Um furacão em cima do palco, cheia de timidez nos bastidores: relembre a trajetória de Cássia Eller
O mundo ficou muito mais careta depois que Cássia Eller morreu.” A frase da servidora pública Maria Eugênia Vieira Martins, que foi companheira da cantora durante 14 anos, pode soar exagerada, mas talvez não seja. Basta observar a influência de Cássia sobre artistas de vozes atuais, com timbres graves: de Paula Fernandes a Ana Carolina, nenhuma delas é tão ousada, criativa, libertária e tem tamanha potência vocal. Enquanto mostrava o seio, coçava os genitais e cuspia no chão, Cássia Eller dava um toque bem pessoal a canções tão variadas quanto às gravadas por artistas como Edith Piaf, Chico Buarque, Nação Zumbi e Beatles. Porém, longe dos palcos, ela surpreendia pela timidez e pela dificuldade em lidar com o crescente assédio dos fãs.
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“Eu sinto orgulho de ter convivido com essa pessoa que dá vida nova às músicas que canta. Sinto muita falta da voz e do cheiro da pessoa com quem eu dividia a vida”, emociona-se Maria Eugênia, que ainda mora no apartamento no bairro de Laranjeiras, no Rio de Janeiro – o mesmo da música “All Star”, composta por Nando Reis para Cássia. Ela vive com o filho da cantora, Francisco, o Chicão, 18 anos, de quem possui a guarda definitiva desde 2002. “O começo foi bem difícil, por ter que conviver com a tristeza dele pela ausência da mãe, somada a angústia e incerteza de ficar com ele”, conta.
A mãe de Cássia, Nanci, recorda que o dom da filha começou a se manifestar quando ela tinha 1 ano e 2 meses, quando aprendeu a cantar ouvindo músicas com a babá. “Aos 14 anos, o pai comprou um violão de presente para ela. Pensei em colocá-la numa escola, mas ela não quis. Morria de vergonha, e me pediu para comprar o método número 1 de violão”, relata Nanci. “Achei que não fosse aprender, mas, na semana seguinte, ela me pediu para comprar o número 2.” Em Belo Horizonte (MG), onde mora, Nanci prepara uma missa em homenagem à filha, morta no dia 29 de dezembro de 2001.
Como a mais velha de cinco irmãos, cássia Rejane Eller – nascida no Rio de Janeiro em 10 de dezembro de 1962 e batizada em homenagem a Santa Rita de Cássia – adorava assustá-los. “Ela sempre foi muito levada. Tinha mania de batucar em móveis e panelas, e quebrar copos para fazer barulho. Imitava Maria Bethânia e Ney Matogrosso muito bem, com os gestos e botando cabelão”, relembra, nostálgica, a irmã Cláudia Mara. Nanci acrescenta uma memória que exemplifica o jeito único, misto de personalidade travessa com uma inseparável timidez, uma das marcas de Cássia. Já famosa, a cantora foi se apresentar com Zélia Duncan, Adriana Calcanhotto e a própria Bethânia, a qual começou a imitar nos bastidores, sem saber que era observada pela verdadeira, que, escondida das vistas de Cássia, se acabava, aos risos. Quando descobriu, Cássia morreu de vergonha e quase não subiu ao palco.
O primeiro trabalho artístico veio em Brasília, em 1982, graças a um anúncio publicado no jornal Correio Braziliense. Era um teste para o musical Vejo Você, Brasília, de Oswaldo Montenegro. “Cássia parecia ser compositora de qualquer música que cantasse”, diz Montenegro, que diverte-se com a imagem irreverente que guarda da cantora. “Na estreia, ela bateu na porta do camarim, e estava sem nenhum pelo no rosto. Havia tirado as sobrancelhas, os cílios... Mandou de bate-pronto: ‘Estou bonita, chefe?’ Respondi: ‘Está linda, apenas com o rosto um pouco vazio’. Ela puxou um batom, passou acima dos dois olhos e perguntou: ‘E agora?’ Eu disse: ‘Maravilhosa!’ E lá se foi ela para o palco.”
A aparência extravagante também chamou a atenção do ator, autor e diretor teatral Marcelo Saback, presente no musical, que viria a se tornar amigo íntimo da cantora. Juntos, os dois montaram o musical Gigolôs. “Na noite de estreia no Teatro Nacional, quando entramos no camarim para fazer uma concentração com os músicos, Cássia estava com o violão a tira-colo, maquiada e de vestido, mas com um dos seios de fora, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Nunca me esqueço da cara dos músicos tentando se concentrar na prece enquanto olhavam aquele seio solto!”, relata Saback, descrevendo como se a memória ainda permanecesse intacta.
Em 1986, Cássia Eller passou a tocar no Bom Demais, bar que servia comida natural e virou importante polo cultural de Brasília. Foi lá – onde, segundo a proprietária Cristina Regina, o estilo de cantar de Cássia chegou a desagradar aos outros músicos, por “desafinar demais” – que o poeta Tavinho Paes, então produtor do selo SBK (Sony), mudou o rumo da história. “Em 1988, havia um show onde um ‘garoto’ de terno quadriculado cantava num tom, a banda em outro e, no final, tudo ficava sensacional. Voltei e comuniquei ao Marcus Kilzer, diretor do selo, a respeito desse garoto, e convenci os caras a trazerem o tal fenômeno ao Rio. Quando chegou é que descobri que era uma garota, muito bonita, com rosto firme e um jeito moleque encantador”, relata Paes.
O trabalho não foi para a frente, mas pouco depois Cássia foi contratada pela Polygram. A primeira gravação foi como convidada na canção “Totem”, do pianista e compositor mineiro Wagner Tiso, incluída no álbum Baobab (1990). “Cássia estava um pouco tímida, sem saber como teria que cantar. Soltei o playback, ela fechou os olhos e começou a improvisar em cima, sem palavras. Só com vocalize... Eu fiquei maravilhado com aquela voz tão insinuante, sugestiva e original”, diz Tiso. “Nunca mais apareceu nessa área uma cantora com tanta força, versatilidade e audácia”.
Quando decidiu que era hora de abandonar a Polygram (atual Universal), Cássia tinha lançado dois álbuns de pouco sucesso. Sentada na calçada em frente à gravadora, ela foi socorrida pelo produtor musical Guto Graça Mello, que a convenceu a gravar escondido um disco no estúdio da casa dele. “Ela parava as gravações para amamentar o filho recém-nascido, até que o disco ficou pronto. Mixamos e entreguei à Polygram, que imediatamente topou lançar. Foi uma honra participar dessa virada dela”, orgulha-se Guto. A influência de Chicão, filho de Cássia, não aparecia só nas pausas para amamentar. “No primeiro ano de vida dele, a gente ‘encaretou’, pois não podia mais ter aquela vida de ‘porra-louquice’, meio Novos Baianos”, conta Maria Eugênia. “Também escutamos muito o disco Cor de Rosa e Carvão, da Marisa Monte. Chicão adorava aquelas músicas e um dia disse para a mãe que achava que ela cantava gritando muito, e que gostava mais da Marisa. Não sei se isso a influenciou ou o fato de que ela teve que ninar o filho e, por isso, cantar de forma mais suave”, avalia.
Cássia Eller, o álbum, vendeu cerca de 100 mil cópias, em 1994, principalmente graças a “Malandragem”. A canção foi escrita por Cazuza e Roberto Frejat, que a deu de presente para ela, após ter sido rejeitada por Angela Ro Ro. Foi nesse terceiro e homônimo disco que Cássia gravou pela primeira vez uma canção coescrita com Nando Reis, “ECT”. No show de divulgação, ela também incluiu “Nenhum Roberto”. Mas a relação entre os dois se acentuou mesmo no sétimo álbum, Com Você... Meu Mundo Ficaria Completo, de 1999. Quatro das 12 canções são dele, incluindo a faixa-título e o sucesso “O Segundo Sol”. A parceria foi tão frutífera que, em março de 2001, o músico dirigiu, com Luiz Brasil, o disco Acústico MTV, que vendeu quase 900 mil cópias – o auge do sucesso de Cássia, que rodou o Brasil com o show baseado na gravação. Dez anos após a morte da cantora, Reis (que não quis dar declarações para esta reportagem) produziu o disco Relicário – As Canções Que o Nando Fez pra Cássia Cantar, com “Baby Love”.
Em janeiro de 2001, Cássia Eller realizou o show que reuniu o maior público em toda a sua carreira, durante o Rock in Rio, quando fez uma cover de “Smells Like Teen Spirit”. Dave Grohl, ex-baterista do Nirvana, que, naquela noite, se apresentaria com o Foo Fighters, ouviu a versão. “Quando acabou o show, soubemos que o Dave falou que aquela havia sido a versão mais legal que já tinha escutado da música. Foi bacana saber que ele também percebeu a grande intérprete que ela era”, afirma a percussionista Elaine Silva Moreira, a Lan Lan.
O show do Rock in Rio marcou a estreia de Chicão na percussão, instrumento que toca no álbum Relicário. Avesso a entrevistas, ele é apontado como o maior herdeiro da mãe – e não só pela semelhança física. “Não sabia que caráter poderia ser genético. Hoje penso que pode. Ele trata as pessoas da mesma maneira e tem a mesma visão do mundo”, garante Eugênia. “Todo mundo fala que surgirá a nova Cássia Eller, mas quem mais se parece com ela é Chicão. Ele é o maior alento ao vazio que ela nos deixou”, acrescenta Lan Lan.
Entre maio e dezembro de 2001, Cássia Eller realizou 95 shows, e haveria mais um na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, durante o Réveillon. A estafa e o estresse eram evidentes para os mais próximos, como a sobrinha Ana Carolina Eller Monteiro. Na época com 16 anos, Ana tocou percussão durante um show de Cássia, em Maceió, em setembro. “Quando ela subia no palco, não demonstrava, mas estava cansada fisicamente. Ela voltou para o hotel, chorando, e não queria sair de lá”, lembra.
Cássia partiu para a capital fluminense em 26 de dezembro, depois de passar o Natal em Brasília. “Ela não estava bem emocionalmente”, afirma Eugênia. “Estava muito estressada, vinha de um ano puxado. Também tinha dificuldade de lidar com todo o assédio e amor que as pessoas dispensavam para ela.” Lan Lan, última pessoa a vê-la com vida, acrescenta que Cássia não queria, de forma alguma, deixar transparecer o cansaço – e acredita que a saúde dela já dava indícios de debilidade dias antes de sua morte. “Cássia havia parado de fumar e, antes de vir ao Rio ensaiar, me ligou dizendo que havia sentido falta de ar. Então, acho que ela vinha enfartando e ninguém sabia, nem ela mesma.”
Os sinais de fraqueza também foram sentidos meses antes por Nanci, que lembra que a filha teve febre reumática dos 4 aos 24 anos e arritmia cardíaca na infância. “Pouco antes de falecer, ela me disse que estava desenvolvendo uma barriga. Para mim, aquilo era um sinal de enfarto, mas ela não acreditou”, afirma. Nanci também se recorda que a filha teve dor nos braços e dormências após um banho de mar no início de dezembro, e uma forte dor lombar no dia em que foi gravar a faixa “Milagreiro” com o cantor Djavan, último registro dela em disco.
Na manhã seguinte ao ensaio para o show do Réveillon, Lan Lan e Thamyma Brasil foram socorrer Cássia, que passava mal e chorava muito. “Ela estava em abstinência de drogas e bebida, e fazendo terapia. Nós a levamos para tomar água de coco e fomos acalmando-a. Como ela sentia dor de cabeça e enjoo, paramos numa clínica perto de casa”, conta Lan Lan. “Conversamos com ela, até que a levaram para tirar pressão ou lhe dar soro. Desci para preencher a ficha e, quando tentei voltar, soube que ela havia tido a primeira parada cardíaca.” Foram mais quatro paradas cardiorrespiratórias até ser anunciada a morte em razão de um enfarto do miocárdio. A hipótese de overdose de drogas, alardeada pouco depois, foi descartada pelos laudos periciais do Instituto Médico Legal.
“As lesões que ela apresentava no coração, segundo os laudos, eram totalmente compatíveis com a febre reumática. Claro que o estilo de vida que ela levava colaborou bastante para o desfecho trágico. Mas dizer – ou pior, insinuar – que ela morreu por uso de drogas é, no mínimo, leviano”, descreve Eduardo Belo, autor da biografia Apenas uma Garotinha, escrita em parceria com Ana Claudia Landi. “É inegável que ela deixou sua marca, mas tinha potencial para ser a grande voz da música brasileira, do pop nacional”, ele enfatiza. “Ela chegou muito perto disso.”
A história de Cássia Eller foi adaptada para o cinema por Paulo Henrique Fontenelle. “O objetivo do filme é resgatar a vida e a obra dela para entendermos quem foi essa artista, responsável por clássicos do nosso cancioneiro e que ajudou a desafiar e quebrar tabus numa sociedade que reconquistava sua liberdade após mais de 20 anos de ditadura”, diz o diretor. Ele resume, talvez, o que fazia de Cássia uma personagem tão atraente. “Polêmica, afetuosa, romântica e impulsiva: Cássia encarnava várias facetas dentro de uma só pessoa.”