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Som e Fúria

A vida virtuosa de Yamandu Costa, o prodígio incontrolável da música instrumental

Por Marcelo Ferla Publicado em 02/03/2009, às 11h34

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Yamandu pensa com o coração e prefere o improviso à regra: "A noite me ensinou a tocar violão" - Eryck Machado/Latinstock
Yamandu pensa com o coração e prefere o improviso à regra: "A noite me ensinou a tocar violão" - Eryck Machado/Latinstock

O guri não tinha mais do que 12 anos. Irrequieto, andava de um lado para o outro no camarim acanhado do teatro nada pomposo, com seus 150 lugares e localização privilegiada, em plena avenida central de Passo Fundo, a capital do Planalto Médio do Rio Grande do Sul. Os demais integrantes do conjunto estavam compenetrados e vestiam suas melhores roupas, sobretudo o líder, Algacir Costa, ex-integrante do grupo regionalista Os Fronteiriços, que consolidara sua carreira naquela cidade antes de partir para Porto Alegre. Quando o segundo sinal ecoou, o guri saltitou entre as alpargatas e espiou o público pela coxia. Havia cinco pessoas, o que concedia um ar fantasmagórico ao ambiente. Foi então que o pequeno Yamandu mirou os olhos nos do pai e sugeriu: "Bah, vamos cancelar este troço, só tem cinco pessoas!" Endiabrado, Algacir reagiu antes que o garoto pudesse piscar. Agarrou-o pelo braço, olhou fundo em sua alma e disse: "Você nunca mais me fale uma coisa dessas. Tem cinco pessoas? Pois nós vamos tocar como se fossem cinco mil! Este show vai ser o melhor da nossa vida. Nunca desrespeite seu público dessa maneira!"

Hoje, aos 28 anos, um DVD e seis discos lançados (três solo, os demais em parcerias com Lucio Yanel, Paulo Moura e Dominguinhos), sempre que o violonista Yamandu Costa sobe a um palco em Paris ou Tóquio, Rio ou São Paulo, Viena ou algum vilarejo na Alemanha, normalmente aguardado por uma platéia numerosa e devotada por seu virtuosismo, impetuosidade e capacidade de improviso, ele lembra do pai e daquelas cinco pessoas naquele teatrinho, e carrega a lição de que nada é mais importante do que ter respeito pela arte e por quem a consome.

"Meu pai morreu com a carreira limpa. Sempre fez o que quis, nunca se vendeu pra ninguém, nunca ficou pensando na coisa mais comercial, mandou tudo à merda e investiu só no que ele acreditou. Isso eu carrego o tempo inteiro. A dignidade de um artista é o que mais importa", decreta o filho orgulhoso, enquanto cortamos o solo gaúcho rumo a Passo Fundo, adentrando o pampa pela infinita highway de nuvens carregadas, deixando para trás simpáticas cidadelas com igrejas de torres pontudas e cartesianas praças centrais.

Às 10h15 daquele sábado, que já amanhecera nublado em Porto Alegre, mas com temperatura amena para os padrões sulistas (17 ºC), encontro Clari, a mãe do menino-prodígio do violão de 7 cordas, sentada em um banco do aeroporto Salgado Filho, com um kit de chimarrão nas mãos e um sorriso largo no rosto. Yamandu viria do Rio de Janeiro, onde mora, para se apresentar em Passo Fundo, onde nasceu. "É a chance que tenho de ver o Diamandu", disse ela, pronunciando o "y" com o sotaque castelhano que a fronteira lhe concede. Muito requisitado, o músico acabara de voltar de uma temporada na Europa e sua agenda já previa uma turnê pela América do Norte em poucas semanas.

Ele surge de repente, com muitos quilos a menos de seu shape habitual, de óculos escuros com aros redondos, calça jeans, bota e jaqueta de couro pretas, um case psicodélico que carrega seu violão nas mãos e muito bom humor na cabeça. "Toalete?", reagiu a uma pergunta do motorista da van de 18 lugares que percorrerá 328 quilômetros com outras quatro pessoas a bordo. "Gaúcho não vai ao toalete!", provocou com sarcasmo. "Tô moído, não dormi, participei de um show ontem no Circo Voador e mal tive tempo de me trocar", saiu disparando, enquanto a mãe aproveitava o tempo perdido para tocar no filho como quem lustra um troféu e contar-lhe sobre a madrinha Sueli, a morte do zelador, as teimosias do tio, as novidades do irmão, que sofre de esquizofrenia. A animação instantânea do viajante tendia a acabar logo, mas assim que Yamandu começou a sorver o mate amargo que a mãe preparou, porém, reagiu como se tivesse chafurdado em cocaína. "O chimarrão me acendeu, é a 'paudurescência' da alma, por isso nunca viajo sem ele."

Você lê esta matéria na íntegra na edição 29, fevereiro/2009