Com documentário nos cinemas, Sepultura reflete sobre três décadas de música, sucesso e tribulações
A trajetória do Sepultura pode parecer, na superfície, típica de uma grande banda de rock – crises de ego, diferenças criativas e percalços financeiros. Mas pouca coisa dentro do universo do Sepultura é típica. Por um período, o grupo inovou o metal moderno e se fez ouvir mundo afora, moldando os destinos do gênero. Com o impacto que causaram com álbuns como Arise (1991), Chaos A.D. (1993) e Roots (1996) mostraram que o Brasil não era apenas bossa nova e carnaval, e que o som pesado que se gravava aqui era capaz de fazer frente ao do exterior.
Agora, as mais de três décadas de carreira do quarteto são contadas no documentário Sepultura Endurance, dirigido por Otavio Juliano. O filme, que entra em circuito nacional na metade deste mês, faz jus ao título. É uma saga de inovação e sucesso, sim, mas também de resistência e durabilidade.
A ênfase de Endurance é na formação atual, que conta com Andreas Kisser (guitarra), Paulo Xisto Jr. (baixo), Derrick Green (vocal) e Eloy Casagrande (bateria). Já Max e Iggor Cavalera, fundadores e peças essenciais do Sepultura no surgimento, nos anos 1980, e no apogeu da banda, na década de 1990, são mostrados em poucas cenas de arquivo. Os irmãos Cavalera foram convidados a participar do filme, mas devido aos eternos desentendimentos com o resto do grupo e seus empresários declinaram. Se não tem Max e Iggor, o longa traz a palavra de figuras importantes do metal, entre eles Lars Ulrich (Metallica), Phil Anselmo (ex-Pantera), Phil Campbell (ex-Motörhead), Corey Taylor (Slipknot) e David Ellefson (Megadeth), que depõem sobre como o Sepultura foi primordial ao dar um caldo multicultural ao som pesado.
Pouco antes da estreia do documentário, houve uma pequena crise. Os irmãos Cavalera exigiram que houvesse uma edição na cópia final. “Sim, eu tive que cortar um trecho de ‘Roots’ e também de ‘Attitude’, que são executadas pela formação atual da banda”, revela Juliano. “Não pude utilizá-las por completo. Precisei respeitar os limites de um documentário biográfico.”
Há tempos o Sepultura é liderado pelo guitarrista, Andreas Kisser, que avalia o peso da responsabilidade que carrega. “As coisas caem no nosso colo e temos que lidar com elas. Depois do abandono do Max, em 1996, e da saída do Iggor, em 2006, tivemos que nos adaptar a novas situações e desafios diferentes. E a gente cresceu muito com isso”, ele afirma. Segundo Kisser, os atuais parceiros – Green, que entrou em 1997, e Casagrande, na formação desde 2012 – ajudaram a sustentar a visão criativa da banda. E ele também dá o devido crédito aos fãs que formam a chamada “sepulnation”: “Sem todo esse pessoal, tudo ficaria somente na teoria”.
O Sepultura conheceu Otavio Juliano quando ele trabalhava no documentário A Árvore da Música, sobre a importância do pau-brasil para a produção de instrumentos de corda. Depois do contato inicial, surgiu a ideia que daria origem a Sepultura Endurance. Os integrantes deram ao diretor acesso completo a tudo relativo à banda, deixando que a equipe da produtora Interface se incumbisse do roteiro e da edição. Para Andreas Kisser, o filme mostra que o grupo segue relevante independentemente de qualquer trauma ou mudança passada. “Ainda estamos ativos, com uma legião de fãs fantástica que mantém a banda viva e poderosa”, afirma, com orgulho.
Apesar da facção Cavalera e os atuais integrantes não se comunicarem, em Endurance Kisser trata Max com generosidade. Ele sorri saudoso quando lembra do tempo em que fazia dobradinha de guitarra com o vocalista, por exemplo. “Eu respeito muito o talento dele”, diz fora da tela. “A nossa química era muito forte e única. Quanto mais maluca era a ideia que tínhamos, mais motivados nós ficávamos.”
Mas ele não deixa de dar sua versão dos fatos. O filme expõe as cicatrizes que começaram a ser abertas quando Gloria Cavalera, esposa de Max, assumiu o posto de empresária da banda. “Ele virou estrela, viajava em um ônibus separado. Quando saiu, deixou tudo para trás, sem falar nada. Nem mesmo quis brigar pelo nome da banda. Assinou os papéis, fez tudo direitinho na parte legal. E aí fim”, relembra. Tantos anos depois, Andreas confessa que ainda não assimila o motivo do forte antagonismo que perdura até hoje. “Não é porque temos opiniões diferentes que precisamos ser inimigos. Eu nunca senti dessa forma.”
Se o tempo que passa na estrada e o tanto de público que arregimenta são termômetros do sucesso de uma banda, o Sepultura não tem do que reclamar. Endurance mostra isso com propriedade – o fio condutor da narrativa, inclusive, são as turnês mundiais que Otavio Juliano acompanhou ao lado do quarteto durante seis anos. Como tudo, a vida na estrada tem dois lados. “Nada é perfeito, mas tentamos aprender com as dificuldades. É difícil ficar longe da família e perder datas importantes, nem sempre é possível acompanhar o dia a dia dos filhos”, Andreas explica, dando o contraponto do privilégio que é conhecer outras culturas, línguas, gastronomia e, é claro, música. “É aí que crescemos como artistas, pessoas e profissionais.”
O documentário também revela a resistência inicial de gente que rondava a banda à entrada de Derrick Green. A Roadrunner, gravadora do grupo na época, não achou que seria uma boa ideia – no filme, Kisser remonta a ideia de que os executivos talvez estivessem esperando um clone de Max. Green, no entanto, estava mais focado em honrar os compromissos com as pessoas que o convidaram para fazer parte do time do que se preocupar com as polêmicas no entorno. “Olha, estou na música desde os 14 anos. Minha meta sempre foi cantar para o maior número de pessoas possível. Eu tinha noção de que teria gente que não ficaria satisfeita com a minha entrada, mas isso não me preocupou”, garante. “Eu não estava ligando muito para a opinião de pessoas que eu nem conhecia.”
O vocalista relembra que ficou intrigado quando recebeu o convite. “Eu sabia que eles eram brasileiros, tinha os três primeiros discos. Era fã, mas, admito, não era fanático.” Levou alguns anos para que ele se adaptasse ao Brasil, o que mudou depois de transposta a barreira da língua. “Quando comecei a aprender português, me senti conectado. O Brasil me deu poder e energia para conquistar o mundo. Quando fico muito tempo longe, sinto uma falta danada. E, quando volto, a sensação é de voltar para casa.”
Considerado o integrante mais discreto do quarteto, Paulo Xisto tem um desempenho importante no documentário. Ele é quem guia o espectador pelo passado do Sepultura. A banda começou ensaiando na casa do baixista, em Belo Horizonte. Com Andreas Kisser como companhia, ele embarca em uma jornada sentimental rumo às origens. Juliano segue a dupla em uma visita à antiga casa de Xisto. Os dois também passam pela Cogumelo, a gravadora mineira que apostou no heavy metal local e teve o Sepultura como ponta de lança.
“Esta volta ao passado é uma forma de poder mostrar onde e como tudo aconteceu. É uma contribuição que enriquece muito o conteúdo do documentário”, defende o músico. Quando está de folga, ele passa o tempo em Belo Horizonte. A região onde o Sepultura deu os primeiros passos ainda faz parte da rota de Xisto. “Sempre passo por aqueles caminhos antigos quando volto para casa depois de visitar o Mercado Central.
Eloy Casagrande, caçula na formação e na idade – tem 26 anos –, também tem seus momentos de destaque, especialmente nas imagens do processo de seleção pelo qual passou antes de substituir Jean Dolabella. “Sempre fui fã dos caras. Inclusive, fui bastante influenciado pelo estilo de tocar do Iggor e do Jean”, afirma o músico, que se mostra como um sujeito consciente de que, ainda bem jovem, conseguiu uma espécie de bilhete premiado para entrar para uma das maiores bandas de metal em atividade.
Com Endurance sendo exibido nos cinemas, o Sepultura sente um gosto de missão cumprida. Em parte, ao menos: eles de fato tornam-se completos quando estão na estrada, para onde voltaram depois da estreia, ainda levando o metal com raízes brasileiras para o mundo.