boca e dá-lhes de comer quando o apetite deles melhora.
A epidemia de cólera que atingiu o Haiti em meados de outubro do ano passado já matou quase quatro mil pessoas, segundo o Ministério da Saúde. Para ter uma dimensão da tragédia, em 2009, 4.946 morreram de cólera em 45 países, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). Nos últimos quatro meses, a cada hora, pelo menos um haitiano morreu em decorrência da doença. Segundo a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), até o início de 2010, somente 12% da população tinha acesso a água encanada. O saneamento básico só chegava a 17% dos haitianos. A situação ficou ainda pior com o terremoto, quando encanamentos se partiram e reservatórios ficaram inutilizados.
Caminhando pelas ruas sujas e movimentadas de Porto Príncipe, ou pelas ruelas estreitas das favelas de Cité Soleil, é difícil acreditar que o cólera terá fim em um futuro próximo. O lixo está por toda parte. Montanhas de entulho se misturam a garrafas PET, sacos plásticos e toda sorte de dejetos. Um córrego que corta Cité Soleil tem tantas garrafas plásticas que é possível caminhar 400 metros em suas margens sem conseguir ver água. Mesmo nas áreas mais bem frequentadas da cidade, homens e mulheres não hesitam em baixar as calças ou saias para urinar e defecar nas ruas. O esgoto, sem tratamento, é jogado diretamente no mar ou nos pequenos córregos que cortam o país. "Com a chegada das chuvas, a situação deve ficar ainda pior", alerta o médico Sérgio Cabral, da MSF.
Organizações como a MSF montaram megaestruturas com milhares de profissionais haitianos e estrangeiros, pagos em dólar ou euro, para combater o surto, mas a atuação em peso dessas entidades também gera críticas. "Cada um vai para um lado. Não há uma coordenação de forças e isso enfraquece ainda mais o nosso sistema de saúde. Não podemos concorrer com as ONGs. Perdemos muitos médicos para elas", analisa Alex Lasségue, diretor do Hospital Generale, o maior, mais antigo e um dos mais atingidos pelo terremoto. Cerca de 60% da estrutura do hospital construído pelos norte-americanos na década de 1920 (os ianques invadiram duas vezes o Haiti) está comprometida e a reforma só deverá começar em março.
Chefe da missão da MSF no Haiti, o italiano Stefano Zannini se defende e diz que o governo haitiano é refém das doações internacionais e que isso inviabiliza a criação de um sistema público de saúde no país. "Conversei com o ministro da Saúde e ele me disse que o governo gostaria de criar um sistema de saúde público e gratuito para o Haiti, mas disse que não pode falar isso publicamente. Se o fizer, os doadores internacionais vão embora. Veja bem... 60% do orçamento do Haiti é proveniente de doações internacionais. Qual poder decisório um Estado pode ter se mais da metade de seu orçamento vem de fora?"
Jacques Gabriel, ministro do trabalho público, Transporte e Comunicações do Haiti, se locomove com dificuldade dentro de sua sala. Não por ter mais de 50 anos de idade ou pelos seus quase dois metros de altura. É que o gabinete improvisado está uma bagunça. Caixas de papelão, armários de metal com gavetas que não conseguem fechar e mapas rasgados ocupam o espaço. Mas nada disso incomoda mais o ministro do que a poeira. E ela está em qualquer lugar de Porto Príncipe. "Sou alérgico a poeira. Tenho muita dificuldade em trabalhar porque aqui tem muita. O terremoto destruiu o prédio do meu ministério e o jeito foi vir para cá", relata.
No Champ de Mars, a poucos metros do prédio destroçado onde Jacques Gabriel deveria estar despachando, o complexo de praças que um dia foi orgulho dos haitianos agora serve de moradia para milhares de pessoas, que perderam suas casas após o terremoto. As barracas se diferenciam pelo tamanho e pelas cores. As cinzas quase sempre são feitas com lonas doadas pela USAID, órgão norte-americano de assistência. As azuis, mais espaçosas, foram doadas pelo governo chinês. Tem até uma em forma de hexágono, branca, enviada por Taiwan.
Rosemene Derenni não ganhou nenhuma das três. Desde 12 de janeiro de 2010, ela vive em uma barraca improvisada feita com algumas placas de madeira e um pedaço de lona ao lado do Museu do Panteão Nacional, onde estão relíquias dos heróis do Haiti. Rosemene é pintora e, desde o terremoto, perdeu a pequena casa de alvenaria que tinha na periferia de Porto Príncipe. Hoje, vive sozinha em seu barraco, alternando sua rotina entre buscar comida em alguma ONG e pintar quadros, sempre mostrando um Haiti alegre e rural. "Um dia meu país vai voltar a ser o que era e minhas pinturas vão fazer sentido. Deus há de me dar força para continuar viva e ver isso."
Para tomar banho, a pintora recorre a uma torneira pública instalada pelo governo a pouco mais de 200 metros de sua barraca. A limpeza lhe impõe alguns constrangimentos: ela tem de ficar nua em praça pública para se banhar. Rosemene sabe que não vai longe com os trocados que consegue pelas telas, mas sua esperança é receber uma casa do governo assim que a reconstrução do país começar. "Não estou vivendo. Quem não tem sua casa não tem sua vida", decreta.
Do outro lado da cidade, em seu gabinete apertado, Jacques Gabriel não tem boas notícias. "A reconstrução só vai começar em março. Estamos esperando os recursos internacionais", explica o ministro, deixando claro que até lá, pouco poderia fazer.
A incapacidade de ação do governo e da comunidade internacional assusta quem chega a Porto Príncipe um ano depois do terremoto. Muito pouco foi reconstruído. O símbolo da demora é o Palácio Nacional do Haiti, residência oficial do presidente da república, que ainda está completamente destroçado.
Em março de 2010, dois meses após o terremoto, a comunidade internacional anunciou a formação de uma comissão para reconstrução do Haiti. Ela seria responsável pela captação dos US$ 11 bilhões necessários para as casas, obras de infraestrutura e prédios públicos. Um ano depois, menos de 10% desse valor havia sido liberado. Mas nem é preciso ser bom em contabilidade para notar que, depois que os holofotes da atenção mundial deixaram o Haiti, a situação no país pouco avançou. As ruas da capital, Porto Príncipe, estão lotadas de entulho. Um estudo da ONG britânica Oxfam estima que menos de 5% de todos os escombros gerados pelo terremoto foram removidos. Por isso tanta poeira. As milhares de casas populares prometidas ainda não saíram do papel. Hospitais danificados pelo sismo também não foram reformados. O Haiti está parado e com poucas perspectivas de entrar em movimento.
No início de janeiro, Bill Clinton, ex-presidente dos Estados Unidos e presidente da Comissão de Reconstrução do Haiti, disse estar frustrado com a velocidade das obras no país e pediu mais empenho da comunidade internacional. Mas enquanto o dinheiro não chega, a frustração não será privilégio apenas de Clinton. Jacques ficará sem um gabinete novo - e Rosemene sem sua casa.