O invólucro não tem mais importância, mas a música nunca foi tão imprescindível
Invasivo”, “brilhante”, “descartável”, “marqueteiro”: muitos foram os adjetivos lançados contra ou a favor do maior lançamento de um disco que a indústria já viu. Por si só, Songs of Innocence já seria importante: é o novo álbum de inéditas de uma das mais populares bandas de rock, capaz de arrastar multidões a estádios ao redor do planeta sob o comando de um dos grandes vocalistas em atividade, Bono. O arrasa- quarteirão de Dublin interrompeu a espera de meia década desde No Line on the Horizon (2009) colocando um álbum nos computadores, tablets e celulares de meio bilhão de pessoas. O que poderia ser mais espetacular e grandioso do que isso?
Uma jogada de marketing de excelente qualidade, é claro, daquelas que serão usadas como exemplo nas universidades por anos. E não somente da Apple, que pagou para disponibilizar esse conteúdo a todos os assinantes do iTunes e divulgar a própria marca. Houve esperteza do U2, também. No Line on the Horizon não havia correspondido comercialmente tão bem quanto os antecessores. Depois dele, a banda passou um bom tempo enfurnada em estúdios, criando um total de 100 músicas; levou uma eternidade para se satisfazer com 11 delas. Com um lançamento como este, não precisaria encarar o peso da comparação de vendas físicas por mais alguns bons anos. Ponto para o U2.
O significado da gratuidade dessas 11 faixas, contudo, extrapola o marketing e é gigantesco principalmente do ponto de vista do consumidor. Uma coisa é o Radiohead lançar In Rainbows com a opção de o comprador pagar o que quiser (inclusive nada) e dar um soco de direita no queixo da indústria fonográfica. Eles são os reis da música alternativa, mas não tocam em rádios populares nem são capazes de lotar um Morumbi. Outra coisa é o U2, uma das bandas que mais venderam álbuns na história, entregar as novas músicas de graça. É o mesmo que dizer: “As vendas não significam mais nada”.
A indústria, enfim, parece ter se adequado ao cenário estabelecido pelo Napster, no finalzinho dos anos 1990, quando a pirataria aparentava ser capaz de quebrar, vértebra a vértebra, a coluna da indústria fonográfica. Os anos de fisioterapia fizeram bem ao mercado. A compra e a venda da música não têm o significado e o valor de outrora. O U2 confirmou: vivemos uma nova era.
Vejamos o próprio caso da banda irlandesa e como o quarteto soube se adaptar aos novos tempos. No Line on the Horizon pode ter vendido “apenas” 5 milhões de cópias, um desempenho inferior ao anterior, How to Dismantle an Atomic Bomb (de 2004, com 9 milhões de unidades vendidas), e ínfimo perto das vendas de clássicos como Achtung Baby (1991, 18 milhões) ou The Joshua Tree (1987, 25 milhões). Mas nada se compara à turnê gerada pelo álbum de 2009: a U2 360o Tour teve 110 shows, com um público médio de 66 mil pessoas por apresentação, e garantiu ao quarteto uma soma de US$ 736 milhões. É, até o momento, a maior turnê da história. O que o U2 explicitou com o lançamento de Songs of Innocence foi o que eles mesmos já haviam provado há alguns anos. Turnês, ações de marketing e promoção são mais determinantes do que as paradas de sucesso.
Para uma banda que ao longo da carreira trintona vendeu impressionantes 150 milhões de cópias, alcançar 500 milhões de pessoas de uma só vez diz muito. O U2 sacramenta o modelo adotado primeiramente pelo mercado independente, da música livre, sem fronteiras físicas. A popularidade de uma banda não pode mais ser mensurada pela quantidade de discos vendidos. A música está no ar (ou na nuvem), pairando em ondas sonoras, esperando o formato pelo qual vai chegar até nós. Está por todos os lados, a um clique no mouse ou a um toque na tela touch screen. Em alguns anos, estará aí uma geração que sequer terá o costume de acumular a música em formato físico. No futuro, vinis, CDs e fitas cassete serão destinados cada vez mais a nichos de consumidores específicos.
É o que representa a capa da Rolling Stone Brasil que está em suas mãos. U2 e Apple, juntos, marretaram o disco de ouro até deixá-lo em frangalhos – tal qual é a importância desse objeto hoje. E isso significa que a música perdeu importância? Não. Talvez ela nunca tenha sido mais importante, talvez nunca tenha alcançado tanta gente, talvez nunca tenha sido tão democrática. O meio pouco significa: é o som que importa.