“Estava tão ansiosa que achava que ia explodir com tantos segredos”, diz a cantora após vencer distúrbio alimentar
“Podemos começar de novo?” A mulher alta usando camiseta vintage Rolling Stones não está feliz com seu grito. Os imponentes riffs de guitarra do clássico do T. Rex “Children of the Revolution”, de 1972, recomeçam e, desta vez, Kesha saúda com um “Yowww!” feral. Muito melhor. Ela segue em frente.
Kesha está atualmente uivando na sexta tomada da noite em um estúdio de Los Angeles, depois de tirar o paletó de seu terno de listras brilhantes feito sob medida, que combinou com botas de caubói. Canta muito bem, está linda, mas quem é essa pessoa? Claramente, a antiga Ke$ha – dos vocais digitalmente retocados e que “escovava os dentes com uísque” – não pode “vir ao telefone no momento”. Aos 30 anos, recuperando-se de um transtorno alimentar que quase a matou e de uma batalha legal intensa e ainda não resolvida com seu produtor de longa data, Kesha Rose Sebert quer finalmente mostrar quem realmente é.
Um amigo de Nashville que a orienta com “ioga e cantos e tal” – “toda essa merda hippie” – disse que “todos queremos ser vistos”, e essa pérola de sabedoria ressoou. “Sinto que sou eu mesma pela primeira vez na vida”, afirma Kesha. “E fiz um disco do qual estou extremamente orgulhosa, do fundo do coração – escavei nas minhas entranhas as letras mais sinistras, o que foi muito difícil para mim. E as pessoas gostam!”
A escavação de entranhas resultou no eclético Rainbow, seu muito adiado terceiro álbum, lançado em agosto, que se mostrou um dos melhores do ano – cru, emocionalmente complexo, uma surpresa total. Ela pega forte no rock, especialmente em duas faixas empolgantes gravadas com o Eagles of Death Metal, que conhece desde que era uma superfã adolescente, entrando escondida nos shows e ficando amiga da banda aos 14 anos. “Perguntei: ‘você quer a gente no disco quando há tanta coisa em jogo?’”, conta o líder do Eagles, Jesse Hughes. Também há country, afinal a artista passou parte da infância em Nashville. Ela faz um dueto com Dolly Parton em “Old Flames (Can’t Hold a Candle to You)”, música antiga coescrita pela mãe de Kesha, Pebe Sebert, que foi um sucesso country na voz de Dolly em 1980.
Ela decidiu não falar mais uma palavra sobre a guerra contra o ex-produtor, Dr. Luke (nascido Lukasz Gottwald). Kesha o processou em 2014, acusando-o de “anos de abuso incansável” e de estupro – o que Luke negou veementemente e revidou com processos por difamação e quebra de contrato. Ele alega que Kesha fabricou as alegações para tentar sair de seus contratos. Agora, a cantora parece estar se coçando para superar tudo isso. Hughes é menos discreto sobre o assunto. “Quando ela estava passando por aquela merda”, diz, sem ser questionado, “fomos como seus irmãos mais velhos. Eu perguntava: ‘Bato em quem? Quer que eu vá até a casa dele? Quer que eu encha o cara de porrada e acabe com o contrato? Posso fazer isso’. É assim que me senti. Sem mentira, cara.”
Enquanto sua versão de “Children of the Revolution” toca, Kesha, desconfiada, torce o nariz sardento e com um piercing de argola dourada. Parece boa demais? “Parece que você está ao vivo com a banda”, diz o produtor, Hal Willner, de 61 anos, usando um discurso educado aprimorado ao longo de décadas. “É como quero que soe”, ela diz. Levanta um dedo em advertência e aperta os olhos: “Nem pense em apertar o botão do Auto-Tune”. Willner responde: “Não saberíamos nem como usar isso”. Ela ri, aliviada.
Uma hora depois, ouve uma versão quase final da música, compilada a partir de várias tomadas que gravou. “Ficou bom pra caralho”, diz, movendo a pelve exultante, para ninguém em particular. O que foi isso, alguém pergunta, em meio a risadas gerais. “Então, não é um convite para alguém chupar meu pau”, responde de forma nada convincente, e ri.
Não é só o Auto-Tune que ela deixou para trás. É a ideia de “perfeição”, o pesadelo cintilante, retocado, faminto, impossível que isso representa. “Perfeição” a deixou doente, literalmente. “Não sei lidar com essa palavra”, afirma. “‘Perfeição’ é uma palavra complicada, porque é, tipo, ‘que porra é isso, perfeito? Quem decide isso?’ Tipo podem enfiar isso no rabo.”
Kesha está chorando. Não copiosamente nem nada, mas seus olhos azuis ficam mais brilhantes com a umidade das lágrimas. Ela se emocionou pensando nos fãs, em como têm sido “inabaláveis”. A cantora não menciona, mas alguns deles chegaram ao ponto de fazer protestos públicos para tentar liberá-la do contrato de gravação: “free kesha”, diziam seus cartazes e hashtags. “Não sei o que fiz para merecer gente tão maravilhosa na minha vida”, diz, perdendo a voz.
Em um tribunal de Nova York, em fevereiro do ano passado, Kesha caiu no choro enquanto uma juíza decidiu contra seu pedido de uma injunção rápida que lhe permitiria gravar por um selo diferente (a mesma juíza, posteriormente, desmereceu grande parte do caso, em uma decisão da qual a cantora está recorrendo mesmo enquanto o processo de Dr. Luke por difamação continua, sem data para julgamento). Quando fotos do momento e a notícia sobre o julgamento se espalharam, sua causa se tornou uma sensação internacional, com muitas das mulheres mais famosas da música (e alguns homens) expressando solidariedade: Adele fez isso no palco do Brit Awards e Taylor Swift doou US$ 250 mil para as despesas legais de Kesha.
Sem dúvida ela está emotiva ultimamente – à flor da pele. “Não tenho nada a esconder”, afirma. “O bonito, o bom, o ruim, o feio, tudo.” A recuperação de um transtorno alimentar, explica, traz o mesmo tipo de sensibilidade trêmula e de olhos esbugalhados que adictos em recuperação vivenciam. Um dos cocompositores de Rainbow, Ricky Reed, lembra que ela se desmanchava em lágrimas durante as sessões e precisou de estímulo no começo. “Amo suas ideias”, acabou dizendo a ela. “Você é boa compositora. Quem diz o contrário está errado.”
O disco abre com “Bastards”, uma faixa que condensa o quanto Kesha se afastou de suas raízes electro. Na primeira metade, tudo o que ouvimos é sua voz linda e sem truques, e um violão: “Ainda tenho que provar para muitas pessoas que elas estavam erradas”, começa. “Todos esses desgraçados foram ruins por tempo demais. Ela meio que resume o que acho de gente ruim”, diz. “Eu acho que ser legal não é superestimado.”
Ela já se sentia deslocada desde o ensino fundamental, quando os alunos populares zombavam dela. Era uma criança artística, de uma família incomum. Sabia que queria ser cantora desde os 2 anos e a mãe tratava sua futura carreira como um fato estabelecido, dizendo coisas como “quando você lançar seu primeiro disco...” Kesha fazia as próprias roupas, pensava em videoclipes desde os 9 anos, mas nada disso caía muito bem na escola. “Eu me recusava em me enquadrar”, lembra, “e eles se recusavam a ser legais.” A certa altura, alguns garotos fizeram uma pegadinha elaborada que terminou com as mãos dela amarradas a uma mesa na cantina. Anos depois, enquanto estava sentada em uma premiação “ao lado de Rihanna e Katy Perry e tal”, esses sentimentos voltaram. “Me senti tão forasteira, a mesma pessoa sentada à mesa do recreio.” Rainbow termina com “Spaceship”, em que ela imagina uma volta a um planeta alienígena onde se sentirá em casa.
Durante muitos anos, Kesha sentia que tinha de “vestir um certo número” e tomou medidas cada vez mais extremas para tal. Diz que “algumas pessoas” à sua volta a humilhavam por querer comer (nos documentos do processo, acusou Dr. Luke de chamá-la de “uma porra de uma geladeira gorda” – ele nega que a pressionou para perder peso). “Eu realmente achava que não deveria consumir comida”, lembra. Ela não hesita nesse tópico, não fica emotiva, nem mesmo nas partes mais sombrias. Quer que as pessoas conheçam esta história, virar um exemplo da importância de buscar ajuda e ficar saudável. “E se comia sentia muita vergonha e me forçava a vomitar porque pensava: ‘Ai, meu Deus, não acredito que fiz essa coisa horrível. Estou tão envergonhada porque não mereço comer.” O que, de certa forma, significa que ela decidiu que não merecia viver. “Eu estava lentamente me fazendo passar fome. E quanto pior e mais doente ficava mais bonita estava, na opinião de muita gente’.”
Ela lembra que tudo chegou ao ápice em um jantar com amigos e família. Ficou ali, fingindo comer, tentando pensar em um jeito de esconder a comida. “Pensei: ‘E se forem lá fora e encontrarem essa comida em uma planta? Ou virem na lata de lixo?’ E senti uma ansiedade crescente. Finalmente, falei ‘foda-se. Esta. Merda. Foda-se esta merda. Estou com fome!’ E estou tão ansiosa que acho que vou explodir com todos esses segredos.”
Pouco depois, parou o carro no estacionamento de um posto de gasolina e pediu para a mãe encontrá-la ali. Precisava de ajuda. “Não sabia nem como comer.” A mãe foi junto com ela para a reabilitação. Lá, uma nutricionista ensinou Kesha a se manter viva. “Lembro que chorei com um carboidrato. ‘Não posso comer isso, vai me deixar gorda, e se for gorda não posso ser cantora, porque estrelas pop não podem comer – não podem ser gordas’.”
Mesmo enquanto começou a recuperar a saúde, sentia que era “uma perdedora”. Pelo menos até um amigo da indústria musical, que ela não diz quem é, ligar para ela no dia seguinte a uma cerimônia do Grammy durante a qual recebeu vários troféus. “Ele falou: ‘Parabéns pra você’. Perguntei: ‘Por quê?’ E ele: ‘Quem se importa com prêmios Grammy? Você acabou de salvar sua vida’. E fiquei espantada com aquilo, porque me fez olhar para tudo de um jeito totalmente diferente.”
Kesha ficará bem no final? Para responder isso, permita que seu velho amigo Hughes conte uma história. Um dia, ela estava fumando maconha com o pessoal do Eagles of Death Metal, aos 16 anos. Um rapaz – que não era da banda – agarrou um de seus seios. Ela calmamente perguntou se aquilo era um acidente, se ele queria na verdade passar o baseado. Não, ele respondeu, e ela não hesitou. “Deu um puta soco nele”, Hughes lembra, com admiração palpável. “Pá! Foi bem na boca e rachou o lábio superior. Então, ele pediu desculpa, e ela perdoou.” Hughes ri. “Eu a admiro. É uma puta de uma heroína e uma lutadora.” E acrescenta um argumento final saliente: “E ela vence”.