Mixaria no sertão e ouro no exterior: fósseis brasileiros fazem a fortuna de contrabandistas
Madrugada no interior do Ceará. No lugar do chão castigado pela seca, cercado por mandacarus e xiquexiques, imagino uma floresta milenar com as primeiras plantas com flores. Em grandes lagos, jacarés e peixes primitivos disputam alimentos com répteis voadores de cristas coloridas. Uma profusão de insetos num momento da evolução natural que vai moldar toda a vida na Terra. E tudo acontece em solo brasileiro. Sigo por uma estrada sinuosa, vez por outra cortada por animais que atravessam a pista. Eles até poderiam ser dinossauros, pois três novas espécies desses gigantes da pré-história foram descobertas na região. Busco informações sobre o tráfico internacional de fósseis, um mercado milionário que no Brasil tem a falta de fiscalização e a miséria como principais aliadas. Pistas me levam a Nova Olinda e Santana do Cariri, duas cidadezinhas a 600 quilômetros de Fortaleza, localizadas na Chapada do Araripe, fronteira entre os estados do Ceará, Pernambuco e Piauí. O lugar é famoso nos meios científicos por abrigar um importante depósito natural de fósseis com espécies que viveram ali entre 65 e 135 milhões de anos atrás.
Lentamente, o céu ganha cores fortes e vai amanhecendo. Ligo o rádio do carro. Para minha surpresa, Red Hot Chili Peppers, U2 e The Cure também tocam nessas bandas do semi-árido. Logo, Francisco Samuel, 12 anos, anuncia: "Casa Grande FM". A rádio, que faz parte de uma fundação apoiada pela Unicef, vem mudando a vida das crianças com arte e educação. Figuras como Arnaldo Antunes e Gilberto Gil já passaram pelo local deixando algumas relíquias em CD ou vinil. No entanto, o grosso das doações vem do exterior. É uma relação positiva para o Brasil. Infelizmente, perto dali, o contrabando de fósseis extraídos das minas da região vem levando, ao longo das últimas três décadas, nosso patrimônio milenar para museus, colecionadores e pesquisadores da Europa, Japão ou Estados Unidos. Com uma rede eficiente e bem-informada, o comércio ilegal faz a fortuna de muitos aventureiros. Se um fóssil importante é encontrado nas minas da região, logo os contrabandistas ficam sabendo. Mesmo os trabalhadores mais jovens sabem diferenciar um inseto valioso de um simples besouro ou um réptil voador de um aquático. A descontrolada atividade extrativista e a ação dos traficantes representam uma ameaça ao patrimônio científico-cultural do país, que vem sendo espoliado ao longo dos anos. Um processo cruel, em que o sertanejo vende os fósseis para matar a fome da família e o atravessador fica rico e impune.
A Chapada do Araripe faz parte de uma região de extrema importância científica. Milhões de anos atrás, essa imensa área (que hoje abriga solos ressequidos - parte do polígono das secas) era formada por lagos de água doce, alguns com mais de 100 quilômetros de extensão, que vez por outra se comunicavam com o mar. Do solo desses antigos reservatórios naturais - considerados únicos por sua qualidade de preservação, variedade de espécies e quantidade de exemplares -, já emergiram fósseis de dinossauros, pterossauros (répteis voadores), crocodilos, rãs, tartarugas, peixes, insetos, moluscos e plantas em excelente estado de conservação. Alguns fósseis de animais são encontrados com vestígios de sua última refeição, além de fibras musculares ou pedaços de órgãos internos como cérebros, ovários e intestinos. Insetos com a textura e as cores das asas inalteradas também fazem parte dos achados. Conhecida pelos principais naturalistas da Europa desde o século 19, a riqueza científica da região começou a ganhar destaque às vésperas dos anos 60 através do geólogo alemão Karl Beurlen (1901-1985), fundador do curso de geologia da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco). Fugitivo da Alemanha da década de 1940, o professor Beurlen foi um dos pioneiros na definição da estratigrafia (estudo das camadas do solo), sistematizando as primeiras pesquisas da chamada "Bacia do Araripe". Meio século depois, em setembro de 2006, durante uma conferência em Belfast, Irlanda do Norte, a Chapada do Araripe foi oficialmente aceita como membro da rede mundial de geoparques sob os auspícios da Unesco - o primeiro e único das Américas. Apesar do reconhecimento, o título, pelo menos a curto prazo, não muda a situação do tráfico.
Muitas das raridades fósseis retiradas do solo nordestino estão espalhadas ilegalmente por centros de pesquisas do mundo inteiro. "Fizemos uma estimativa que aponta cerca de 20 mil exemplares de insetos do Araripe no exterior contra 4 mil em museus e universidades do Brasil", alerta o geólogo Alexandre Magno Feitosa, que há cinco anos vem pesquisando no local. Sua estimativa parece tímida quando comparada com outros dados que dizem passar dos 70 mil os fósseis contrabandeados. O trabalho dos sertanejos que se lançam na aventura clandestina de garimpar nossas relíquias acaba enriquecendo os traficantes de fósseis e dando fama a pesquisadores estrangeiros. Os Estados Unidos e a Alemanha são os principais clientes dessa máfia ainda pouco conhecida. Em países do chamado Primeiro Mundo, um fóssil raro chega a custar US$ 200 mil. Com a entrada dos japoneses nesse ramo, os preços no mercado internacional dispararam. Quando o assunto é adquirir fósseis importantes, alguns museus do Japão não têm restrições orçamentárias, chegando a pagar mais de US$ 1 milhão pela peça. Segundo o paleontólogo David Martill, da Universidade de Portsmouth (Grã-Bretanha), o museu de Kyoto possui um fóssil quase completo de uma espécie de ave ainda desconhecida que viveu no Araripe, há uns 100 milhões de anos, e foi levado para o outro lado do mundo ilegalmente. Se confirmada a autenticidade do fóssil que está no Japão, "ele seria o representante mais antigo do grupo de aves descoberto no Gondwana", o supercontinente formado pela América do Sul e África, afirma Martill.
O interesse dos contrabandistas - principalmente dos alemães - pela riqueza científica da Chapada do Araripe começou entre as décadas de 1980 e 1990. Naquela época, o intenso comércio abastecia museus de Hamburgo, Frankfurt e Munique. Com a chegada ao interior cearense do alemão Michael Lothar Schwickert, um dos maiores contrabandistas de fósseis em atuação no mercado internacional, o esquema teve o seu coroamento, trazendo prejuízos incalculáveis para o patrimônio brasileiro e transformando a região num núcleo de exportação. Depois de algumas viagens "exploratórias", em que fez contatos com os caboclos da região, Schwickert implantou um moderno sistema de coleta de fósseis que contava com estação de rádios comunicadores, equipamentos pesados como compressores e técnicas mais eficientes do que as utilizadas pelos trabalhadores das minas. Ele montava as equipes e trabalhava à noite. As peças eram enviadas para a Europa em caixotes colocados em contêineres despachados sob o disfarce de outro material, como pedras e calcário, nos portos ou aeroportos de Recife, São Paulo e Rio. Prendê-lo era uma questão de honra para a polícia brasileira.
Proprietário da empresa ms-fossil e com um esquema recheado de colaboradores locais, entre os quais se destacam Francisco Ronaldo Correia e Euclides Praxedes, que cobriam grande parte da Chapada do Araripe, Schwickert chegou a solicitar uma autorização de trabalho temporário ao governo brasileiro. No entanto, em 2002, depois de investigá-lo desde 1996, a Polícia Federal conseguiu prendê-lo em Fortaleza. Como não portava fósseis, terminou extraditado e responde ao processo em liberdade. Os pesquisadores brasileiros desconfiam de que as peças mais raras contrabandeadas do Brasil nessa época estejam na Alemanha, principalmente em Berlim, Stutgard, Chemnitz e Bonn. Seguindo os rastros deixados pelo traficante alemão, fui ao Museu de Ciências Naturais de Berlim, o Museum für Naturkunde, e lá fotografei várias peças da Chapada do Araripe que estão em destaque numa vitrine. São fósseis brasileiros de insetos, peixes e plantas com as primeiras flores em perfeito estado - raridades do mundo científico que o Brasil perdeu para o contrabando. Um desses fósseis, uma planta Cratonia cotyledon de 130 milhões de anos, que está ajudando os cientistas a fechar um buraco na história evolutiva dos vegetais, foi descrito por um trio de pesquisadoras da Suécia e da Alemanha (Catarina Rydan, Bárbara Mohr e Else Frills) sem a participação de brasileiros. Para entender a importância desses fósseis, o paleontólogo Diógenes de Almeida Campos, coordenador do museu de Ciências da Terra (RJ), ensina que o Araripe abrigou as primeiras florestas com flores, que vão mais tarde alimentar os mamíferos e as aves. "É essa floresta que vai moldar a vida na Terra, permitindo o aparecimento dos primatas e do homem. São as plantas que preparam o ambiente para depois surgirem os animais que vão estar adaptados a ele", enfatiza.
Considerado crime federal no Brasil porque envolve o patrimônio da União, o comércio de fósseis é legalizado em países como Alemanha, Rússia e Estados Unidos. O Ministério da Justiça, através da Abin (Agência Brasileira de Inteligência) e da Polícia Federal, mantém constantes diálogos com os pesquisadores para levantar dados que possam desencadear operações de repressão policial. A legislação que trata do assunto no Brasil é de 1942 e limita-se a um decreto-lei assinado pelo então Presidente Getúlio Vargas, e não estabelece regras para a comercialização dos fósseis, prejudicando a política de repressão. Desde 1996, se arrasta no Congresso Nacional um Projeto de Lei, de autoria do senador Lúcio Alcântara, que cria novas regras para a proteção do patrimônio paleontológico brasileiro, mais que até hoje não foi aprovado. Mesmo sem uma lei específica, nos últimos anos, a Polícia Federal conseguiu apreender mais de 30 mil fósseis somente no interior do Ceará. Para o paleontólogo Alexandre Kelnner, do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a proteção aos depósitos de fósseis é uma preocupação cada vez maior em âmbito mundial. "Em diversos países já existem leis que, de uma maneira ou de outra, procuram controlar a extração de material fóssil, sendo que o êxito varia bastante em função do estado ou país onde esses dispositivos legais são aplicados", explica. Kelnner enfatiza que entre as diversas soluções para amenizar o problema estão a criação de parques e o desenvolvimento da indústria turística na região, levando uma melhora econômica para a população. "No entanto, essas medidas precisam ser acompanhadas por ações educativas, mais do que as punitivas, visando a conscientização da população local sobre a importância e os benefícios que o patrimônio paleontológico pode fornecer."
A falta de regras claras na legislação brasileira, aliada à omissão e à irresponsabilidade de diversos países que não participam de uma convenção da Unesco que tem como objetivo coibir o tráfico de fósseis, piora a situação e faz com que estrangeiros usem até a internet para comercializarem fósseis do Brasil. Em um site alemão, o Fossilien, a Chapada do Araripe tem um link especial onde libélulas, aranhas, abelhas, vespas e outros insetos brasileiros são vendidos entre 100 e 600 euros em fatias polidas e descritos como de grande beleza por suas cores. Também é possível encontrar animais tupiniquins no site eBay. A própria empresa afirma que adquiriu o material numa exposição em Tucson, cidade norte-americana que concentra grandes feiras de fósseis. Segundo o geólogo Arthur Andrade, técnico do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), é possível pedir a devolução dessas peças, mas o processo é demorado. Andrade participou de uma reunião com representantes do Ministério Público Federal para traçar uma estratégia e seguir o caminho da Argentina e China, igualmente roubados, e que brigam pelo retorno de seus fósseis. Além de uma legislação ineficiente, a comercialização de fósseis no Brasil recebe pouca atenção dos órgãos competentes. "O problema é que ainda não valorizamos nosso patrimônio e os órgãos de pesquisa e proteção não dispõem de recursos. A facilidade de retirada dos fósseis é alimentada por uma lei que permite interpretações dúbias, tratando populações pobres que têm a venda como parte da renda mensal e quadrilhas especializadas com compradores no exterior da mesma forma", reconhece.
A retirada dos fósseis nos municípios de Santana do Cariri e Nova Olinda, incluídos no mapa da fome do Governo Lula, integrando a lista de municípios miseráveis assistidos pelo programa Fome Zero, é um subproduto da extração mineral no Vale do Cariri, uma atividade econômica extremamente importante para a região e que utiliza mão-de-obra sem as mínimas garantias trabalhistas. De suas minas, sai grande parte do gesso consumido no país além das famosas lâminas de calcário conhecidas como "pedra cariri", muito utilizadas em revestimentos ou pisos. É por esse motivo que várias casas da região nos remetem à pré-história: com as paredes e o chão totalmente de pedras - não raro com pequenos fósseis de peixes. Trabalhando nas pedreiras desde 1990, José Furtuoso Sobrinho, 60 anos, passa o dia inteiro sob o sol sem capacete, luvas, máscaras ou qualquer outra proteção. Recebe cerca de R$ 80 por semana que não são suficientes para alimentar a família, formada por 13 filhos - o mais velho com 28 anos. Alguns dos meninos, dois deles menores, trabalham com o pai. José nasceu em Saboeiro, 120 quilômetros de Nova Olinda, mas teve que fugir de sua terra em busca de emprego nas minas. Vez por outra, o reforço no orçamento familiar vem da venda dos "peixes de pedra", retirados do solo com alavanca, marreta e sem conhecimento técnico-científico. "Está mais difícil achar um peixe. O camarada, às vezes, ainda encontra um bacalhau", diz se referindo à espécie Dastilbe elongatus, um fóssil de pouco valor comercial, vendido por R$ 20 nas minas.
Na histórica cidade do Crato - uma espécie de capital cultural do sertão cearense - conversei com um dos precursores na divulgação e defesa dos fósseis nordestinos, o professor Plácido Cidade Nuvens, reitor da Universidade Regional do Cariri (Urca) e criador do Museu de Paleontologia de Santana do Cariri. Para ele, o início do tráfico de fósseis no Ceará está ligado ao aumento no fluxo de migração dos sertanejos para cidades como São Paulo e Rio de Janeiro no final da década de 1950, começo dos anos 60. Foi o deslocamento dessas pessoas para o centro-sul do país que terminou alimentando o contrabando. "Duas figuras importante foram o cearense Milton Duarte, que morava em São Paulo, e o comerciante Boca Rica", relembra. Na década de 1960, Duarte estabeleceu uma grande rede de coletores responsáveis por reunir as peças e enviar para São Paulo. As encomendas eram feitas aos trabalhadores e agricultores da região: "Vê se tu tens aí uma pedra de rua". No começo dos anos 70, entram novos personagens, como Françoar Dedão, que terminou se juntando a Euclides Praxedes para coordenar os trabalhos nas minas e coletar fósseis nos riachos da região. Atualmente, Tim Maia, Bolinha, Edmar, Paulinho, Ronaldo e principalmente Euclides dominam as negociações.
Anos de retirada dos fósseis da chapada do Araripe, sobretudo dos riachos pedregosos da região e do conjunto de minas da Pedra Branca e redondezas, ocasionaram o esgotamento das relíquias nas jazidas superiores, quase à flor da terra. Agora, na falta de raridades, quando os fósseis são encontrados nas minas, terminam sendo vendidos no próprio local por preços irrisórios. A miséria leva os trabalhadores a negociar pequenos fósseis de peixes milenares (as "piabinhas') por R$ 0,15 a unidade. Andando pelas minas, sufocado pelo pó branco que impregna o ar, imagino o ambiente há milhões de anos. Os jacarés deviam infestar as lagoas que aprisionavam milhares de peixes - espécies de água doce e salgada, uma fartura sem precedentes. Quando um desses répteis morreu, o lago raso pode ter feito seu corpo afundar, sendo soterrado pelos sedimentos. O tempo se encarregou de transformá-lo em pedra. Em 1991, cerca de 110 milhões de anos depois, José Ricardo Gonçalves Silva, com 16 anos, descobriu o esqueleto fóssil de um jacaré que pode ter morrido exatamente como na hipótese acima.
Dois dias procurando José Ricardo, que hoje tem 35 anos e não trabalha mais nas minas de calcário da região, e fui encontrá-lo no sítio Guritiba, há mais de 20 quilômetros do antigo local de trabalho. Desempregado e pai de três crianças - Giliard, 6 anos, Marifilayane, 3 anos, e Mariana, de apenas 1 ano -, ele faz todo o serviço doméstico, responsável pela comida e por preparar os meninos para a escola. Sua esposa, Marilene, de 33 anos, passa o dia fora trabalhando como auxiliar de merendeira na escola do povoado. Para ajudar nas finanças da família, eles ainda dependem da pequena plantação de feijão e mandioca. José Ricardo conta que naquela época acompanhava o pai diariamente ao trabalho nas minas. "Eu ajudava ele no serviço." Num sábado de folga, enquanto o chefe da família foi à feira da cidade, Ricardo correu para "caçar piabinhas nas minas". "Por volta das 8 da manhã, quando juntava os 'peixes' próximos a uma rocha maior, me deu na cabeça de abrir aquela pedra. Peguei a marreta e bati forte. Tomei um susto; era um bicho comprido com mais de 1 metro", recorda. Na mesma hora, Ricardo gritou para Idelino - um trabalhador conhecido da família que estava por ali: "'Eita, parece que achei um teiú! (lagarto típico do Nordeste)'. Escutando meu susto, Idelino disse: 'Vou pegar minha espingarda para matar ele!', e eu respondi: 'Não precisa, é um bicho de pedra!'".
Com a experiência de quem vivia nas minas, José Ricardo colocou a pedra com o fóssil nas costas (pesava quase 30 quilos) e correu mais de 3 quilômetros até sua casa debaixo do forte sol. Não demorou e a notícia se espalhou pelas redondezas. "Minha casa ficou cheia de gente. Era todo mundo em cima querendo ver o bicho. Mandei um recado para Euclides", o conhecido atravessador de fósseis que ainda atua na região, e com o qual José Ricardo já mantinha uma relação de comércio vendendo-lhe as "piabinhas de pedra". Constatada a autenticidade do fóssil, um jacaré primitivo completo, uma verdadeira raridade, o preço: cerca de R$ 16 mil, em valores atuais. "Era dinheiro para comprar quatro motos novas e ele ainda me deu um revólver, que era meu sonho", afirma o ex-minerador. Ricardo conta que na mesma semana Euclides repassou a peça "para um alemão que se interessava pelos bichos", e com o lucro comprou um veículo novo. "Era um Gol. Fazia um sucesso danado", relembra. Com o dinheiro, José Ricardo pagou uma dívida que seu pai tinha no banco e ainda sobrou o suficiente para comprar oito vacas leiteiras. "Das vacas, terminei comprando um carro. Foi uma bênção aquele jacaré", comemora, como se não soubesse que sua atitude terminou contribuindo para aumentar o tráfico de fósseis no país.
O garimpo de fósseis no araripe acontece em diversas camadas geológicas, principalmente numa área que pertenceu a um grande lago com abundância de peixes. As peças desse período são atrativas e têm melhor cotação comercial no mercado de suvenires. Alguns fósseis apresentam formas tridimensionais. São exatamente essas peças que interessam ao artesão José Cavalcanti Lima, 69 anos, mais conhecido como Zé das Pedras. Certamente, ele é o mais folclórico traficante de fósseis do sertão. Nasceu em Juazeiro do Norte depois que seu pai chegou ao Ceará como devoto do padre Cícero e nunca mais deixou a região. Zé das Pedras já foi indiciado em 12 processos por contrabando de fósseis. Responde a todos em liberdade, mas como deixou de comparecer a duas audiências teve sua prisão decretada e passou quase um mês preso. "Fui parar na penitenciária, junto com bandidos de todo tipo", explica. Ainda hoje na ativa, Zé das Pedras começou a "caçar fósseis" com 18 anos de idade e não vê nada de errado na atividade. "Até a Polícia Federal sabe disso", conta ele ao me oferecer um fóssil em plena praça na cidade do Crato. Ao ser questionado se não era crime vender os fósseis, ele se saiu com uma explicação inusitada: "Ora, quando eles apreendem as peças, elas terminam jogadas num depósito velho, ralando. Eles não sabem zelar". Zé das Pedras evita circular nos municípios de Nova Olinda e Santana do Cariri - provavelmente porque ficaria muito visado. Ele prefere oferecer os fósseis em cidades como Juazeiro do Norte e Crato. Campeão de prisões, ele vive perambulando pelos hotéis ofertando o produto aos turistas. Com o tempo, terminou se especializando em forjar as peças utilizando superposição de fósseis. Mesmo sem ter noção de anatomia, ele consegue reproduzir peças interessantes.
Ao contrário de Zé das Pedras, que já chegou a ser preso várias vezes e trabalha com pequenos fósseis - a maior parte deles sem muita importância científica -, a artesã Urânia Gusmão Corradini, de São Paulo, tem uma trajetória diferente. Há mais de dez anos, ela é suspeita de vender fósseis raros ilegalmente no Brasil e no exterior sem maiores problemas com a Justiça. Corradini até chegou a ser processada por furto e receptação de fósseis - na época, parecia que a polícia tinha desarticulado um imenso esquema com ligações em diversas partes do mundo -, mas logo foi absolvida por alegar em sua defesa que não sabia que estava cometendo um crime, segundo o juiz da 7ª Vara Criminal Federal, Márcio Rached Millani. Em sua casa na capital paulista, ela mantém mais de 5 mil peças retiradas ilegalmente das jazidas brasileiras e que formam seu duty free particular. São fósseis de grandes peixes, dinossauros, pterossauros, jacarés, tartarugas e insetos - muitos ainda inéditos para a ciência. Corradini atua em duas frentes: centralizando as compras no interior do Brasil e abastecendo o contrabando internacional. Em alguns casos, a cotação é feita na região em que o fóssil foi achado. Por telefone, Urânia fornece o valor e fecha o negócio. Outra linha de atuação da traficante é vender os fósseis mais valiosos para cientistas inescrupulosos, principalmente do exterior.
Parte importante dos fósseis que corradini mantém em sua posse foi retirada ilegalmente da Chapada do Araripe e poderia estar no Museu de Paleontologia de Santana do Cariri, considerado referência científica e turística na região. O museu conta com uma rara coleção do período Cretáceo com quase 7 mil exemplares em ótimo estado de conservação. Tudo começou em 1969, quando o professor Plácido Cidade Nuvens, em visita à Inglaterra, foi ao Museu Britânico de História Natural, em Londres. "Lá, vi as peças que na minha infância, em Santana do Cariri, eu costumava procurar no riacho São Gonçalo nas proximidades da casa de minha avó. Foi uma grande surpresa", conta. Plácido estudava sociologia na Itália e naquele instante teve a idéia de criar um museu na sua cidade natal. "Voltei decidido a montar a coleção." Em 1982, eleito prefeito do município e para comemorar o 85 º aniversário da cidade, ele inaugurou o museu formado unicamente com peças da região. "Comprei alguns fósseis dos caboclos e ganhei muitos outros. O objetivo era preservar as peças na própria cidade." Com o espírito de pesquisador, Plácido começou a articular sucessivas excursões de cientistas brasileiros ao interior cearense, entre eles Diógenes de Andrade, Paulo Brito e mais recentemente Alexandre Kelnner. Para o professor, a Chapada do Araripe é um livro cheio de informações que ainda não sabemos ler. O problema, diz ele, é que o tráfico tem arrancado páginas dessa história. "Ficamos 50 anos com apenas alguns peixes, e agora com as descobertas de novas espécies e sua imensa diversidade fica claro o pouco que conhecemos sobre a evolução. Trabalhamos para que os pesquisadores brasileiros incrementem suas pesquisas e possam conter a saída ilegal dos fósseis."
Apesar do contrabando, felizmente são os cientistas brasileiros que estão à frente dos principais trabalhos com os fósseis nordestinos, sobretudo os mais raros. Alexandre Kellner, especialista em pterossauros, com trabalhos reconhecidos pela New York Paleontological Society e pelo American Museum of Natural History, deve muito do seu sucesso às relíquias do Ceará. Os estudos, sob a coordenação de Mary Oliveira, da Universidade de São Paulo (USP), que procura entender o surgimento das primeiras plantas com flores, um momento decisivo para a evolução natural, também merecem destaque. Para entender a importância da Chapada do Araripe no âmbito internacional, falei com Gero Hillmer, diretor do museu de paleontologia da Universidade de Hamburgo, na Alemanha. Considerado um dos maiores especialistas em paleontologia do mundo, Hillmer vem desde 2005 trabalhando em parceria com os pesquisadores brasileiros na implantação do geoparque no Araripe. Com a experiência de quem já escavou nos sítios paleontológicos mais importantes da Alemanha, ele me explicou que vários aspectos caracterizam essa região do Brasil, entre eles o magnífico estado de conservação dos fósseis e a evolução dos insetos, paralelamente ao surgimento das primeiras plantas com flores. "Certamente, foi a presença do pólen e do néctar, novidades na natureza naquela época, que atraiu tamanha diversidade de insetos", complementa. O pesquisador é apenas mais um entre tantos especialistas que visitam o Araripe em busca de pistas para entender como diferentes circunstâncias, entre elas a salinização que impediu que plantas e animais fossem decompostos, garantiram a conservação de variadas espécies. Só no ano passado, cientistas de 32 países estiveram na região em busca de pistas para entender o processo.
De passagem pelo Araripe junto a pesquisadores europeus, o cônsul honorário da Alemanha no Ceará, Dieter Gerding, se mostrou preocupado com a questão. "O interminável drama do contrabando de fósseis, do qual os trabalhadores das minas são apenas vítimas, e que envolve não somente o desenvolvimento da ciência, mas, sobretudo, a integridade do patrimônio brasileiro, exige que ações sejam adotadas o mais rápido possível", afirma. Até porque a história do tráfico de fósseis nessa área vem de muito longe. Entre 1817 e 1820, enquanto cruzavam o Brasil, o zoólogo Johann Baptiste von Spix e o botânico Carl Friedrich Phillipp von Martius receberam de presente, em Oeiras, então capital do Piauí, o fóssil de um peixe oriundo da Chapada do Araripe. O desenho do animal, publicado em 1823 num livro da série Reise in Brasilien, que aborda a viagem dos naturalistas europeus, é tido como o início da paleontologia nacional - e, por conseqüência, do contrabando. Um tipo de crime abastecido pela miséria e que parece não ter fim no Nordeste brasileiro.
O fotojornalista pernambucano André Pessoa foi um dos idealizadores da Fundação Cultural Raízes do Piauí e possui trabalhos assinados em publicações do Brasil e do exterior.