Aos 33 anos e buscando o entendimento da brevidade das coisas, Andreia Horta desponta como uma das mais talentosas atrizes de sua geração ao interpretar Elis Regina
O estúdio fotográfico está mergulhado no breu. A chuva forte do final da tarde derrubou alguns fios da rua e cortou a energia. A modelo se posiciona no escuro. Silêncio. O estouro do primeiro flash revela o rosto da atriz Andreia Horta. Ela pisca. Quando fechamos os olhos, vemos impregnados na mente, como um decalque, os traços dessa mineira de 33 anos – dez deles na TV. A sessão continua com o fotógrafo aproveitando um resto de luz que agora entra pela janela. O imprevisto não incomoda Andreia. Na verdade, parece mais um motivo para ela lembrar que sua profissão também serve para iluminar lugares escuros.
Horas antes, ela desce de um táxi, toda de preto, carregando uma malinha de viagem, e entra em um movimentado restaurante dos Jardins, em São Paulo. Andreia está acostumada a deslocamentos – dela mesma e de suas personagens. Nasceu em Juiz de Fora, morou um tempo em São Paulo na infância (entre 1988 e 1991), voltou para Minas Gerais e se mudou para Santo André em 2001, quando começou a cursar a faculdade de artes cênicas. “Quando eu vim, as cortinas se abriram. Eu estava no mundo, era jovem, fazia o curso que queria. A vida começava a se desenhar”, ela diz sobre o passado nem tão distante assim. Hoje é uma estrangeira na capital paulista. Acaba de se mudar para um apartamento no bairro da Gávea, no Rio de Janeiro.
Em novembro, estreou o longa-metragem Elis, dando voz e vida cinematográfica à estupenda cantora que saiu do Rio Grande do Sul para se eternizar como a Pimentinha do Brasil. Pelo trabalho, ganhou o Kikito de Melhor Atriz no Festival de Cinema de Gramado e elogios só arremessados a grandes estrelas. “Não tem glamour. Em casa, o travesseiro é o mesmo, o lençol é o mesmo. Só tem o Kikito lá dizendo: ‘Não fez feio, não’. É isso”, comenta sobre o prêmio, sempre demonstrando encanto pela profissão, mas se descrevendo como terrivelmente crítica. “É meu trabalho. Infelizmente, eu me cobro muito. Não me orgulho disso. E me cobro principalmente hoje.”
Alice foi sua primeira protagonista na televisão. A série de 2008 da HBO, que levava o nome da personagem, mostrava uma garota que saía de Palmas (TO) para tentar a sorte (e encontrava bastante azar) em São Paulo. De Alice a Elis, Andreia foi muitas, mas permanece ela mesma. “Eu sou a criança que eu fui. Está tudo aí. Estou muito feliz com minha trajetória”, afirma. Ela começou como Márcia Kubitschek, filha do presidente Juscelino Kubitschek, na série JK, da Rede Globo, em 2006. Virou Renata (Alta Estação), Beatriz (Chamas da Vida), Rosângela (A Cura), Bartira (Cordel Encantado), Valéria (Amor Eterno Amor), Simone (Sangue Bom), Celeste (A Teia), Maria Clara (Império) e em 2016 brilhou como Joaquina/Rosa, filha do inconfidente Tiradentes e protagonista da novela das 23h Liberdade, Liberdade. “Atuar é uma responsabilidade no melhor dos sentidos. Você está lançando luz na consciência das coisas. Está falando sobre o que é humano”, explica o ofício, que sempre esteve em sua cabeça. Desde pequena, queria fazer cena, mesmo sem saber o que significava atuar. Ser atriz aparece primeiro como desejo – e não imposição. Esse mesmo sentimento serve para tentar compreender como chegou até Elis Regina. “Eu cursava artes cênicas e imaginei que precisávamos falar dela de novo, uma das vozes mais bonitas que já passaram pelo mundo. Uma voz do Olimpo, de outras categorias, uma coisa linda. Com 19 anos, eu falei: ‘Puxa vida, já pensou se eu fizesse isso?’” Mais de uma década depois, realizou um teste para o papel. Foi contratada. Por quê? Assistindo ao filme, é fácil perceber as semelhanças físicas. A escolha do diretor, Hugo Prata, passa a ser óbvia. Mas o que realmente Andreia Horta tem de Elis Regina (e vice-versa)? “Acho que talvez ele [Hugo Prata] tenha reconhecido ali alguma força, algum fogo aceso que se assemelhasse – talvez. Não sei. E quando vi o filme senti muita ternura. Por mim, pela vida, pelos desejos.”
Com sete novelas, quatro séries, três filmes e duas peças no currículo, certamente Elis é o papel que define uma parte da vida de Andreia, aquele que carimba uma espécie de selo de qualidade. “O que mais me surpreende é que as pessoas que foram aos shows, que viram Elis viva, acham que eu incorporei”, conta e ri gostosamente. “Pô, trabalhei pra caramba. Trabalhei minha voz, meu braço, bacia, minha boca, meu gesto. Não estava lá em casa e falei ‘vou incorporar”’, continua gargalhando ao realçar o árduo ofício. E ela faz isso sem soar cabotina, mas sim como se tudo não passasse de destino.
Uma atriz pode eternizar uma personagem (e ser eternizada por ela), mas não consegue salvar da morte física alguém que realmente existiu. Isso faz Andreia Horta chorar. “Lembro que teve um dia da preparação para Elis, na sala de ensaio, que a gente estava trabalhando o final do filme, quando ela andava muito triste [Elis morreu em 1982, aos 36 anos, um ano antes de Andreia nascer]. E aí estava chovendo lá fora...”, ela engasga, para por alguns segundos e disfarça a tristeza com um sorriso: “Teve um momento que eu estava sozinha na sala e olhei lá pra fora. Chorei assim...”, e chora.
Andreia horta garante não se arrepender de nenhum trabalho. Porém, como sabe mexer com as palavras, menciona que “retocaria” algumas passagens. “Claro que tem pequenas coisas que eu queria fazer diferente. Não seria totalmente verdadeira se eu dissesse que não existe nada.” Mas demonstra estar satisfeita. “Minha palavra atual é ‘impermanência’. Tudo é tão passageiro... Espiritual e fisicamente. A impermanência está presente para que ela possa me trazer um ‘deboísmo’, um viver ‘de boa’ [risos]. No sentido de que você pega um trabalho de dez anos atrás e vê aquela cara jovem. Eu não invejo aquilo. Eu tenho achado cada vez mais legal hoje porque a vida está boa. Não tenho rabo preso com nada do meu passado. Tá tudo resolvido”, reflete.
Pausa para o selfie. Uma mulher do Piauí se aproxima e reconhece a atriz. Trocam algumas palavras gentis. Andreia é solícita. A fã, educadíssima. Em poucos segundos tudo se acaba. Impossível não pensar sobre o lado efêmero da fama e projetar o futuro. O que fazer depois de Elis? “Não tenho metas para o trabalho, não. Só para as coisas mais práticas, tipo: quero comprar um apartamento e pagar em tantas vezes. E também saber dizer não. Minha meta é me manter honesta a mim mesma.”
Andreia pode não ter planos, mas exala vontades. Queria ser massagista (a mãe é massoterapeuta; o pai é ator), pianista, chef de cozinha e escritora. “Ah, e fazer shows de rock pelo mundo. Mas aí penso: ‘Continua sendo atriz porque dá pra ser isso tudo’.” Ela já é autora de um livro de poemas, Humana Flor. Antes de entrar na engrenagem televisiva, vendeu bolo para ganhar uma grana e também recebeu uns trocados pela estreia literária.
“Há qualquer suspiro suspenso em um poema/ É quando seu poeta não pode assumir aquilo nem pra ele mesmo”, recita uma de suas poesias que fala – paradoxalmente – sobre o indizível. “Não reeditaria, não. É um livro de jovem. Tenho ternura por ele.” Sua veia metafórica continua escorrendo quando afirma: “A sensação que eu tenho é que a atuação é como um oceano profundo. Às vezes noite, buracos escuros; às vezes sol, com aqueles peixes roxinhos, amarelinhos e dourados passando por você”.
Caseira, prefere ler, ouvir música, cozinhar com os amigos a enfrentar as surpresas da noite. Quando entra em férias, viaja invariavelmente sozinha para “dar aquela baixada de energia”. Isso que alguém pode confundir por “isolamento” parece ser apenas um apreço pela divisão entre público e privado. Tem uma conta no Instagram e nenhuma outra rede social. “Adoraria nem ter celular. Não tenho esse desespero de falar com 1 milhão de pessoas por dia e me manter superbem informada sobre a vida alheia. Eu tenho interesse pela vida humana, claro. Mas saber onde a pessoa estava almoçando ou jantando? Não.”
Dentre os papéis que gostaria de fazer na vida real, está o de mãe (tem dois irmãos mais jovens). Mas sabe que para isso depende de outras histórias e personagens. Lamenta radicalismos em geral citando Bruce Lee: “Be water, my friend [‘Seja água, meu amigo’]. Acho que a minha arena de luta é o palco. É ali onde devo canalizar as minhas posições particularmente. Mas as coisas estão tão violentas que, quando você se posiciona, escuta absurdos. As pessoas te violentam de uma maneira radical”.
No estúdio, a luz finalmente volta. a sessão de fotos continua por poucos minutos. Apesar de tudo agora estar aparentemente iluminado, ela sabe que restam segredos e pontos insondáveis. Mesmo estudando e recebendo informações vitais sobre alguém, nunca vamos conhecer plenamente o outro. “Porra nenhuma que a gente conhece totalmente o personagem. Às vezes você olha pra ele e é um mistério. Mas é assim. Tem coisas que a gente não alcança nem em nós mesmos.” Andreia pega a malinha e segue para a próxima parada.