O Brasil de 1967 parecia ultrapassado, mas as primeiras sementes das mudanças políticas, sociais e culturais começavam a ser plantadas
Garota de Ipanema foi outra fita importante lançada naquele ano. Dirigido por Leon Hirszman e inspirado na canção de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, o longa retratou com sensibilidade um Rio de Janeiro urbano em transição, saindo da descontração dos tempos da bossa nova e entrando em uma realidade mais complexa. O Brasil daquela época também foi retratado no documentário A Opinião Pública, um dos primeiros trabalhos de Arnaldo Jabor. Mas ninguém batia na bilheteria o bom e velho Mazaroppi. Seu filme de 1967 foi O Corintiano, muito importante por ser praticamente a primeira obra a jogar um olhar na incontrolável paixão pelo futebol.
A ruptura estética também chegava ao teatro. Em 19 de setembro, foi encenada no Teatro Oficina a peça O Rei da Vela, que Oswald de Andrade havia escrito havia mais de 30 anos. O diretor José Celso Martinez Corrêa concebeu um espetáculo estridente e visualmente extravagante e tropicalista, parodiando ópera e citando chanchadas. A história ironizava o subdesenvolvimento do país e a mentalidade autoritária que se incutia cada vez mais entre as classes dominantes. Mais do que simples peça de teatro, O Rei da Vela foi um manifesto daqueles novos tempos. Mesmo sem os requintes intelectuais do pessoal do Oficina, Plínio Marcos causava sensação com Dois Perdidos Numa Noite Suja e Navalha na Carne, dando voz aos marginais e segregados da noite paulista.
Na literatura, a ordem era deixar de lado a influência dos velhos mestres e mostrar aos leitores um trabalho que tivesse mais antenado com os tempos de televisão e outros meios de comunicação em massa. Antônio Callado publicou o romance Quarup, uma digressão sobre um país vasto em transmutação. Outro ponto alto foi Autran Dourado, com Ópera dos Mortos. Na poesia, destaque para Mário Chamie, com A Indústria.
Após o golpe de 1964, o governo militar fechou vários jornais de esquerda e a censura recrudescia. Ironicamente, o clima de repressão aumentou a qualidade da imprensa, em um período fértil para cronistas, cartunistas e repórteres investigativos. Jornais e revistas também ganhavam um maior apuro técnico, possibilitando soluções visuais mais dinâmicas. A vanguarda na época era representada pelos recém-fundados Jornal da Tarde (dirigido por Mino Carta) e a revista Realidade, publicada pela Editora Abril. A imprensa underground começava a ser uma realidade e com o surgimento de O Sol, um jornal inovador editado no Rio de Janeiro que inspirou um verso de "Alegria Alegria", de Caetano Veloso, e revelou o jovem cartunista Henfil.
Os shows musicais eram carro-chefe da TV brasileira. A Record exibia os dois principais: Jovem Guarda, comandado por Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderlea, e O Fino da Bossa, com Elis Regina e Jair Rodrigues. Mas a Record acabou tirando do ar O Fino em junho daquele ano. E a mídia ainda explorava a "rixa" entre os "alienados" do Jovem Guarda e os "autênticos" do Fino. Paulinho Machado de Carvalho, um dos donos da emissora, resolveu criar um programa que desse continuidade ao Fino. Ele se chamaria Frente Única - Noite da Música Popular Brasileira. A novidade foi ao ar pela primeira vez em julho de 1967, fazendo um rodízio de apresentadores, incluindo aí Geraldo Vandré, Chico Buarque, Nara Leão, Gilberto Gil, Elis Regina e Jair Rodrigues. Só que a audiência não foi boa e seus participantes preferiam macaquear palavras de ordem contra o iê-iê-iê.
Foi então que Geraldo Vandré e outros tiveram a idéia de fazer um protesto contra a música feita com as guitarras elétricas. A TV Record achou que seria uma ótima propaganda para os dois programas - tanto para o Jovem Guarda como para o Frente Única - e cedeu meios para que isso se realizasse, como alto-falantes e faixas.
O bizarro acontecimento conhecido hoje como "passeata contra as guitarras elétricas" aconteceu em 17 de julho e saiu do Largo de São Francisco e chegou ao Teatro Paramount. Geraldo Vandré, Elis Regina, Gilberto Gil, Edu Lobo, Jair Rodrigues, membros do MPB-4 e outros participaram, empunhando bandeiras do Brasil e bradando lemas contra a invasão estrangeira. Esse episódio, que até hoje confunde a cabeça de seus participantes, só mostra como a música brasileira vivia um período conturbado, em que territórios não estavam demarcados com precisão.
Depois de dominar o cenário desde o final dos anos 50, a bossa nova estertorava no Brasil de 1967. Alguns dos seus principais expoentes, como João Gilberto, Luiz Bonfá, Sergio Mendes e Carlos Lyra, tinham partido para o auto-exílio no cada vez mais risonho mercado externo. Tom Jobim, por exemplo, passou esse ano burilando, ao lado de Frank Sinatra, o disco que levaria o nome de ambos, uma das maiores pérolas do catálogo dos envolvidos. Talvez a bossa nova fosse muito relaxada e "cuca-fresca" para os tempos cada vez mais turbulentos e militantes que se vislumbravam no país. Assim, antigos militantes da bossa nova acabaram achando outros caminhos - e aí começou a "confusão".
1967 foi quando a música feita no Brasil "rachou". A essa altura, MPB era uma sigla que passou a englobar tudo que não fosse a antiga bossa nova ou jovem guarda. Mas o irônico é que vários mpbistas eram oriundos da bossa nova e mais tarde usaram alguns macetes da jovem guarda. Esse povo partiu para canções de protesto ou o regionalismo, ou então lançava as sementes para a eclosão do tropicalismo. Por outro lado, também redescobriam as raízes do samba e davam a ele uma cara mais comercial. Toda essa "confusão" explodiu no III Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, cuja final foi realizada no dia 21 de outubro no palco do Teatro Paramount. Hoje, este é conhecido como "O Festival da Virada".
Os festivais foram um fenômeno curioso na história da TV e da música. As TVs Record e Excelsior começaram a produzir esses eventos em 1965, e os organizadores tinham ciência de que eles precisavam ser um espetáculo em todos os sentidos da palavra. Assim, eles se assemelhavam aos antigos programas de auditório das rádios cariocas. Havia torcidas, vaias, cartazes, gritaria, apitos, tudo fazia parte do jogo. Os festivais privilegiavam a chamada "música autêntica", ou seja, as pessoas que freqüentavam o Fino da Bossa. Quem era da turma do Jovem Guarda não tinha chance de vencer e era recebido com apupos. Eram, de certa forma, uma continuação dos espetáculos organizados pelo radialista Walter Silva no Teatro Paramount.
E as canções com cunho regional/nacionalista/universitário pareciam levar vantagem. Em 1965, Elis Regina ganhou o Festival da Excelsior com "Arrastão", de Vinícius de Moraes e Edu Lobo. Mas em 1966, no Festival da TV Record, a pressão popular fez com que o primeiro lugar fosse repartido entre "Disparada" (Geraldo Vandré/Theo de Barros) e a "A Banda", com o autor Chico Buarque e Nara Leão.
Já se foi muito discutido como o Tropicalismo foi gestado e seu caldeirão de influências que incluíam Cinema Novo, artes plásticas, psicodelia, poesia concreta, o disco Sgt Pepper... O fato é que Caetano Veloso e Gilberto Gil, mais do que quaisquer outros, necessitavam se libertar das amarras da sempre vigilante MPB. Caetano era um fã não declarado da Jovem Guarda e de Roberto Carlos. Mas não se faz revolução para meia dúzia de iniciados. Que tal então usar a televisão, no canal de maior audiência, num dos seus programas mais badalados?
Foi o que fizeram os futuros tropicalistas. O palco foi o III Festival da TV Record, quando Caetano usou um grupo de rock para acompanhá-lo em "Alegria Alegria". O escolhido foi o grupo argentino Beat Boys. Caetano até pensou em usar o RC-7, grupo de Roberto. Não foi apenas o uso de guitarras elétricas que ofendeu os puristas. A letra da canção era repleta de colagens com influências de concretismo e não trazia nada que lembrasse engajamento. Chegou ao quarto lugar.
Gilberto Gil seguiu o mesmo caminho, também usando um grupo de rock, desta vez os paulistanos Mutantes, formado pelos irmãos Sérgio Dias e Arnaldo Baptista e por Rita Lee. Na verdade, os Mutantes começaram sem grandes pretensões, um grupo típico de Jovem Guarda aglutinado por Ronnie Von. Com letra cinematográfica, "Domingo no Parque" também representou uma ruptura com sua melodia de fácil assimilação, ficou em segundo lugar.
Com esses trunfos nas mãos, Caetano e Gil, com os agora recém-recrutados Mutantes, então fincaram a bandeira do Tropicalismo. De uma hora para outra, se tornaram queridinhos da mídia, que a princípio se preocupa mais com seus cabelos compridos e visuais exóticos. Mas a coisa era para valer e tudo o que foi feito em 1967 deu frutos consistentes. Em 1968, a Jovem Guarda morria e só se falava em Tropicalismo.
Caetano, Gil e os Mutantes não venceram o festival, mas sem dúvida foram os grandes beneficiados. Os vencedores foram Edu Lobo e Marília Medalha com "Ponteio" (de Edu e Capinam), uma das canções feitas "para ganhar festival", na linha das já consagradas "Arrastão" e "Disparada". Com direção cênica de Augusto Boal, "Ponteio" levantou o público e conquistou um júri que contava com notáveis como Sérgio Cabral, Júlio Medaglia, Chico Anisio, Ferreira Gullar e outros.
Elis Regina ganhou como a melhor intérprete com a música "O Cantador", composição de Dorival Caymmi e Nelson Motta. O terceiro lugar ficou com Chico Buarque e MPB-4, interpretando "Roda Viva". A ambígua canção era interpretada como uma crítica ao regime militar e as maquinações do show business. Até então, Chico era considerado um jovem e talentoso sambista romântico e o grande público não imaginaria que suas composições fossem tomar rumos mais políticos e contestadores. No ano seguinte, a canção virou peça e sua montagem foi interrompida pelo CCC, que chegou a usar violência física.
Um dos momentos mais lembrados do festival aconteceu na apresentação de Sérgio Ricardo. A sua "Beto Bom de Bola" chegou à final, mas não agradou ao público. A vaia era intensa e Ricardo parou a música pela primeira vez, tentando levar na esportiva. Ele recomeçou, as vaias se intensificaram, e ele quebrou o violão e jogou o resto do instrumento e o banquinho na platéia, chamando o público de "animais". Coube aos apresentadores Blota Jr. e Branca Ribeiro tentar apagar o incêndio.
Roberto Carlos também participou do festival de 1967. A princípio, o Rei estava ciente de que se encontraria totalmente fora de seu universo. Mas a TV Record insistiu, já que sabia que Roberto era garantia de audiência. O Rei então cantou um samba melancólico e de letra vagamente social, de autoria de Luis Carlos Paraná, chamado "Maria Carnaval e Cinzas". Obviamente, parte do público vaiou Roberto, mas, ao contrário do inflamado Sérgio Ricardo, ele nem se abalou. Para ele, aquilo não passava de um espetáculo televisivo. No final, "Maria Carnaval e Cinzas" ficou na quarta posição.
Enquanto isso, a TV Globo em conjunto com a TV Rio, transmitia do Maracanãzinho (RJ) o Festival Internacional da Canção (FIC). Ao contrário dos festivais da Record, o FIC tinha um caráter de show e uma maior amplitude musical. O festival era dividido em duas fases, nacional e internacional. A canção classificada que ficava em primeiro lugar na fase nacional representava o Brasil na fase internacional, brigando com representantes de outros países. Na edição de 1967, a segunda do FIC, a canção vencedora foi "Margarida", com Gutemberg Guarabyra e o Grupo Manifesto; em segundo lugar, o novato Milton Nascimento, com "Travessia".
Para Roberto Carlos, 1967 foi um ano de sucesso e novidades como a já citada participação no Festival da Record. Ele começou a filmar seu primeiro longa-metragem, que ganharia o nome Roberto Carlos em Ritmo de Aventura, com direção de Roberto Farias. O filme só estrearia nos cinemas em meados de 1968, mas o LP homônimo chegou às lojas no final de 1967, trazendo sucessos como "Eu Sou Terrível", "Como É Grande o Meu Amor por Você", "Por Isso Corro Demais" e "Quando".
Mesmo com tanta mudança no panorama musical, a Jovem Guarda se mantinha inabalável e alimentava o mercado fonográfico. Os artistas lançados no programa de Roberto Carlos dominaram o hit parade de 1967. Em janeiro, o futuro sertanejo Sérgio Reis emplacou a balada "Coração de Papel". O grupo Golden Boys lançou "Pensando Nela", versão de "Bus Stop", do The Hollies. Em março, Erasmo Carlos colocou nas paradas dois hits: "O Bilhetinho" e "O Tremendão". No mesmo mês, Wanderley Cardoso veio com "O Bom Rapaz". Em abril, o futuro rei do brega Reginaldo Rossi despontou com "Festa dos Pães". Ronnie Von nos brindou com a nostálgica "A Praça", composição de Carlos Imperial, e "Catedral", versão de "Winchester Catedral", da New Vaudeville Band. Eduardo Araújo foi destaque em maio com o rock "Vem Quente Que Estou Fervendo". O grupo instrumental The Jordans foi campeão de vendagem em junho com sua versão para o tema de filme "Exodus". No mês seguinte, Os Incríveis pararam o Brasil com "Era Um Garoto Que Como Eu Amava os Beatles e os Rolling Stones". A canção era versão de um hit italiano e ganhou vida própria, tornando-se um dos grandes hinos da Jovem Guarda. Muitos acharam que "Era um Garoto...", com sua citação à Guerra do Vietnã e seus "tatá-ratatá" era uma canção de protesto. Ironicamente, Os Incríveis mais tarde gravariam hinos ufanistas para a ditadura. O galã Wanderley Cardoso voltou às paradas no mês de agosto, com a balada "O Pic-Nic" e a alegrinha "Doce de Coco". O mês também presenciou o êxito de Agnaldo Timóteo com a dramática "O Grito" e a dupla Deni e Dino, com a marchinha "Ciúme". A cantora Martinha estourou em setembro com a chorosa "Eu Te Amo Mesmo Assim".
Foi também em 1967 que Wilson Simonal abandonou a MPB e virou o Rei da Pilantragem, lançando o primeiro volume da série Alegria Alegria. Quem também deu uma guinada foi Jorge Ben. Depois de ter gravado quatro álbuns muito marcados pela bossa nova, Ben veio em 1967 com o LP Bidu, em que eletrificava de vez seu som, misturando samba, rock e MPB.
Os Beatles, é claro, estavam acima de todos os estrangeiros que aqui faziam sucesso. Até mesmo Sgt Pepper's Lonely Hearts Club Band, que muitos consideraram "difícil", vendeu bem. No hit parade da época, encontravam-se The Mamas & The Papas, Chris Montez, The Association, The Happenings, Herman's Hermits, Petula Clark, Johnny Rivers, Herb Alpert, The Monkees e muita música italiana e francesa - ou seja, nomes que hoje em dia são considerados "música de bailinho". Acid rock, nem pensar...