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Um animal (Manso) chamado Brasil

Se o País não tem medo nem é agressivo, é simplesmente porque não precisa

edgardo Martolio Publicado em 10/10/2013, às 15h50 - Atualizado às 15h51

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O Brasil-Estado de hoje parece confirmar o complexo de vira-lata que o dramaturgo Nelson Rodrigues identificou seis décadas atrás: o País apanha, e se desculpa (ou late, mas não intimida).

O que significa evoluir, em termos de temperamento? Em um indivíduo excessivamente calmo, quer dizer ganhar coragem, presença, saber reivindicar. Por outro lado, em alguém agressivo demais, significa abaixar os decibéis, pensar antes de reagir, apaziguar-se. Assim sendo, o “novo” povo brasileiro e os “velhos” políticos de Brasília se mostram definitivamente desencontrados. Talvez a etologia, ciência que estuda o mundo animal, nos ajude a explicar este Brasil com corpo de elefante e garras de molusco.

Não se sabe quando o homem domesticou os primeiros animais – suspeita-se que tenha sido na Era Glacial, 14 mil anos antes de Cristo, de acordo com Joachim Boessneck na obra Die Domestikation und Ihre Folgen. Mas por que “obrigatoriamente” tinham de ser domesticados? E se alguns deles já tivessem nascido mansos? Autores como Raymond Coppinger e Charles Kay Smith, no artigo The Domestication of Evolution, associam ferocidade a medo e exemplificam com os lobos: “Aqueles que nasceram sem medo não precisaram desenvolver seu instinto caçador, nem ser agressivos, atacar para comer ou ferir para sobreviver: simplesmente comiam carniça que outras espécies deixavam”. Eles eram mansos por natureza, isto é, não tinham medo.

Se assim funcionar também com os países, o Brasil não seria uma nação de calças curtas como às vezes pode parecer: simplesmente é um país sem medo. A palavra medo é “uma perturbação angustiosa perante um risco ou ameaça real ou imaginária”. Quem não se sente ameaçado não vê perigos, e, em consequência, não se angustia nem alimenta paranoias. Alguém seguro de si mesmo, e conhecedor do território que percorre, avança na escuridão sem olhar para trás. Será isso o Brasil? Será que Nelson Rodrigues não teria entendido o país no qual vivia e avaliado mal o comportamento tranquilo de seus compatriotas?

A Bolívia cutuca com vara curta e o Brasil não se mexe. Ninguém cogitaria que existe medo de encarar o vizinho mais pobre e desarmado do continente. Em todo caso, isso é grandeza – “deixem as crianças do bairro brincarem no jardim da gente”. Por que então ler outra coisa, distinta, quando o Brasil tem a mesma (não) reação perante os Estados Unidos? A mansidão é estável. Esse instinto quieto está na índole: “Mais vale paz do que vitória”, diz o refrão. O problema, então, não seria a nossa dupla leitura? Queremos que o Brasil ignore a Bolívia, mas que enfrente os Estados Unidos! Quiçá acreditemos no critério cartesiano do mecanicismo, relatado na frase em destaque abaixo, colocado em dúvida por Charles Darwin com sua teoria da evolução das espécies, e derrotado hoje por inúmeros cientistas, como os da Universidade do Colorado.

Tomemos os cachorros, por exemplo: por herança, alguns são amistosos; outros são tímidos ou nervosos. Assim como eles, os povos também carregam culturas e comportamentos de acordo com suas histórias. Se o Uruguai é a Suíça sul-americana, então o Brasil é o Canadá deste lado do globo. Dmitri Belyaev, autor de Destabilizing Selection as a Factor in Domestication, realizou experiências com raposas vermelhas criadas durante um século para uso da pelagem e descobriu que apresentavam “três características distintas: 30% eram agressivas para com os humanos, 60% manifestavam medo de pessoas, ou agressividade com medo, e 10% demonstravam uma reação exploratória tranquila, sem medo nem agressão”. Não somos todos iguais. Nem os animais. Mas são esses 10% naturalmente mansos que continuam a procriar em cativeiro. Os outros se estressam – e morrem – em sua própria ferocidade, que nada mais é do que medo.

O Brasil, que parece medroso, seria um Estado sem medo? Se começarmos a pensar assim – porque o medo está presente tanto nos animais como nos humanos e, portanto, nas sociedades –, talvez entendamos o prestígio que o Itamaraty angariou mundialmente desde que a diplomacia começou a ser ensinada nas universidades. Para a biologia, o medo “constitui um mecanismo de sobrevivência e de defesa que permite responder a situações adversas rápida e eficazmente; é um esquema adaptativo”. O Brasil, por tamanho e população, não precisa desse mecanismo. Do ponto de vista da neurologia, o medo é “uma forma comum de organização do cérebro primário dos seres vivos, com ativação da amígdala alojada no lóbulo temporal”. O Brasil não tem essa amígdala? O que a ativa no caso de uma nação? A diplomacia? E, enfim, sob a perspectiva da psicologia, o medo é “um estado afetivo e emocional necessário para o organismo se adaptar ao meio”. O Brasil nasceu adaptado, porque floresceu no meio mais acolhedor do planeta, não teve de suportar nevascas, desertos, catástrofes ou guerras religiosas. Então, para que ser aquilo que a natureza não deu nem pede? Por que ser agressivo desnecessariamente?

A Argentina – parece – fez o Brasil acreditar que a importância dos países é elencada em ordem alfabética. Primeiro a Argentina, depois a Bolívia, e por aí vai. O Brasil espera sua vez, não fura fila. Sabe que se der um empurrão, passa primeiro, mas... prefere deixar que os demais acreditem que o país é mesmo como o elefante da capa desta revista. Mas e daí? Aonde chegou Argentina com tanta agressividade à flor da pele? Recuperou as Malvinas peitando a Inglaterra? Aonde chegou a Bolívia brincando de faroeste nas instalações petrolíferas verde-amarelas? Recuperou a saída para o mar que perdeu com o Chile, que tem mais mar do que território?

Os jovens reclamando nas ruas não parecem ser do mesmo país que os diplomatas neutros e pacifistas da política externa. Mas lembremos que quando a União Soviética treinava cães para operações antitanque na Segunda Guerra, os mais nervosos e agitados não serviam: iam rápido demais e perdiam o rastro. Os cachorros mansos seguiam a trilha cuidadosamente, mantendo o nariz apontado na direção do cheiro do tanque. Eram eles os que cumpriam os objetivos.

?O Brasil manso não deveria preocupar, contanto que não seja o Bobo da Corte de Shakespeare ou o criado de Otelo em Otelo, o Mouro de Veneza. Afinal, como sentenciou George Bernard Shaw, prêmio Nobel de 1925, “os animais são meus amigos... e eu não mato meus amigos”. O que o País não pode é se transformar em um elefante branco, porque talvez, e como já dizia o aqui desmentido Nelson Rodrigues, “o Brasil é um elefante geográfico, falta-lhe, porém, um rajá, isto é, um líder que o monte”.