Em 2010, Keith Richards, Mick Jagger e Charlie Watts relembravam a gravação da corajosa obra-prima dos Rolling Stones, Exile on Main St.
Rolling Stone EUA, David Gates Publicado em 20/07/2010, às 03h07 - Atualizado em 24/08/2021, às 17h18
"Você não consegue um take até o Keith começar a olhar para o Charlie e chegar perto dele e, depois, Bill se levantar da cadeira. Então, isso se transforma nos Rolling Stones", diz Andy Johns, engenheiro que gravou boa parte de Exile on Main St. (1972), dos Stones, há quase quatro décadas.
"No resto do tempo, é só besteira. Mas se o Bill se levanta da cadeira e o Keith está olhando para o Charlie, você sabe que está chegando perto. E vai de 'Que diabos é isso?' a 'Meu Deus do céu!' É uma experiência de outro mundo."
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Embora o currículo de Johns como engenheiro e produtor inclua mais de 200 projetos, com álbuns que vão de Led Zeppelin IV ao IV (2006) do Godsmack, ele nunca conseguiu fugir daquele porão abafado no sul da França, com Keith Richards, Mick Jagger, Mick Taylor, Bill Wyman e Charlie Watts - ainda jovens e flexíveis, descamisados e suados - tocando repetidamente versões claudicantes e fora do tom de músicas ainda incompletas, até os Rolling Stones se materializarem repentinamente. Só que o s Stones também nunca conseguiram fugir de lá.
Exile on Main St. foi relançado nos Estados Unidos em um pacote mais do que luxuoso, o qual inclui um CD remasterizado com o álbum original, outro disco com dez gravações (algumas com letras e vocais recém-adicionados), um livro de 64 páginas e um documentário em DVD.
Para quem quer vivenciar novamente Exile em sua forma mais pura, também há uma versão remasterizada em vinil. "Se eu me lembro de como isso funcionava", diz Jagger, com sua famosa ironia, "você tocava um lado, ia comer alguma coisa e depois botava o outro para tocar".
Deixaremos para discutir se Exile é ou não o melhor álbum de rock and roll de todos os tempos para outra hora: em 2003, uma pesquisa entre críticos, músicos e representantes da indústria musical levou a edição norte-americana desta revista a colocá-lo na sétima posição, atrás de, Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band(1967), Pet Sounds (1966), Revolver (1966), Highway 61 Revisited(1965), Rubber Soul (1965) e What's Going On (1971).
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Mas mesmo se você adotar essa lista, o duro, desafiador, depressivo e às vezes exuberantemente desagradável Exile é, certamente, o álbum mais roqueiro de seu segmento. Nenhum dos outros chega tão perto da síntese ideal de blues, country e R&B - e nenhum se aproxima de sua energia resoluta.
Infelizmente, a safra desses discos - Exile é o mais recente deles - não representa com precisão a contínua vitalidade do rock. E, se você fica deprimido ao pensar que essa obra-prima foi lançada no mesmo ano em que a primeira calculadora portátil, como seus criadores se sentem?
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A obsessão deles com Exile terminou quando a de todo mundo começou - isto é, quando a última faixa finalmente foi mixada - e desde então eles esgotaram o assunto, mas estão colaborando; sua gravadora, a Universal Music, investiu uma fortuna nessa empreitada conspicuamente nostálgica.
As primeiras palavras a sair da boca de Richards são: "A droga do Exile on Main St., certo?" Ele ri quando diz isso, mas passou 2009 "preso tentando se lembrar do passado" enquanto trabalhava com o escritor James Fox em uma autobiografia a ser publicada em outubro.
"Se procurassem os autos dos tribunais", conta, "teriam mais fatos do que eu". Os outros Stones e o círculo deles estão compartilhando lembranças para o livro de Richards. O novo documentário, Stones in Exile, precisava de mais entrevistas e - agora que o pacote finalmente está saindo - é a vez de os repórteres perguntarem. "Já aconteceu", afirma Watts. "Tenho certeza de que o Mick está cheio disso, porque ele não é exatamente fã do passado."
Nenhum dos Stones é. Embora Watts tenha ouvido as "faixas bônus" ("Acho que é assim que as chamam atualmente", diz), ele não escutou novamente o álbum original. " Mas nunca escuto nossas coisas - nenhuma delas."
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Quando a Universal sugeriu a reedição de Exile, Richards não reagiu positivamente. " 'Não sei, lançar um disco antigo?' E eles argumentaram: ' Ei, é um álbum muito interessante, tem uma espécie de aura em volta dele'."
Agora que o revisitou, parece mais carinhoso do que reverente. "Quer dizer, não é como se nunca o tivesse ouvido depois de gravarmos, claro", afirma, "mas, escutando-o inteiro agora, acho que ele ainda se segura.
Até gostei de 'Torn and Frayed'. Amo 'Sweet Virginia', e acho 'All Down the Line' matadora, é incrível conseguir tocá-la." Jagger sabe tudo sobre essa "aura" - concorda com o resto da banda que Exile era a escolha certa para uma reedição de luxo - mas não lhe peça para explicar por que fãs e críticos têm uma fixação pelo álbum.
"Acho que significa coisas diferentes para várias pessoas", diz. "Não sei o porquê, de verdade. Elas gostam de sua amplidão, dos estilos diferentes, dos trechos estranhos, do som bruto, e pronto. Quem sabe? As pessoas gostam de muitas coisas nele. Acho que é um tanto extensivo, então sempre dá para encontrar alguma coisa que você não ouviu antes, talvez?"
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Jagger reconhece que falar sobre músicas antigas e memórias "não é a minha" mas foi o primeiro a vascular o material gravado entre 1960 e 1972 a partir do qual o álbum original foi montado.
Ele entregou discos rígidos (com cerca de 300 horas de musica) a Don Was, produtor dos Stones desde 1983. "Acho que foi um presente de grego", relembra Was. "Não era algo que eu queria fazer, ele meio que se desculpou por me meter nisso."
Jagger também deu a ideia de um documentário sobre Exile e embora a maioria das faixas instrumentais para o CD bônus fosse forte - Richards passou apenas uma hora acrescentando guitarra aqui e ali -, cinco delas (mais uma instrumental curta) nunca haviam recebido vocais ou letras, e Jagger tratou de terminar o trabalho.
"Ouvi um pouco do álbum e simplesmente incorporei a atitude. Não sei se isso as diminui ou não, quer dizer, posso ter mentido para você - e você teria acreditado totalmente em mim." O engenheiro Bob Clearmountain, que mixou as novas faixas, mexeu um pouco na voz de Jagger "para tentar fazer com que ele soasse como era há 30 anos".
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E é preciso ter alguém com ouvido apurado - Charlie Watts, por exemplo - para detectar uma firmeza delatora e um timbre mais fino e cortante do que Jagger tinha aos 20 anos. "Minha única crítica sobre as novas faixas é que a voz soa como se tivesse sido gravada ontem", diz Watts. "Isso é inevitável, mas acho que o Mick gosta delas. Estava bem satisfeito quando as entregou para mim, deve ter curtido."
Jagger, Was e Clearmountain tentaram manter o som das faixas recém-completadas o mais parecido possível com o ambiente áspero e cru criado por Johns e pelo produtor de Exile, o falecido Jimmy Miller (o próprio Miller não gostava dele, e Jagger também já expressou descontentamento).
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Com exceção de alguns vocais secundários e uma seção de cordas de seis violinos em "Following the River", eles não usaram músicos que não estavam nas sessões de gravação originais; para uma faixa, "Plundered My Soul", Jagger levou Mick Taylor, que saiu dos Stones em 1974, a um estúdio de Londres, no ano passado, para incluir "aquelas linhas principais de Mick Taylor".
Was e Clearmountain até mantiveram a mesma colocação dos instrumentos no espectro esquerdo-direito. "Se o piano está em um determinado ponto em Exile, está no mesmo ponto agora", afirma Was. "Não tentamos mudar nada."
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Richards, sempre com uma metáfora citável na ponta da língua, diz que retocar as gravações "não foi repintar o sorriso da Mona Lisa. É uma obra única, feita em um lugar peculiar, e tinha de soar assim".
Algumas das músicas que entraram no Exile original, como "Shine a Light," "Sweet Virginia" e "Stop Breaking Down", haviam sido gravadas no Olympic Studios, em Londres, em sessões para os álbuns anteriores dos Stones, Let It Bleed (1969)e Sticky Fingers (1971), mas eles gravaram a base das músicas que melhor o definem - "Tumbling Dice," "Happy" e "Rocks Off" - em Nellcôte, a mansão alugada por Richards em Villefranche-sur-Mer, na Côte d'Azur francesa, entre o final de junho e outubro de 1971.
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Se ainda é difícil se preparar para ouvir Exile - Don Was admite que "até hoje é muito mais fácil colocar Let It Bleed para tocar" - isso pode ter algo a ver com as circunstâncias nas quais o disco foi gravado. Richards fala do período em Nellcôte como "uma luta para a banda se manter viva", e sem dúvida os Stones deixaram quaisquer tristezas e ansiedades individuais e coletivas que tinham transparecer nas faixas.
Os Stones devem ter sido um grupo de pessoas nervosas naquele verão. Quatro anos antes, Jagger e Richards haviam sido presos com drogas pela primeira vez; a banda tinha demitido seu primeiro empresário (e mentor), Andrew Loog Oldham; e Richards estava morando com Anita Pallenberg, namorada de Brian Jones, membro fundador e ex-líder da banda.
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Então, em 1969, eles demitiram Jones, e o substituíram por Mick Taylor, o guitarrista de 20 anos do John Mayall's Bluesbreakers. Pouco depois, Jones apareceu morto em sua piscina.
Naquele outono, na Altamont Speedway, na Califórnia, o Hell's Angels matou um fã enquanto a nova formação dos Stones tocava "Under My Thumb". Em 1971, a banda teve um novo álbum de sucesso, Sticky Fingers- e descobriu que, apesar das vendas, estava falida.
Graças a uma relação desastrosa com o agente, Allen Klein, cada um deles (exceto o recém-contratado Taylor) devia mais de £ 100 mil em impostos. O grupo também rompeu com Klein, mas ele ganhou os direitos de todo o catálogo de músicas lançadas antes de 1970, e, devido à alíquota de imposto confiscatória da Inglaterra, os Stones não tinham esperanças de pagar as contas e voaram para a França.
Por que a França? Principalmente porque era perto e tinha leis fiscais mais brandas. Logo depois da mudança, Jagger se casou com a modelo nicaraguense Bianca Pérez Morena de Macías, em uma cerimônia em Saint-Tropez para a qual ninguém dos Stones, exceto Richards, foi convidado. Enquanto isso, Richards e Anita refugiaram-se em Nellcôte com o filho, Marlon, e se tornaram Lorde e Dama da Anarquia.
É difícil sentir pena desses refugiados de alta categoria - e, para mérito deles, os integrantes dos Stones não pareciam sentir pena deles mesmos. "Ei, o que é tão difícil em gravar um álbum na Riviera?", Richards se lembra de pensar na época.
"Sabe, deitado numa praia sob o sol? Jesus, o que mais eu poderia querer?" Ainda assim, eles tinham casas e, em alguns casos, famílias, na Inglaterra, e Watts, por exemplo, nem falava francês. "Como um legítimo inglês", Wyman escreveu em sua autobiografia: "Eu tinha dúvidas a respeito do exílio no sul da França... mas minha relutância em ir foi substituída por nossa condição financeira desesperadora".
Quando chegaram - Wyman em Grasse, Jagger em Biot e Watts, que não gostava da Côte d'Azur, em uma fazenda a seis horas de distância -, começaram a procurar um estúdio onde gravar um sucessor para Sticky Fingers, que havia sido lançado enquanto eles saíam da Inglaterra, em abril.
"De repente, tivemos de deixar tudo, onde sabíamos como trabalhar e onde estávamos acostumados a trabalhar", conta Richards, "e agora - bum, vamos sair. Como vamos montar tudo em outro lugar?
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Achávamos que em Cannes, Nice, Monte Carlo ou Marselha haveria um estúdio decente para trabalharmos. Nada disso. Quer dizer, esses caras estavam gravando jingles franceses. Então, para encurtar a história, lembramos que tínhamos nosso próprio caminhão de gravação".
Como já o tinham usado em Stargroves, a casa de campo de Jagger em Berkshire, para partes de Sticky Fingers, o que poderia dar errado? "Então", diz Richards, "todos se viraram para mim ao mesmo tempo e olharam para meu porão. O principal [de Exile] foi feito em Nellcôte, no porão. Estou vivendo em cima da fábrica, e que fábrica era aquela".
A mitologia de Nellcôte, as lendas sobre privilégio decadente e prazeres fora da lei - um dos quais era o vício de Richards em heroína - e a sinistra história da casa deram o tom da reação a Exile.
Richards ainda afirma que a majestosa mansão, construída por volta de 1890, com suas colunas, espelhos e cortinas onduladas, serviu de quartel da Gestapo durante a Segunda Guerra Mundial, e a principal evidência disso parecem ser fofocas e as suásticas que ele e Johns viram nas saídas de aquecimento do porão (essa teria sido uma forma muitíssimo estranha de homenagear o Reich: a suástica, um símbolo antigo, era um motivo decorativo comum muito antes dos nazistas).
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O quarto onde Watts ficava, lembra Johns, "parecia o dormitório de uma prostituta cara. Tinha uma cor rosa e uma cama grande. Na verdade, lembro que transei com uma garota ali e fui descoberto".
Em um momento, o trabalho teve de parar porque algumas guitarras foram roubadas. "É o sul da França, o que você espera?", diz Richards. "Quero dizer, eles abrem cassinos lá, sabe? Na verdade, recuperei a maioria delas e peguei o cara que fez isso, mas essa é outra história." Ele dá uma risada de pirata. "Ele não está mais andando por aí."
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Toda essa opulência movida a ópio parece se encaixar com as sonoridades sombrias e ásperas de Exile, seu ar de ameaça sexy e suas letras dilapidadas e devastadoras. No mundo de Exile, um amante é um "parceiro de crime" e quem teve o coração partido anseia pelos confortos da crueldade.
Mas, depois de todos esses anos, ver astros do rock consumindo drogas não parece mais ser peculiarmente escandaloso para os padrões de decadência dos vídeos de rap. Nellcôte parece quase confortável. Portanto, a reedição de Exile pode ser uma oportunidade de ouvir o álbum como ele sempre foi: não apenas uma obra-prima, mas um triunfo do trabalho em condições surpreendentemente adversas.
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Os integrantes dos Rolling Stones podem ter imaginado ficar deitados na praia tomando sol, mas aquele "porão sujo e nojento" cantado por Jagger em "Let It Bleed", de 1969, acabou se tornando profético.
"Não havia ar ali", lembra Andy Johns. "Havia uma ventilação minúscula de uns 12 ou 15 centímetros em uma janela, no canto, que girava umas 20 vezes por minuto. Era terrível." E sombrio. "Era uma atmosfera estranha", relembra Richards. "Era muito, muito escuro - e empoeirado. Não era um ambiente bom para, digamos, respirar.
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Mick Taylor e eu olhávamos um para o outro no meio da escuridão e dizíamos: 'Ok, em que acorde está?' Era muito hitleresco - como os últimos dias em Berlim." O porão era dividido em cômodos pequenos e os músicos levavam amplificadores e tambores de um lado para outro, em busca de sons interessantes.
Enquanto isso, a unidade móvel com o equipamento de gravação ficava estacionada no lado de fora. "A comunicação eletrônica não estava funcionando", lembra Johns, "e eu tinha de sair do caminhão, correr pela casa, descer a escadaria de ferro - em espiral - e gritar 'Pessoal! Para tudo!'"
Os músicos tinham de fazer o mesmo na direção contrária. "Nossa, cara, muita corrida", conta Richards. "Se eu quisesse ouvir um playback, era sair do porão, ir até o térreo e... Acabou se tornando parte da rotina."
Pelo menos essa perturbação era previsível - diferentemente da eletricidade. "A banda estava operando os equipamentos a partir do caminhão", diz Johns. "E alguém teve a brilhante ideia de, para economizarmos, fazer um 'gato' da rede elétrica da rua."
Isso dá uma noção clara de qual deve ter sido a mentalidade em Nellcôte; diz-se que Richards pagava £ 1 mil por semana de aluguel. "Era como um grande transformador, mas, se a voltagem caísse para um certo nível, apagava tudo.
Quer dizer, é a França, cara. Eles ainda usavam cavalos para arar, e demorava meia hora para fazer uma ligação telefônica. Além do fato de que tudo saía do tom a cada dois minutos por causa do calor, depois você tinha que lidar com a queda de eletricidade - e isso acontecia quando eles realmente estavam tocando no tom. Pela primeira vez em quatro horas."
E a falta de energia tinha seu equivalente humano. "O talento, quando aparecia", afirma Johns, "tinha de atravessar uma espécie de armadura de tédio. Havia tanta espera e vadiagem... Bill chegava na hora, eu chegava na hora, o Charlie também. Mas a programação do Keith era bastante diferente da dos outros".
Wyman ficava particularmente frustrado com a ausência e sumia também. Em algumas das faixas de Nellcôte, Richards ou Taylor tocam baixo; meses depois, em Los Angeles, o baixista Bill Plummer fez gravações para quatro músicas.
Jagger também se ausentava frequentemente - ele tinha se mudado para Paris com Bianca, e voava para as sessões. "Bianca estava grávida e sentindo dores", Jimmy Miller lembrou, em 1977. "Muitas manhãs, depois de ótimas noites de gravação, eu ia para a casa do Keith almoçar, e, em poucos minutos, sabia que algo estava errado. Ele dizia: 'Mick fugiu para Paris de novo'."
No entanto, uma das melhores faixas de Exile surgiu quando todos menos Richards faltaram. "Simplesmente aconteceu numa tarde na qual ninguém estava lá", conta. "Eu tive uma ideia e não havia uma alma por perto. Então Bobby Keys apareceu com o sax barítono, e Jimmy Miller também."
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Miller, um baterista experiente, sentou-se atrás da bateria de Watts - e a base de "Happy" saiu. "Já a tínhamos concluído antes de o resto do pessoal chegar." Mas nem tudo foi um acidente feliz. Outra faixa crucial, "Tumbling Dice", demorou para ser finalizada.
"Tínhamos mais gravações dela do que de qualquer outra coisa", diz Johns. "Acho que pelo menos 30 rolos de 2 polegadas. Keith se sentou lá uma tarde, só tocando a repetição de uma passagem por umas seis horas. Várias e várias e várias vezes. Sentado na cadeira com as pernas para cima ou algo assim."
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Richards não se lembra disso, mas admite que parece plausível. "Se eu não acerto, tento até conseguir", diz. "Isso deve matar os outros de tédio, cara." Richards não era o único amaldiçoado pela música.
"Charlie teve muita dificuldade em tocar a parte final", afirma Johns. "Sabe onde ela quebra antes do fim? Ele teve um bloqueio mental naquilo." Então, novamente, Miller foi para trás da bateria: a versão final tem Watts até o ponto no qual a seção rítmica cai, então Miller entra para a conclusão majestosa.
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Miller passou a pensar em Exile como "o álbum do Keith", e a maior parte de seus momentos inesquecíveis na guitarra - aquela introdução insuportavelmente triste de "Tumbling Dice", o ritmo e o solo sobrepostos em "Happy", com seu som cortante e implorador - pertencem a ele.
Mick Taylor nunca teve a chance de mostrar totalmente sua habilidade, como fez na longa seção final de "Can't You Hear Me Knocking", de Sticky Fingers; ele simplesmente arregaça as mangas e vai trabalhar em "Rocks Off", quando a faixa sutilmente diminui de volume.
Vista em 2010, a condução excessiva, à Eric Clapton, de Taylor em músicas como "Shine a Light" pode soar datada - sua guitarra slide ardente em "All Down the Line" é uma exceção brilhante - enquanto Richards, tocando com mais coração do que técnica, continua atemporal.
Johns se lembra de uma noite em Nellcôte quando Richards deu uma bronca em Taylor por tocar alto demais. "Não sei do que se tratava, alguma política interna, sabe. Porque MickTaylor estava tocando em volta dele, não tinha culpa."
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Entretanto, hoje Richards diz que amou trabalhar com Taylor. "Antes disso, tinha sido Brian e eu. Brian ficou cada vez mais difícil, especialmente depois que roubei a mulher dele - dá para imaginar [como era o clima]. Mas com Mick Taylor meio que tive de descobrir uma nova maneira de tocar. Tínhamos uma separação entre a guitarra solo e a rítmica.
Trabalhando com Brian, não havia uma divisão em particular, mas Mick Taylor era virtuoso, e eu era muito cru. Eu falava 'tenho os acordes, baby, o ritmo e o riff - crie alguma coisa'. Ele ainda me impressiona - se dependesse de mim, ainda estaria na banda."
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Por mais generoso que isso seja, o emprego de Ron Wood provavelmente está garantido. Mas Taylor livrou Richards de ser mal-interpretado como um guitarrista solo convencional - como em "Sympathy for the Devil", de 1968 - e permitiu que mostrasse ao máximo seu anti-heroísmo bagunçado. Richards saiu de Nellcôte mais ele mesmo; Taylor saiu com o único crédito de composição durante sua estada nos Stones para "Ventilator Blues".
Os Rolling Stones finalmente deixaram a França em novembro de 1971; o longo verão havia acabado, mas o lugar estava ficando quente demais para eles.
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A banda passou os meses seguintes em Los Angeles, adicionando os vocais de Jagger, os backing vocals, as faixas instrumentais de Plummer e do tecladista Billy Preston e, o mais torturante, mixando tudo. Não acabou bem - ou, se você prefere o veredicto de Miller e Jagger, acabou brilhantemente.
"Para todos os padrões de gravação de álbuns", afirma Was, "os vocais são insanamente baixos. Você ouve 'Tumbling Dice' e é ridícula - mas é uma das melhores músicas do rock and roll. Está além de qualquer julgamento".
Em 2003, Jagger disse que adoraria remixar Exile, "não só por causa dos vocais, mas porque acho que ele soa desleixado". Hoje, ele parece resignado. "Eu estava bem ali na sala [de mixagem], então sou tão culpado quanto qualquer um. Se você quer ouvir os vocais mais altos, enfie tudo no iTunes e mixe por conta própria."
Atualmente, Jagger e Richards minimizam as histórias de drama, drogas e brigas que permeiam Exile on Main St. - o que aumenta sua mística enquanto obscurece sua conquista. "As pessoas gostam de pensar que Nellcôte era caótica", afirma Jagger, "mas algumas sessões no [estúdio] Olympic, nos anos 60, eram incrivelmente caóticas.
Cheias de pessoas que estavam por ali e, sabe, um desastre. Muito divertidas, mas um tanto deficientes como uma máquina de gravação. Talvez algumas sessões em Nellcôte tenham sido assim, e outras foram dias de trabalho bons e fortes".
Evidentemente, ele está certo quando diz que a maquinaria lenta de Nellcôte não era uma aberração para os padrões dos Stones: os agradecimentos em Sticky Fingers - parcialmente gravado no Olympic - citam "Glyn e Andy Johns [Glyn é o irmão mais velho de Andy], Chris Kimsey, Jimmy Johnson e todos que tiveram a paciência de esperar sentados por 2 milhões de horas".
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Richards parece estar em sintonia com Jagger. "Falam sobre excessos e tudo o mais", diz. "Quero dizer, não dá para compor, gravar e abusar ao mesmo tempo. Eu ia de bar em bar de vez em quando, o de sempre, as pessoas ficavam bêbadas, chapadas, mas não havia nada além das sessões que fizemos para gravar Let It Bleed. Nenhuma bailarina de dança do ventre ou orgias, embora as pessoas gostem de imaginar isso, e eu também, mas não, estávamos ocupados demais trabalhando, cara. Na verdade, eu ia levar as dançarinas, mas elas ficaram presas em Paris."
De qualquer forma, por que alguém se importa quatro décadas depois? A esta altura, Exile não deveria simplesmente se sustentar como uma criação, descontaminada por toda a história de bastidores?
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Só que os Rolling Stones, como todos os astros de rock, também vendem personalidade como parte do produto. Se os Stones se rebelassem contra essa convenção, seu senso de negócio teria vencido há muito tempo.
Então, naturalmente, o novo documentário usa o mito para divulgar a reedição de Exile, com cenas semelhantes a filmes caseiros de Nellcôte mostrando os rapazes em modo mocinho/vilão, fazendo esqui aquático, desfilando com chapéus engraçados, tomando banho nus e, claro, tocando guitarra no porão, enquanto as entrevistas narradas começam a insinuar a "escuridão" que está por vir. Essa é a narrativa que todos conhecemos: problemas no paraíso, estrelando os anjos rebeldes do rock and roll.
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Pela estimativa de Jagger, dez das 18 faixas básicas de Exile saíram dos cinco meses em Nellcôte: isso quer dizer uma faixa a cada duas semanas. "Talvez a lenda seja só 70% verdadeira", afirma Was, "ou talvez exista mais do que acreditamos, mas independentemente do que realmente aconteceu em Nellcôte, quando eles desceram a escada para gravar um disco, ninguém se desfez.
Por todas as efemeridades que os cercavam, ter esse tipo de resultado, conseguir fazer este álbum duplo e, agora, com mais dez músicas - e há mais, só paramos por aí - quer dizer, você tem de ser muito bom para trabalhar nesse nível".
Uma parte do material, lançada extra oficialmente em discos piratas como Taxile on Main St., sugere que os integrantes dos Stones não foram sempre tão bons. Quando não acertavam na mosca, podiam soar muito como, digamos, um grupo de pessoas debilitadas fazendo uma jam no porão de alguém.
Os membros dos Stones gastaram tempo demais em Nellcôte chapados e vagabundeando? Bom, o quanto é demais? E era o tempo de quem? No fim, nunca foi da nossa conta, por mais assustadoramente fascinantes que sejam as lendas e por mais que os próprios Stones chamem nossa atenção com o barulho da publicidade.
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O que a banda realmente atingiu - simplesmente o álbum mais importante do rock - deveria calar a boca de todos. Mas é claro que nunca conseguirá isso.
Esta matéria foi publicada originalmente em julho de 2010, na edição 45 da Rolling Stone Brasil. O título original era A Força de uma Lenda, e relembrava o processo do disco Exile On Main St. e a reedição dele.
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