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Todas as Línguas Dizem Naná

Multipremiado e considerado o melhor percussionista do mundo, Naná Vasconcelos morreu aos 71 anos

Alex Mirkhan Publicado em 14/04/2016, às 02h42 - Atualizado em 02/08/2016, às 16h00

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Naná Vasconcelos ao vivo, em 2008. - Otavio de Souza
Naná Vasconcelos ao vivo, em 2008. - Otavio de Souza

Transformar em música algo simples e elementar, como os sons do próprio corpo, os pingos de chuva e o silêncio: a originalidade e a versatilidade do gênio da percussão Naná Vasconcelos, que morreu em 9 de março, vítima de câncer, escondem mistérios decodificados apenas por espíritos livres e sensíveis como o dele. “Naná fazia mágica e estava além da música”, registra Milton Nascimento, amigo de longa data do percussionista.

Foi justamente ao lado do então estreante cantor e compositor mineiro que Naná surgiu no cenário da música nacional, em 1967, no Rio de Janeiro, vindo do Recife, onde começou muito cedo, por volta dos 12 anos, acompanhando o pai, que também era músico na banda municipal local. Nessa fase, chegou a excursionar com outro jovem talento da época, Gilberto Gil, e integrou o Quarteto Livre, liderado por Geraldo Azevedo, que acompanhou Geraldo Vandré em “Pra Não Dizer que Não Falei das Flores”, no 3o Festival Internacional da Canção.

Autodidata, Naná encontrou inspiração em grandes mestres, como Heitor Villa-Lobos. Com “O Trenzinho Caipira” aprendeu a transformar música em paisagens sensoriais. Um de seus companheiros de improvisos, o multiinstrumentista e compositor Arismar do Espírito Santo acredita que Naná ensinou as pessoas a encontrar a música escondida dentro delas mesmas. “É como se ele tivesse uma aquarela e conseguisse brincar com as cores para transformá-las em algo novo, um lugar diferente”, diz.

A primeira marca do artista foi o berimbau, instrumento afro-brasileiro da capoeira que Naná ajudou a popularizar em todo o mundo, extraindo timbres e sono como uma forma de orquestra, despertou a atenção do saxofonista argentino Gato Barbieri, com quem fez as primeiras excursões pelos Estados Unidos e Europa. No Festival de Montreaux, na Suíça, em 1970, alcançou a consagração junto à crítica e sedimentou o caminho para seu primeiro disco – Africadeus (1971) –, antes de iniciar uma intensa parceria com o multiinstrumentista Egberto Gismonti.

Fora do Brasil, colecionou outras parcerias inigualáveis e muitos prêmios, incluindo o Grammy, que ganhou oito vezes. Foi, ainda, eleito oito vezes como o melhor percussionista do mundo pela revista norte-americana DownBeat. Esse caminho de sucesso foi percorrido especialmente em Nova York, onde viveu por 27 anos. Ao lado de Don Cherry e Collin Walcott, com quem formou o grupo Codona, e também em colaboração com Pat Metheny, estabeleceu novos limites às fronteiras do jazz e da world music.

A diversidade e a amplitude musical foram ainda cultivadas em parcerias com expoentes das mais variadas vertentes, como Paul Simon, B.B. King, Miles Davis, Tal king Heads, Jean-Luc

Ponty e Jon Hassell. O indiano Trilok Gurtu, outra lenda da percussão, veio ao Brasil em 2014 para abrir o festival MIMO Recife a convite de Naná, com quem disse ter estabelecido uma amizade “comum a dois irmãos”.

Trilok exaltou a importância de Don Cherry para sua aproximação com o colega que considera “o maior músico brasileiro, acima até de Airto Moreira e Gilberto Gil”. Segundo ele, foi Cherry quem conectou Naná à musicalidade oriental, especialmente a indiana. “Juntos, nós levávamos tudo na brincadeira e fazíamos piada até em cima do palco, enquanto pensávamos a música em alta velocidade”, relembra.

Juvenal de Holanda Vasconcelos “nunca soube separar o amor e a música”, conta a viúva dele, Patrícia Vasconcelos, o que ajuda a explicar seu carisma. Enxergava a alma da sua gente e captava o “Brasil profundo”, termo que usava para se referir a “um Brasil que não se conhece”. Naná também expandiu os limites da percussão e resgatou culturas adormecidas em povos ancestrais e espiritualidades variadas do candomblé, com a qual tinha grande intimidade, à mediunidade encontrada no espiritismo kardecista ou no budismo, que seguiu por influência de Metheny.

Naná Vasconcelos tinha uma habilidade única para transitar com desenvoltura entre os diferentes formatos. Segundo André Hosoi, um dos fundadores do grupo de percussão corporal Barbatuques, um dos diferenciais do mestre era “sua generosidade para ouvir o que as pessoas tinham a dizer, sem distinção, o que é muito incomum em gigantes como ele”. A paciência que tinha para narrar causos e conversar sobre música, o que fazia alternando a voz serena com gargalhadas contagiantes, não era a mesma quando o assunto era ensaio e gravação. “Ele brincava que não gostava de ensaiar porque ficaria parecido com o show”, diverte-se Arismar do Espírito Santo, ao se lembrar do amigo.

Outra ousadia de Naná Vasconcelos foi reunir as nações de maracatu recifenses na abertura do Carnaval durante 15 anos seguidos, a despeito das rivalidades históricas. “Ele foi um dos grandes responsáveis pelo fortalecimento da nossa manifestação cultural”, afirma Mestre Chacon, do Maracatu Nação Porto Rico. Protagonismo que também demonstrou ao reunir grandes nomes da percussão mundial em edições do festival PercPan, em Salvador e São Paulo, e nos projetos sociais ABC Musical e Língua Mãe, cujas apresentações com orquestras contaram com as vozes, em coro, de crianças de escolas públicas.

O impulso de fazer música não se abalou nem quando o artista começou a lutar contra um câncer de pulmão, diagnosticado em meados de 2015. Naquele ano, lançou o álbum Café no Bule, em parceria com Zeca Baleiro e Paulo Lepetit. Também ressurgiu na mídia por sua contribuição para a trilha de O Menino e o Mundo, animação do diretor Alê Abreu indicada ao Oscar deste ano, e por ter recebido o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal Rural do Pernambuco.

Pouco antes de morrer, em Recife, ainda reservou energias para desenvolver projetos, mesmo restrito ao leito do hospital. Em parceria com Egberto Gismonti e o maestro Gil Jardim, compôs a canção inédita “Amém, Amém”, seu último trabalho, ainda sem previsão de lançamento. “Antes da internação, estávamos iniciando um projeto muito bonito em homenagem aos 20 anos da morte do (fotógrafo e etnólogo) Pierre Verger, que infelizmente não deu tempo de concluir’”,

lamenta Jardim.

Em seu último disco solo, Sinfonia & Batuques (2011), Naná convidou a lha, Luz Morena, para participar de três faixas ao piano, e foi aclamado pela crítica novamente ao captar batidas feitas na água. Sentia-se contrariado ao ser chamado de mestre, argumentando que “o mestre está lá no céu”. Uma modéstia que, agora, infelizmente faz parte da realidade.