A redenção do entretenimento na era do politicamente correto
Miguel Sokol | Ilustração: Gabriel Góes Publicado em 18/03/2015, às 16h57 - Atualizado em 24/03/2015, às 10h35
Tio Robério era o bedel do colégio em que estudei. As armas dele na impossível missão de sufocar qualquer fagulha de desordem naquele barril de pólvora hormonal eram apenas uma boina e duas palavras: “Não pode”. Fosse qual fosse a questão. Posso matar aula? Posso buscar minha mochila? Posso te dar bom dia? “Não pode.” Tio Robério balbuciava seu mantra como quem evita calejar ainda mais os pontos no céu da boca em que a língua é obrigada a encostar para que se produzam os sons das letras “n” e “d” do seu doentio “não pode”.
Conhecendo esse sujeito de poucas palavras, talvez você possa me esclarecer quando exatamente tio Robério deixou de tomar conta da molecada para tomar conta do showbiz, pois seu ruminante “não pode” tornou-se a epígrafe do pop.
Por exemplo, recentemente veio a público a lista das exigências de Jack White para um show na Califórnia. Entre os pedidos havia uma receita específica de guacamole. Jack foi achincalhado pelos tios Robérios à paisana das redes sociais ao ponto de escrever uma carta se explicando, como se sua lista de exigências fosse a primeira da história a vazar.
Sabe qual é a diferença entre a guacamole do Jack White e a lagoa que o Eminem exigiu que um festival construísse para sua carpa de estimação? Ou para o motorista que o
Morrissey pediu que fosse mudo? Ou para a submetralhadora que o Mötley Crüe queria no camarim? A diferença é que tio Robério ainda não estava no comando.
Agora tudo que sai da curva é expressamente proibido – e o mais grave é que estão obedecendo. A adaptação de Cinquenta Tons de Cinza, perfeitamente defi nida por Madonna como “sexy para quem nunca fez sexo”, só confirma o triunfo de tio Robério. Não há sexo no fi lme porque “não pode”; do mesmo jeito que a estratégia de divulgação da capa do recém-lançado disco da própria Madonna “não pode” porque é “ofensiva”; da mesma forma como a música “Stay with Me”, do Sam Smith, não pode porque é plágio; assim como área para fumantes “não pode” mais porque “não pode”; e roubar o microfone dos outros para dizer que a Beyoncé merecia o prêmio “não pode”.
Não pode roubar o microfone? Ok, Kanye West consegue dizer a mesma coisa sem roubá-lo; aliás, sem pronunciar uma palavra sequer! Yeezus salva! Kanye é um verdadeiro herói da resistência das extravagâncias – sair do roteiro é saudável, questionar regras também. Guacamole em pedra dura tanto bate até que fura. Durma com essa, tio Robério.