Um inesquecível derramamento de sangue determinou o tortuoso caminho da Bósnia-Herzegóvina: um país com duas entidades políticas, três etnias e incontáveis problemas sem solução
O dia 11 de julho de 2010 levou milhões de pessoas às lágrimas em pelo menos dois países do mundo. Contudo, enquanto espanhóis comemoraram a vitória e holandeses sofreram o fracasso de suas seleções na final da Copa do Mundo, em Potocari, uma pequena vila ao leste da Bósnia-Herzegóvina, o choro é mais pesado e dolorido, uma expressão legítima de um alívio reprimido desde 1995. "Os norte-americanos têm o 11 de setembro; nós, o 11 de julho", explica uma recepcionista de hotel em Sarajevo, a respeito da importância no país da data que marca a queda de Srebrenica. Tal como Auschwitz, que simbolizou o sofrimento do Holocausto na Polônia, Srebrenica é mais do que apenas uma cidade. O nome evoca uma série de lembranças, todas ruins, e tem força de metonímia: na Bósnia, não há quem não feche a cara ao ouvir essa palavra. Em resumo, porque é o nome da cidade onde mais de oito mil pessoas, a grande maioria homens e meninos, foram sistematicamente assassinados por tropas sérvias em julho de 1995. Em detalhes, porque a queda de Srebrenica e o genocídio ocorrido no país - reconhecido pelo Tribunal Penal Internacional como tal - ilustram o fracasso das grandes potências e, principalmente, da Organização das Nações Unidas (ONU) no que diz respeito ao tratamento e à condução da guerra.
Um dos grandes eventos da Bósnia (o complemento Herzegóvina nem sempre é utilizado) relacionados à celebração do 11 de julho é a Marcha da Paz. São mais ou menos 110 quilômetros de andanças pelas densas florestas bósnias durante três dias e três noites, chegando até Potocari. A meta é chamar a atenção das pessoas para que nunca se esqueçam do que aconteceu em Srebrenica. "Srebrenica - Never Forget" é o mote da marcha. A escolha de uma caminhada dessas proporções como chamativo não é aleatória. Há duas justificativas, uma simbólica e uma histórica. A primeira diz respeito a uma volta dos muçulmanos à terra de onde foram expulsos; a outra, a uma lembrança da fuga dos homens pelas florestas, que ficou conhecida futuramente como a Marcha da Morte. As lembranças físicas desse episódio ainda estão espalhadas pelas florestas: cerca de 4% do solo bósnio é coberto por minas. "Mine! - Zabranjen Prolaz", diz a placa, com o desenho de um crânio que traduz bem a mensagem: não ouse ultrapassar.
Muhizin Omerovic, um dos organizadores da marcha, me diz que sou o primeiro brasileiro a participar do evento. Cabelo, cavanhaque, bigode e costeletas (e por muito pouco as sobrancelhas também) formam uma peça única no rosto corpulento, adequados ao seu 1,90 metro de altura. Muhizin torceu o joelho logo no primeiro dia - o que diz muito sobre as dificuldades da caminhada, cheia de subidas e descidas em trechos acidentados, descontando eventuais tempestades que transformam a terra em um barro traiçoeiro - e continuou o caminho de carro. Auxílio justo para um homem lesionado, e que repetiu o mesmo trajeto a pé por várias vezes em anos anteriores - inclusive naquele fatídico 1995. Dile, como o chamam os amigos, é um dos sobreviventes de Srebrenica. "Vi dezenas de corpos jogados na floresta, muitos eram conhecidos", ele recorda, sobre os dois meses escondido, se alimentando de raízes e cogumelos até enfim entrar em território amigo.
Essa é apenas uma das histórias guardadas pelos mais de três mil participantes da Marcha da Paz, da que tomei parte, em 11 de julho de 2009. O idioma é uma barreira enorme para entendê-las nos detalhes - é difícil achar alguém que fale inglês entre a população mais humilde da Bósnia, parcela majoritária dos andarilhos. Mas certos atos tornam as palavras desnecessárias, como no caso da velhinha com olhos de um marcante azul-opaco, escondidos quase sem vida no fundo dos vincos do rosto, segurando um quadro com fotos de familiares. Ou como no caso de Kadia, outro sobrevivente de Srebrenica, que ficou de joelhos em frente a uma das milhares de lápides brancas do lugar chorando em memória do irmão assassinado.
Srebrenica é sinônimo de genocídio, tristeza, mas também representa, com a mesma fidelidade que seus cidadãos comuns, a Bósnia-Herzegóvina como um todo: um local onde as marcas da guerra são enterradas aos poucos, mas sem nenhuma garantia de que um dia todas estarão completamente sepultadas. É o futuro atrelado ao passado. Um país onde soluções estão a um tiro, mas também a um beijo de distância.
Menos de dois meses após o início da Guerra da Bósnia, em 6 de abril de 1992, o país contava com um 1 milhão de refugiados. Um ano mais tarde, o número já havia dobrado, atingindo quase a metade dos então 4,4 milhões de habitantes, em um período em que mais de 70% do território estava sob controle sérvio. A região leste, próxima ao rio Drina, a fronteira natural com a Sérvia, foi a mais castigada. Mês após mês, cidades e vilas sofriam o processo de limpeza étnica, termo que ganhou visibilidade durante o conflito para designar a expulsão forçada, seguida muitas vezes de assassinatos, de outras etnias.
Cercada de montanhas de um verde impenetrável, Srebrenica tornou-se um enclave muçulmano em meio ao território dominado por forças sérvias. O que antes da guerra era uma área interiorana de pouco mais de seis mil habitantes, cujo passado histórico estava ligado à mineração (Srebrenica quer dizer "prata"; em português claro, seria algo como a "Argentina da Bósnia"), tornou-se o último refúgio para uma população até dez vezes maior. A cidade viveu sob sítio, tendo a energia frequentemente cortada, sendo ocasionalmente atacada por morteiros e sem estrutura para abrigar tantos desabrigados, além de esperar um ataque final iminente. Era uma autêntica tragédia humanitária.
Uma investida sérvia contra a cidade geraria efeitos ainda mais devastadores. O Conselho de Segurança da ONU deu um sopro de esperança aos bósnio-muçulmanos ao aprovar a Resolução 819, em 16 de abril de 1993, decretando Srebrenica como a primeira "Área de Segurança" da Bósnia (mais outras cinco cidades vieram a ser categorizadas dessa maneira em outra resolução). As aspas não são apenas para indicar o termo traduzido do original (Safe Area), mas também para deixar implícita a ironia que a própria história de Srebrenica, palco do maior massacre da Europa após a Segunda Guerra Mundial, é capaz de explicar.
Com a medida, soldados da ONU pelo braço Unprofor (Forças de Proteção das Nações Unidas), foram enviados a Srebrenica com a missão de proteger a cidade e garantir o acesso da ajuda humanitária. Mas, em 6 de julho de 1995, as tropas sérvias, sob a liderança do general Ratko Mladić, o criminoso de guerra mais procurado da Europa, começaram a ofensiva final. Cinco dias depois, em 11 de julho, os sérvios hastearam a bandeira da República Sérvia da Bósnia na cidade. Cerca de 20 mil bósnio-muçulmanos voltaram-se para as instalações da ONU (assumidas no período em questão por tropas holandesas) em Potočari, uma vila localizada a seis quilômetros de Srebrenica. Mulheres e crianças foram deportadas em comboios de ônibus par a cidades controladas pelas tropas do governo central. Homens em idade militar foram separados. Nunca mais se uniram às famílias.
"O que queremos é o reconhecimento,"diz Marco Gerritsen, um dos advogados que representam a associação Mothers of Srebrenica, composta por mulheres que perderam seus familiares no massacre. O grupo entrou com um processo contr a o Estado da Holanda (país responsável pelo último batalhão da Unprofor na cidade) e a ONU , acusando ambos de responsabilidade pela queda de Srebrenica e o não cumprimento da obrigação de prevenir o genocídio. A batalha jurídica se arrasta há anos, e teve um grande revés em março de 2010, quando a Corte de Apelações em Haia reafirmou a garantia de imunidade da ONU por convenções internacionais. O próximo passo é uma nova apelação, desta vez à Corte Europeia de Justiça. "A questão política mantém-se: por quanto tempo a ONU pode manter a sua credibilidade, se esforçando para proteger os direitos humanos ao mesmo tempo que os desconsidera?", argumenta Gerritsen.
Ainda hoje, os números relacionados ao genocídio chocam. Quinze mil bósnio-muçulmanos fugiram pelas florestas. Milhares não conseguiram. Muitos morreram nas matas, vítimas de tiros e explosões; outros se renderam e foram executados sumariamente. Mas o padrão do genocídio pode ser sintetizado a partir de certos casos. Em um deles, fugitivos fo-ram capturados próximos ao vilarejo de Nova Kasaba e acabaram levados ao estádio de futebol da cidade. Um a vião norte americano registrou uma foto aérea do local, que mostrava 600 homens concentrados no gramado. Dias depois, quando o mesmo avião sobrevoou a área novamente, as pessoas não estavam mais lá. Nas áreas ao redor do estádio, a vegetação havia sumido, e os sinais de o solo ter sido recém-escavado eram evidentes. A conclusão: covas coletivas.
Na região de Podrinije, área onde está localizada Srebrenica, já foram encontradas mais de 80 covas coletivas. O trabalho de exumação e identificação das ossadas é dividido entre o Instituto de Pessoas Desaparecidas (MPI), controlado pelo governo central da Bósnia e a Comissão Internacional de Pessoas Desaparecidas (ICMP). A recombinação dos restos mortais é árdua, em muito por conta da tática das tropas sérvias para encobrir crimes de guerra: remexer covas coletivas e transportar aleatoriamente restos para outros locais, criando assim covas secundárias. Um homem assassinado dias após 11 de julho de 1995, por exemplo, teve seus ossos encontrados em quatro locais, dos quais dois estavam a 20 quilômetros de distância dos outros dois.
Mais de 13mil DNAs de pessoas desaparecidas já foram identificados por toda a Bósnia, dos quais 6.478 estão relacionados às vítimas do genocídio de Srebrenica. Desses, 3.654 são de homens cujas ossadas foram recombinadas suficientemente para serem enterradas no Memorial de Potočari, um grande espaço gramado em frente às antigas instalações da Unprofor - uma ex-fábrica de baterias transformada em museu. As instalações do ICMP, em Tuzla, guardam as ossadas ainda não identificadas ou em quantidade insuficiente para o sepultamento. Estão em sacos plásticos empilhados em estantes na sala refrigerada de temperatura pouco abaixo dos 10 °C. O odor - um misto entre umidade, terra batida e algo em putrefação - é forte o suficiente para impregnar o ambiente. É o cheiro do ódio. Da intolerância. Da morte.
Diz a sabedoria popular que para entender o presente é preciso conhecer o passado. No caso da Bósnia-Herzegóvina, trata-se de uma meia verdade - ou uma verdade mais do que perfeita, pois só uma história tão complexa e confusa pode fazer jus à atual condição do país. Para entendê-la, é necessário compreender em linhas gerais os impérios dos quais a Bósnia fez parte. E eles são muitos. Cronologicamente, a região viveu sob influência dos Impérios Romano e Bizantino para depois desfrutar de um período de relativa autonomia como um reino próprio. No século 15, foi anexada ao Império Turco-Otomano (marco da islamização no país) par a, após 400 anos, ser integrada ao Império Austro-Húngaro. Depois, foi a vez de fazer parte do Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos - o arquétipo do que veio a se tornar o Reino da Iugoslávia. Ao fim da Segunda Guerra, uniu-se à República Federalista Socialista da Iugoslávia.
Em meio a mais de um milênio de história, a influência de diferentes culturas, as conversões religiosas, as migracões em massa de povos vizinhos e a associação direta entre religião e identidade (sérvios-ortodoxos, croatas-católicos, bósnio-muçulmanos) foram fatores que definiram a miscelânea étnica na qual a Bósnia viveu por séculos - em paz. Sarajevo, uma cidade cosmopolita onde é possível encontrar mesquitas, catredais católicas e ortodoxas e sinagogas em um mesmo quarteirão (a alcunha de "Jerusalém do Ocidente" não é em vão) representa bem esse espírito. Da mesma maneira, cada construção destruída, cada cicatriz de tiros nas paredes das casas (todas têm as suas), cada Rosa de Sarajevo (marcas deixadas pela explosão de granadas) pintada de vermelho nas calçadas ilustram um severo disturbio na harmonia.
A configuração da Iugoslávia no pós-Segunda Guerr a (seis repúblicas - Sérvia, Croácia, Bósnia-Herzegóvina, Montenegro, Eslovênia e Macedônia - e duas províncias autônomas - Kosovo e Vojvodina), aliada à habilidade política do vencedor do conflito na região, Josep Broz, eternizado como Marechal Tito, esfriaram as diferenças étnicas na Bósnia.
Tito é lembrado com respeito nas ruas de Sarajevo. Há camelôs (em torno de 20% da população da Bósnia está na economia informal) especializados em produtos relacionados à sua figura mítica - fotos, quadros, cópias de discursos. Os "iugonostálgicos" agradecem ao ex-chefe do Partido Comunista pela infraestrutura do país. "Depois que Tito morreu, pararam as obras", lamenta o motorista que me conduz à cidade de Tuzla. Realmente, tudo mudou para pior após a morte do líder militar, em 1980. A situação econômica da federação socialista agonizava (em 1987, a inflação subiu em 120% e, no ano seguinte, em 250%; além disso, a dívida externa do país chegava a US$ 30 bilhões). O Partido Comunista perdia força e o desejo de maior autonomia política nas repúblicas crescia. Nesse cenário favorável, a semente plantada na Primeira Guerra floresceu e gerou frutos, como o ultranacionalista Slobodan Miloević, ex-presidente iugoslavo de 1997 a 2001, e Radovan Karadić, principal líder dos bósnio-sérvios durante a Guerra da Bósnia. O primeiro morreu na prisão em 2006, com uma extensa ficha corrida com crimes contra a humanidade e genocídio. O segundo foi preso em 2008 e está sendo julgado pelo Tribunal Penal Internacional para a Ex-Iugoslávia pelas mesmas ofensas. "Em poucas horas, as ruas do centro de Sarajevo estavam lotadas de carros e pessoas, gritando, chorando e celebrando sob a luz dos fogos de artifício", relembra Hikmet Subasić, estudante de direito da Universidade de Sarajevo, a respeito da prisão de Kar adić. "De- pois de mais de uma década for agido, finalmente o 'Hler dos muçulmanos' Vhavia sido preso."
Você tem que perguntar aos cidadãos comuns", recomenda-me Mustafa Mujezinović, primeiro- ministro da Federação da Bósnia-Herzegóvina, que define sua visão como "meio a meio" - parte civil, parte política. "Se você falar com eles, vai ouvir que nada está como deveria estar, mas que ao mesmo tempo as coisas funcionam", ele continua, antes de beber um gole de e xpresso. " Você ai encontrar o meio-termo, a verdadeir a situação da Bósnia." Mujezinović representa uma das duas entidades políticas nas quais a Bósnia foi dividida no Acordo de Paz de Dayton, que pôs fim a uma guerra que deixou mais de 100 mil mortos entre 1992 e 1995 e bateu recordes infames na história moderna, como "cidade mais tempo sob cerco" (Sarajevo, 1.400 dias) e "maior massacre da Europa pós-Holocausto" (Srebrenica, 8.372 vítimas).
A poucos metros do café em que conversamos na Bačarija, o centro antigo da capital Sarajevo, está Muhamed Delić, um vigia da mesquita Gazi Husrevbeg, erguida no séc ulo 16 e e xemplo fino da arquitetura turco-otomana. Ele é bósnio-muçulmano - ou bosniak, como passou a ser chamada após a guerra a etnia predominante do país -, lutou no conflito junto às tropas de defesas de Sarajevo,foi ferido gravemente três vezes e exibe com orgulho a cicatriz na cabeça. Seus melhores amigos, Allen, um bósnio-croata, e Neboja, um bósnio- sérvio, o acompanham semanalmente em um café da tarde."Há ressentimento entre os povos", ele diz, com uma voz entre o desânimo e a resignação. "Mas acredito que, no futuro, poderemos viver juntos de novo."
Ivo Marinović vive em Mostar, no sudoeste da Bósnia - ou melhor , "Bósnia e Herzegóvina, ou só Herzegóvina", ele dispara, como um mecanismo de reflexo, mas sem agressividade de a taque. Apesar de ser bósnio de nascimento, Marinović exibe com orgulho o passaporte croata. Pergunta se vou a M eđugorje, destino procurado por católicos de todo o mundo onde, de acordo com os fiéis, teriam iniciado aparições da Virgem Maria na década de 1980. Gaba-se de ter dois empregos e só andar de carro. "Já os muçulmanos não têm nada e não querem trabalhar", ele rechaça. "A gente fala que a única coisa que eles sabem é mamar nas tetas do governo. Como crianças."
Em outra parte do país, ao norte, mora Dragan Popović. De aparência senhoril, ele é recepcionista de um hotel em Banja Luka, capital administrativa da Republika Srpska, a outra entidade política da Bósnia, cuja população majoritária é formada de bósnio-sérvios como Dragan. Participou da guerra, mais no lado administrativo que no fronte de batalha - o físico franzino denuncia a falta de aptidão par a a luta. Ele acha impossível que um dia as etnias do país possam viver em harmonia novamente, mas reconhece que o lado sérvio cometeu atrocidades, apesar de relativizar os acontecimentos à sua maneira. "Karadić era um bom homem, lutou por seu povo", é sua análise sobre o ex-presidente da então autoproclamada República Sérvia da Bósnia, preso há dois anos e sendo julgado desde então. Muhamed Delić, Ivo Marinović e Dragan Popović são cidadãos comuns e representam bem a verdadeira situação da Bósnia: um país de ideias divergentes, muitas vezes antagônicas, nascidas a partir de um grande furacão de fogo cruzado. A Guerra da Bósnia legou ao
país cicatrizes estruturais, físicas e emocionais e um panorama público e político sensível a esses traumas. A divisão do país em duas entidades políticas (a Federação da Bósnia-Herzegóvina do lado bosniak/croata, e a Republika Srpska do lado dos sérvio-bósnios) foi a saída para que os três povos constituintes fossem representados igualmente nas questões nacionais. Contudo, a Constituição, fundamentada a partir desse princípio básico, dá brechas para casos surreais, como o de Jakob Finci. Bósnio, judeu e embaixador do país na Suíça, ele acionou a Corte Europeia de Recursos Humanos contra o próprio Estado, alegando discriminação contra seu povo e outras minorias, que não podiam se candidatar à Presidência ou à Câmera Alta do parlamento federal. Ele saiu vitorioso do caso em 2009.
Em termos práticos, uma Constituição pensada para três povos significa: três presidentes (um para cada etnia); 13 primeiros-ministros (um para cada entidade, um para equivalentes aos estados, mas com autonomia muito maior - dentro da Federação, e um para o distrito de Brčko, que, de acordo com decisão internacional, está submetido diretamente ao governo central e desfruta de grande autonomia); 13 constituições; 14 sistemas legais; e mais de 140 ministérios para uma população que beira os quatro milhões de habitantes, distribuídos por um território equivalente a um quinto da área do estado de São Paulo. Além disso, todos os documentos oficiais são escritos em dois alfabetos, o latino e o cirílico - mais comum nas regiões de maioria sérvia.
"Há a intenção da Republika Srpska de ser o mais independente possível. Nosso desejo é dar mais força ao governo central, uma pré-condição à candidatura do país à União Européia", descreve Mustafa Mujezinović, o primeiro-ministro da Federação, que, à época da entrevista, havia sido empossado no cargo uma semana antes. Os discursos e atos de Milorad Dodik, o primeiro-ministro da Republika Srpska, confirmam esse cenário. O mais importante político do lado sérvio do país se declara contra uma estrutura política centralizada e, vez ou outra a, dispar a provocações sobre a convocação de um referendo popular para a independência da área de maioria servo-bósnia. "Não há intenção de aceitar mudanças que seriam opostas às vontades de outras nações" , reforça Mujezinović. "Esse é o status quo e temos que ajustar nossas regras a partir desse status quo, a partir das demandas da União Europeia, se quisermos fazer parte dessa comunidade no futuro."
Em um ponto as forças políticas concordam: o futuro do país segue rumo à integração à União Europeia. Esse é um dos quatro pontos principais da política externa, apontados por Jasmina Paalić, Ministra Assistente de Relações Exteriores da Bósnia-Herzegóvina. Dos outros três, dois estão bem encaminhados - a liberação do regime de vistos na Europa para cidadãos do país e o ingresso na Otan - e um já foi concretizado - um assento na cadeira rotativa do Conselho de Segurança da ONU . A candidatura à UE, contudo, deixa claro que os meios adotados por cada força política divergem e se contradizem. "Precisamos ter um governo central forte", fiz pausadamente a ministra, entre uma tragada e outra no cigarro (fumar é um hábito nacional). Milorad Dodik, por sua vez, foi claro quanto à sua idéia de futuro para a nação:"Está na hora de a comunidade internacional reconhecer que seus esforços incansáveis de impor uma estrutura excessivamente centralizada não terão êxito, e aceitar que uma es trutura descentralizada, mas perfeitamente capaz para a entrada na UE, é a melhor garantia de prosperidade e estabilidade na região", ele escreveu no início do ano a Dennis Blair, ex-diretor da Inteligência Nacional dos Estados Unidos, que relatou com preocupação o aumento do sentimento separatista em meio à etnia sérvia.
Em outubro de 2010, serão realizadas eleições gerais na Bósnia. As tensões políticas, em conjunto com os estragos causados pela crise econômica (no ano passado, o PIB teve um crescimento negativo de -3,2%),colocaram o país na categoria"muitoalto" em um ranking de risco de agitação social criado pela agência EIU . Outro critério que jus tifica a má colocação é o fato de o país ser um "regime intermediário" (nem uma democracia consolidada, nem uma autocracia), graças à presença internacional centralizada na figura do austríaco de origem eslovena Valetin Inzko. Chefe do gabinete do Alto Representante Internacional (OHR) e Representante Especial da União Europeia, Inzko possui poderes executivos, de impor leis e afastar oficiais sem o consentimento do governo central ou das entidades. Dois presidentes, ambos representantes da etnia croata, já foram removidos do cargo assim.
Decisões não democráticas tomadas pelo representante internacional são uma maneira de resolver problemas tornados insolúveis pela política local. Mostrar, a cidade de maior capacidade turística do país, é um belo exemplo da utilização de poderes. Localizada na Herzegóvina, região histórica cujos ventos mediterrâneos do Mar Adriático influenciam no clima e na vegetação, a cidade tem como cartão-postal Stari Most (Old Bridge), legado de beleza impar do período turco-otomano. Quando a ponte foi destruída em 1993 por um morteiro croata, mais do que um patrimônio, o que se perdeu foram os elos de paz entre os bósnio-mulçulmanos e os bósnio-croa tas, então as etnias predominantes. A Stari Most foi reconstruída, reinaugurada em 2004 e colocada na lista da UNesco de patrimônio histórico da humanidade. Por sua vez, as relações entre os povos não se restabeleceram. Mostar tornou-se, literalmente, uma cidade separada em duas: a oeste estão os croatas; a leste, os bósnios. A ponte, que antes simbolizava a união, hoje é o marco da divisão.
A segregação invisível torna-se explícita em diversos centros de educação da Herzegóvina. Conhecida como a política de "duas escolas sob o mesmo teto", crianças frequentam as aulas na mesma construção, mas são separadas de acordo com a etnia. As entradas, os intervalos, os professores, as matérias, tudo difere entre croatas e bosniaks. Em 2005, o então representante internacional Paddy Ashdown removeu o Ministro da Educação do Cantão da Bósnia Central de seu cargo, por falhar em implementar leis visando à integração. Dois anos depois, a substituta no cargo, Greta Kuna, disse à mídia local que a política seguiria em frente, pois "não se pode misturar maçãs com peras".
Seria improvável que, invadindo campos públicos e políticos, as rusgas étnicas não alcançassem as arquibancadas esportivas. E elas estão lá, em um país também fanático pelo futebol. Ser um brasileiro na Bósnia é a garantia de ouvir de seu interlocutor quando a ele apresentado, interjeições como "Pêle!", "Káka!" e "Ronaldo!", entre outros menos cotados (café, Paulo Coelho e Sepultura foram citados uma vez cada um).
O futebol também explica a Bósnia - e o jovem Allen Hildo, uma parcela dela. Aos 22 anos, ele é um bósnio- muçulmano e membro da torcida organizada do Sarajevo, o time bosniak da capital (as equipes também são etnicamente rotuladas de acordo com suas torcidas). Em um sábado de verão à tarde, a Sarajevska, a cerveja mais popular da região, desce gelada entre papos sobre seleções e campeonatos pelo mundo. O olhar de Hildo para as garotas que entram no bar é o de um conquistador em alerta. Ele não usa barba, não frequenta mesquitas e não dá a mínima par a papos étnicos, pois sabe que sua cidade tem outros problemas - corrupção, pobreza, violência, entre outros.
Distante dali, em Mostar, em uma noite beirando 40° C, acabei no estádio de futebol Bijeli Brijeg. Zrinjski Mostar, o time local, enfrentaria o Slovan Bratislava, da Eslováquia, em partida válida pela fase pré-eliminatória da Liga dos Campeões da UEFA.
Lá estava uma cara conhecida: Ivo Marinović, orgulhoso de seu passaporte croata, junto ao amigo Zeljko Zadro. A partida é fraca e fica para segundo plano. A torcida ensandecida chama muito mais a atenção. Os Ultras, como são conhecidos, não devem nadas às torcidas organizadas brasileiras. Cantam e agitam sem parar. Só desvio a atenção quando sai o único gol da partida da, marcado pelo Zrinjski Mostar . As conversas com a dupla ao meu lado são recheadas de tiradas contra "o povo do outro lado do rio". Os bosniaks, os dois me explicam, têm o próprio time também, o Vele Mostar. Quando o clássico local acontece, a cidade para. Pergunto como é a relação entre as torcidas rivais.
"É como uma guerra", responde Zeljko.
"Mas é só por causa do futebol?"
"Do futebol, da guerra, da etnia, da religião. Tudo."
Em um país como a Bósnia, os cantos de guerr a possuem valor literal.