AOS 33 ANOS, CLEO PIRES QUER VELOZMENTE, VIVER A VIDA “ATÉ A ÚLTIMA GOTA”
Cleo Pires faz perguntas. muitas perguntas. “qual é o seu signo? você chora? já ouviu isso? Quem escreveu aquilo? O que ele disse?” A atriz de 33 anos está sempre em movimento. Transita de um assunto para outro com enorme curiosidade. Começa a falar do namorado e de repente revela que gostaria de investir em bitcoins. Há um impulso por conhecimento que a deixa em constante mutação. Como alguns tubarões, se ficar parada, pode se afogar (no caso dela, nos próprios pensamentos). “Eu quero viver as coisas. Estou nesse movimento de viver e não ficar se distanciando. Quero viver tudo até a última gota”, diz enquanto pede um gim-tônica em um sábado à tarde, em um restaurante descolado no bairro dos Jardins, em São Paulo. Discreta, com calça preta e camisa azul, está maquiada, pois acabou de dar uma entrevista a um telejornal para falar sobre Operações Especiais, filme em que interpreta uma sensível agente da lei. Usa ostensivos dreadlocks nos cabelos morenos, parte da composição de seu próximo papel na TV. Na série Supermax, com estreia prevista para o ano que vem na Rede Globo, será participante de um reality show prisional – e ficcional – que se passa no Acre. No dia seguinte ao nosso encontro, promoveria uma sessão a céu aberto do filme O Pequeno Príncipe na comunidade do Vidigal, na zona sul do Rio de Janeiro, onde também tem uma propriedade (ela mora em São Conrado). A atriz busca seguir sempre a própria vontade. “Faz uns oito anos que eu tenho me priorizado. O que eu gosto, o que eu quero. Eu não posso parar de viver porque vão achar isso ou aquilo.”
Cleo Pires (“Há 33 anos escrevem meu nome com acento, mas não tem acento”) é inquieta (“No bom e no mau sentido”) e um tanto cigana (“Física e emocionalmente”). Já morou em diversos lugares (Rio de Janeiro, Estados Unidos, Goiânia) e fez duas dezenas de trabalhos para televisão e cinema. Para interpretar a policial Francis em Operações Especiais, de Tomás Portella, aprendeu a atirar. Agora, tem porte de arma. “Eu me sinto muito modificada. O filme me deu outro olhar sobre as coisas, sobre mim mesma, sobre a minha vida”, afirma. Na obra, Cleo é recepcionista de um hotel carioca. Depois de presenciar um assalto, presta concurso e vira policial – honesta. Ao entrar na força-tarefa comandada pelo delegado Paulo Froes (Marcos Caruso), ela ajuda a exterminar a criminalidade de uma cidade do interior fluminense. Cleo dispara tiros de fuzil, agarra traficantes brucutus, xinga milicianos e encontra tempo para fazer as unhas. É uma espécie de Capitão Nascimento, de Tropa de Elite, com Katy Mahoney, da série oitentista Dama de Ouro, em um papel raro até mesmo para as poderosas atrizes das paragens hollywoodianas. “Pra mim é mais fácil esse universo de armas por causa dos meus amigos homens, primos, do que a personagem de Qualquer Gato Vira-Lata, por exemplo”, fala sobre Tati, a “menininha desesperada” das comédias românticas Qualquer Gato Vira-Lata (2011, mais de 1 milhão de espectadores) e Qualquer Gato Vira-Lata 2, lançada este ano. Amante de velocidade (anda de moto, tem arrais amador e queria ser pilota de caça), Cleo também acaba de se jogar em outra personagem literalmente forte. Ano que vem poderá ser vista como Vivianne, a mulher do lutador de MMA José Aldo, na biografia dele dirigida por Afonso Poyart. Ela fez muay thai e aulas de defesa pessoal com Kyra Gracie para o longa. “Eu gosto quando tem uma coisa física forte. Eu sou muito mental. É muito difícil. Quando tenho um personagem que exige essa fisicalidade, o meu mental desaparece um pouco e vou mais para o instintivo, para o impulso.” Ela conta que antes de entrar em cena grita, corre ou simplesmente anda. “Faço coisas físicas, porque me ajudam a chegar a uma abertura emocional que o psicológico não me traz.”
Desde a primeira aparição para valer como atriz, no filme Benjamim (2003), adaptação do livro de Chico Buarque, ela nitidamente se alinha a perfis mais sedutores e perigosos. Quando pergunto quais as personagens que acha mais interessantes, menciona Betty Blue (Béatrice Dalle no filme homônimo de 1986), que arranca o próprio olho, e a instável Mabel, interpretada por Gena Rowlands no clássico Uma Mulher sob Influência (1974), de John Cassavetes. “Ela está muito fodida. Ninguém a entende.” Para ficar mais próxima de mulheres profundas e complexas, começou a pedir papéis para diretores e produtores. “Antigamente queriam me colocar no lugar da bonitinha. Mas eu nunca me encaixei muito bem nisso. Acho que as pessoas não sabiam o que fazer comigo”, comenta sobre participações que exploraram sua beleza, como a ninfeta Lurdinha, na novela América (2005). Para ela, as coisas mudaram depois que fez Bianca, em Salve Jorge (2012). “Era uma mulher sem pudores e eu também fiquei um pouco assim na vida real. Eu me conectei com esse meu lado. Aí acho que os produtores me olharam de uma forma diferente.” Na sequência, ano passado, deu vida a Kátia, a bipolar da série O Caçador. Apesar da paixão pelo cinema (além de participar de nove filmes, apresentou um programa sobre a sétima arte na TV a cabo), suas horas de voo até agora se acumulam mais nas novelas globais. Ganhou destaque como a vilã Surya em Caminho das Índias (2009) e foi uma das protagonistas de Araguaia (2010/2011). “Confesso que nunca vi muita novela. De algumas poucas eu gostei bastante. Mas é um gênero que respeito muito”, diz a respeito da discussão sobre uma possível crise enfrentada pelos folhetins, principalmente depois do advento de uma propalada fase de ouro das séries norte-americanas. “É um formato que pra mim é difícil hoje em dia. Fazer e assistir. Não é preconceito, e nem todas são assim, mas às vezes acho que as coisas ficam muito mastigadas nas novelas”, resume. Uma semana mais tarde, ela aceitaria convite para Haja Coração, próximo título das 19h da Rede Globo.
“Vamos fumar lá fora?”, cleo pergunta enquanto enrola o próprio cigarro. Para fazer as fotos dessa reportagem, apareceu com o fumo (“Não é maconha”) e uma garrafinha de uísque. Acredita que “tudo que é proibido é ruim” e acha “muito ruim as drogas serem proibidas”. Suas 20 tatuagens (a primeira, um ideograma japonês, foi feita aos 16 anos, com a autorização da mãe) também contribuem para compor o visual de uma personalidade singular. “Se eu me acho uma pessoa bonita?”, ela repete minha pergunta na rua, onde bebemos e ela fuma. “Tem momentos em que eu me acho bonita. A maior parte do tempo eu me acho muito... esquisita. Às vezes eu queria ser só bonitinha, tipo lindinha, sabe? Narizinho, boquinha... Aí eu ia me achar linda. Quando era criança eu gostaria disso. É um trauma de infância”, ri. A sua “esquisitice” estampou a capa de 35 anos da revista Playboy em 2010. O ensaio de 50 páginas sacramentou a entrada de Cleo Pires no imaginário erótico nacional. “Eu gosto muito de fazer foto. Eu gosto dessa sensação de estar me expondo e de certa forma lidando com as minhas inseguranças. Isso me faz bem. Eu deveria ter feito mais isso quando era mais nova. Eu fui muito precoce para muita coisa e muito retardada para muita coisa. Mas, enfim, a vida é assim. Você não tem tudo.”
Mas bastante gente achava que ela tinha tudo desde o princípio. Cleo Pires Ayrosa Galvão nasceu no dia 2 de outubro de 1982 filiada a duas das maiores estrelas da televisão brasileira de todos os tempos. O pai, Fábio Jr., explodiu nos anos 1980 como ator e cantor romântico-garanhão. Galã e conquistador, até hoje é símbolo de boemia, hedonismo e sexo. A mãe, Gloria Pires, é patrimônio nacional. Alguns dos personagens dela se transformaram em entidades da teledramaturgia. Gloria é garantia de qualidade, sucesso e talento. “Eu não sabia se queria ser atriz, não levava isso muito a sério. Falava: ‘Gente, isso é uma bobagem, esse drama de ter que entrar no personagem, tudo uma bobagem’”, diz Cleo sobre o passado, quando pensava em ser investigadora, cientista, antropóloga, pilota de caça, estilista e... marceneira. Mas nunca atriz. Fez uma pré-estreia em 1994, aos 12 anos, interpretando em apenas um capítulo a jovem Maria Moura (depois vivida por Gloria Pires na fase adulta) na minissérie Memorial de Maria Moura. Abandonou a carreira na sequência. Até ser convidada, quase dez anos depois, para interpretar duas personagens numa tacada só em Benjamim. A diretora do filme, Monique Gardenberg, encontrou Cleo em uma fila de banheiro e lançou a proposta. “Destino? Não sou assim tão fatalista. No fim das contas, o que vale é a sua escolha. Tem que ter confiança. O destino não tem nada a ver com isso”, afirma Cleo. Com o duplo papel, conquistou o prêmio de melhor atriz no Festival do Rio e recebeu inúmeros elogios da crítica. Foi o pontapé ideal para quem estava indecisa. “Foi tudo muito impulsivo. Depois comecei a ficar muito mental pra me proteger.” Quando percebeu que tinha “o cara” dentro de casa, começou a gostar do ofício e a trocar mais experiências com a mãe. “Eu sempre tive muita necessidade e desejo de me expressar da minha forma e saber que tudo era por mérito próprio. Então, não conversava muito com ela porque não queria ser influenciada por ninguém. E ela me respeitava, não me pressionava. Mas hoje em dia a gente troca bastante.” De certa maneira, contracenou com Gloria em duas produções nacionais recentes. Foi a primeira esposa de Lula na cinebiografia Lula, o Filho do Brasil (Gloria interpretou a mãe do ex-presidente) e Ana Terra em O Tempo e o Vento (2013), personagem que a mãe de Cleo incorporou na minissérie de mesmo nome em 1985.
Após entrar de vez para o rol das celebridades e chamar atenção nas telas, automaticamente começou a ser cobrada, como se tivesse que justificar toda uma possível herança de adjetivos vinda dos pais famosos. Com a separação de Fábio Jr., Gloria Pires se casou com o músico e compositor Orlando Morais. Cleo (então com 5 anos) seguiu o mesmo caminho da mãe e também se distanciou do pai biológico. “Faz aí uma metalinguagem porque tudo isso já foi dito”, comenta sobre a intensa novela que a imprensa fabricou a partir da relação entre Cleo, Fábio e Orlando. Durante um período, revistas de fofocas chegaram a publicar que ela teria um caso com o padrasto, o que motivou a mudança da família para fora do país. Neste ano, Fábio e Cleo se reconciliaram e até mesmo participaram de uma irônica cena entre pai e filha no filme Qualquer Gato Vira-Lata 2. Contando os dois casamentos da mãe e a prole do pai, ela é a mais velha de oito irmãos (“Eu me fodi, né?”) e muito ligada a Antônia, cantora, compositora e atriz. O sonho dela sempre foi ter um irmão mais velho para ser mais protegida. “Mas estou numa fase bem família. Eu acho que sou melhor irmã do que filha ou qualquer outra coisa. Sou uma boa irmã”, afirma categoricamente. Na sequência, propõe um brinde aos irmãos.
Os pratos chegam. ela come hambúrguer com cheddar e salada. Revela que tem muita inveja das minhas batatinhas fritas e que gosta de beber (“Você tem novos insights, às vezes fica mais criativo, sabe?”). Conta que não teria problema nenhum em engordar 20 quilos para fazer um personagem, pois adora comer (acha o trabalho de Wagner Moura na série Narcos maravilhoso; ele engordou 20 quilos para fazer o megatraficante Pablo Escobar). Admite que não é supervaidosa. “Minha vaidade é questão de saúde. Tenho melasma, então preciso passar protetor e pó, esse é meu ritual. E escovar dente e tomar banho. Básico. Ah, e gosto de estar com a unha feita.” Unhas que são as responsáveis pela mais nova fase de Cleo Pires. “Tipo: eu odiava arte de unha. Achava cafona. Só pintava de preto, vermelho ou branco. Há três semanas comecei a comprar adesivo, esmalte prata... São fases impulsivas, que nascem out of the fucking blue [expressão que pode ser traduzida como ‘do nada’, ‘de repente’].” Ela mostra as mãos e emenda com a pergunta “Qual é o seu signo?” Cleo é Libra com Peixes, Lua em Áries e Sol na casa de Escorpião. Ela tem muitos hobbies. Astrologia é um deles. Também estuda cabala, leu tudo sobre espiritismo, Alan Kardec e Chico Xavier. “Eu gosto de ser autodidata. Dizem que Hitler não fazia nada sem o astrólogo dele. Astrologicamente tinha alguma coisa séria acontecendo ali.” E assim a Segunda Guerra Mundial aparece na conversa. Ela acabou de assistir a uma série de documentários sobre Adolf Hitler. Também viu um “documentário maravilhoso sobre a Ucrânia” e outro que mostrava o funcionamento dos bitcoins (“Mas pra mim é grego”). Segundo ela, o apego por documentários tem uma explicação lógica. “Eu odiava escola quando era criança. Educação é o que pode mudar tudo na vida, mas as escolas às vezes querem colocar você dentro de uma caixa e te transformar, como se fosse resultado de uma coisa. Acho que isso não alimenta a criatividade no mundo. O Steve Jobs não foi para a faculdade!”, exclama, citando o visionário empresário dono da Apple, morto em 2011, para carimbar seu amor pelos filmes que contam histórias reais.
A tal caixa opressora reaparece quando o assunto é a profissão dela. Para Cleo, alguns diretores geralmente “tentam te colocar dentro de uma caixa, de uma ideia específica, como aquela fala deve ser falada, como aquele olhar deve ser olhado, sabe? Tenho vontade de falar que não sou um robô”. Talvez ainda seja o trauma escolar ecoando. Diretores, pai, mãe e professor representam autoridades. Só que esse deve ser um assunto para a terapia, que ela, com intervalos, faz desde os 17 anos. “Mas meu analista está de férias. Eu adoro quando isso acontece porque me sinto superindependente.” Depois de bastante tempo ausente dos consultórios, voltou a fazer análise com um homem e menciona que isso tem ajudado muito na atual relação dela com o feminino. “Eu estou gostando muito de ser mulher. Estou achando foda ser mulher. É gostoso!”, gargalha.
Depois de tantas dúvidas e questões para encarar a profissão, hoje ela não se arrepende de ter abraçado a atuação. “Eu realmente me sinto uma pessoa melhor trabalhando. Sinto que me conecto com um lado que tenho que precisa ser expressado, para eu aprender certas coisas e crescer como ser humano.” Tanto que já está trabalhando no primeiro filme (em que também deve atuar) da produtora que abriu no Rio de Janeiro. “Trabalhar com arte tem me salvado bastante”, reafirma. “É muito legal, mas como profissão é sofrido. Pra mim, talvez. Porque sou muito controladora. Às vezes as minhas escolhas me irritam. Só que aí não está mais na minha mão.” A música também ocupa um lugar de nascença. Já escreveu letra para o padrasto (“Areia Firme”), teve uma banda quando era adolescente e está “tirando um som” regularmente. “Música é a minha vida. Eu sempre gostei de cantar e me expressar através da minha voz e do meu jeito, do que as minhas letras dizem. Mas aí rolou essa coisa de atriz e fiquei com preguiça de ir pro outro lado. Burrice, né?” Não ter se dedicado há mais tempo a essa área é uma das coisas que gostaria de ter feito diferente. “Eu me arrependo de não ter confiado em mim o bastante para ter investido no meu lado musical.” A reparação veio a partir da relação com o ator Rômulo Neto. Eles começaram a namorar e já fizeram três músicas juntos.
“Ele está em treinamento? está indo bem?”, Cleo pergunta para uma garçonete sobre o jovem que nos atende. O garoto atravessa seu terceiro dia como garçom no local. “Amo ver a pessoa com alguma insegurança, aberta para o aprendizado. Acho foda. Acho muito bom ter autoestima e estar seguro, mas creio que é preciso ter insegurança ou você fica pedante, chato e arrogante”, diz ao tomar café e se preparar para a retirada. Ela não lê críticas sobre seu trabalho. Acredita que se lesse, inconscientemente ficaria querendo justificar as coisas que estão sendo faladas. E não gosta disso. Também está dando um tempo dos jornais. Em uma outra fase lia três jornais por dia e assistia a CNN, BBC, tudo o que podia. “Mas comecei a achar que na verdade todos esses veículos eram totalmente parciais. E as pessoas são levadas por tudo isso. Vira uma mentalidade de gado e se emburrecem.”
Cleo enrola mais um cigarro enquanto esperamos o carro que vai levar a atriz para o aeroporto. Ainda há tempo para mais algumas questões. Sempre há. “Já ouviu essa teoria aí de que 6 bilhões de pessoas vão morrer?”, pergunta. Quero saber se isso vai ser logo. “Não queria que as pessoas tivessem que morrer. Não é pra ser assim”, conclui. Mas anos de escolhas, alternativas e mudanças durante a vida devem custar alguma coisa. A morte talvez seja o preço a se pagar.
Ao tentar novas experiências e reinvenções, naturalmente podem-se encontrar obstáculos intransponíveis e arrependimentos. Dizem que não podemos acertar sempre. “Às vezes eu fico pensando que fiz um monte de besteiras. Mas aí posso ficar me martirizando e sentindo pena de mim mesma ou usar a força que tenho dentro de mim para transformar essa situação”, declara, fazendo um balanço sobre os caminhos perigosos que já trilhou. Mas logo dá a receita: “Temos que fazer novas memórias boas e viver. A gente faz muita merda, a gente erra muito. Eu, pelo menos”. Cleo Pires entra no carro, mas antes de partir de vez ainda a escuto perguntar: “Você gosta de dançar?”