David Fricke, crítico veterano da Rolling Stone norte-americana, não hesitou ao avaliar o terceiro disco do Nirvana na época do lançamento: deu quase nota máxima a In Utero
Nunca na história dos sucessos meteóricos do rock um artista, com a possível exceção de John Lennon, sentiu-se tão emocionalmente sufocado pelo repentino surto de boa sorte, desprezando-a com um vigor tão virulento, exorcizando seu descontentamento em forma de disco com uma sinceridade tão certeira e arrasadora. In Utero está lotado de tiradas – algumas cômicas, outras venenosamente diretas – contra a vertiginosa trajetória pós-Nevermind, contra os engravatados que sugaram as tetas do grunge em tempo recorde até que não restasse mais nada e contra o público que nunca conseguiu captar a ironia desesperada da frase “Here we are now, entertain us” (“Aqui estamos, entretenham-nos”). As primeiras palavras que saem da boca de Cobain em “Serve the Servants”, a faixa contundente que abre o disco, são “Teenage angst has paid off well / Now I’m bored and old” (“A angústia adolescente pagou bem / Agora estou entediado e velho”), cantada em um rosnado irritado que imediatamente elimina qualquer expectativa de encontrar uma filha de “Smells Like Teen Spirit”. E fica ainda melhor. Em “Very Ape”, Cobain vai direto ao ponto, vociferando sobre os gritos estridentes e incendiários da guitarra e dos rugidos em forma de mantra desfilados pelo baixista Krist Novoselic e pelo baterista Dave Grohl: “I am buried up to my neck in / Contradictionary lies” [“Estou enterrado até o pescoço/Em mentiras contraditórias”]. E segue: “If you ever need anything, don’t hesitate / To ask someone else first” [“Se um dia você precisar de algo / Não hesite em pedir para outra pessoa”].
Francamente, o Nirvana como banda (e Cobain como líder) ganhou por merecimento o direito de cuspir na cara da sorte. A Geração X é marcada, pega em meio ao turbilhão do punk setentista reciclado e de toda a estética heavy metal e amaldiçoada pela velocidade com que mesmo a mais cáustica cultura underground pode ser deturpada e corrompida. Por isso está longe de ser exagero sugerir que em “Frances Farmer Will Have Her Revenge in Seattle”(em homenagem a uma atriz local,cuja rebeldia a levou à beira da insanidade), é na verdade Cobain querendo incendiar a cidade e expulsar os empresários aproveitadores da música de mala e cuia. Toda essa chiadeira sem remorso não seria tão interessante ou convincente se o Nirvana não fosse tão competente – Novoselic e Grohl merecem crédito extra por isso – e Cobain não fosse um compositor tão honesto. Cobain essencialmente trabalha sem seguir os moldes de ninguém, mas se dá bem independentemente da abordagem que escolha. As músicas dele invariavelmente abrem com um verso contido, normalmente cantado em um resmungo sobre acordes abafados e uma batida cadenciada. Então, ele manda tudo pelos ares com um refrão de acordes poderosos, cheios de estática, acompanhado de um berro primitivo. Isso, em resumo, são “Teen Spirit” e “Come as You Are”. E também cobre, em graus variados, “Rape Me”, “Pennyroyal Tea” e “Milk It”, em In Utero. Mas o diabo está nos detalhes. “Rape Me” abre com um perturbador suspiro, Cobain entoando o verso-título em uma voz cansada, que prepara o ouvinte prestes a ser cegado pelo gancho explosivo que entra em seguida. Na introdução sepulcral e folk de “Pennyroyal Tea”, Cobain quase soa como Michael Stipe no começo de “Drive”, do R.E.M. – antes de o refrão distorcido desabar com fúria.
A produção de Steve Albini, um exemplo cru de power trio que é quase monofônico na intensidade da compressão, é efetiva durante aqueles momentos explosivos. A classificação grunge, é claro, não faz justiça a esse tipo de barulheira divina. Mas o Nirvana nunca embarcou no artifício simples de misturar Black Flag com Sabbath, de qualquer modo. De Bleach em diante, a banda se especializou em um tipo de rugido luminoso e beleza ferida que tem mais a ver com Patti Smith, Buzzcocks e com o John Lennon da era Plastic Ono Band. Na verdade, a tensão fria da meio balada, meio blues punk rock “Heart-Shaped Box” e a urgência amorosa de “Dumb” confirmam que se essa geração um dia vier a ter seu próprio Lennon – alguém que acredita genuinamente na salvação do rock, mas não confunde catarse com a entrega verdadeira –, Cobain é o maior candidato. Em “Heart-Shaped Box”, o músico estabelece uma tensão hipnótica entre a elegância acalorada da melodia dos versos e o forte subtexto edipiano da obsessão. A última faixa, “All Apologies”, é outro trunfo, o casamento fluido entre o violoncelo e aguitarra.Éaúltima coisa que muitos esperariam ver, e é também um encerramento inspirado, que mostra o quanto o Nirvana renasceu ao encarar o sucesso que desprezou. In Utero é uma porção de coisas – brilhante, corrosivo, raivoso e profundo, a maior parte disso ao mesmo tempo. Mas, mais do que isso, é um triunfo da força de vontade.