Celebrado pela opinião pública, não levado a sério pela classe política, Eduardo Suplicy chega aos 70 anos imerso no idealismo de suas motivações solitárias
Dos 52 nomes que constam da lista de chamada daquela sala de faculdade paulistana, pouco mais do que 20 respondem presença naquele momento. Destes, três ou quatro se manifestam vez ou outra, fazendo perguntas e debatendo com o professor diante da classe. A bibliografia da aula do dia - o livro Renda de Cidadania - A Saída É pela Porta - é de autoria do mesmo homem que, sem sucesso, insiste em conquistar a atenção dos alunos. A voz serena, as longas pausas entre as frases e o gosto por sentenças intermináveis não colaboram, mas jogam contra.
De repente, o cenário muda. O professor pede que os estudantes abram o livro na página onde está a letra de "O Homem na Estrada", épico de oito minutos do Racionais MC's. Faz uma proposta ao grupo: cantar a música. Ele convida duas garotas e um rapaz para a frente da sala. "Até o IBGE passou aqui e nunca mais voltou / Numerou os barracos, fez uma pá de perguntas. Logo depois esqueceram..." O mestre termina o verso exaltado: "filhos da puta!" No verso seguinte, ele volta a chamar os holofotes para si: "Minha verdade foi outra, não dá mais tempo pra nada... PÁ! PÁ! PÁ!" Assustada, uma aluna quase cai da cadeira. A turma gargalha.
A performance conjunta é desafinada, sem ritmo, desastrosa, mas agora a sala inteira acompanha e aplaude ao fim do ato. O ânimo geral é outro. O número de alunos dispostos a debater a pauta da aula do dia - a Lei da Renda Básica de Cidadania, projeto de distribuição de renda sancionado em 2004 - aumenta exponencialmente. O professor pergunta quem são os estudantes de fora da capital. Um rapaz, de Presidente Prudente (SP), se manifesta. "Quem é o prefeito da cidade?", o professor lhe pergunta. "Você o conhece? Tem o telefone dele? Vamos ligar e sugerir que a renda de cidadania seja implementada?" Ele próprio pega o celular, digita o número e aguarda de frente para a classe. "Alô? Prefeito Tupã, tudo bem? Tudo bem, obrigado. Quem fala é o senador Eduardo Suplicy."
Suplicy - professor titular de economia da Fundação Getúlio Vargas desde 1966, às vezes também chamado pelos alunos de senador -, explica ao telefone todo o propósito de seu projeto. Finalizada a ligação, diz à turma que o tal prefeito irá "pensar a respeito". A aula acaba em seguida e todos deixam a sala. Misturando sentimentos de euforia, empolgação e surpresa, um rapaz sussurra ao outro: "Cara! Ele é muito louco!"
Eduardo Suplicy tem curativos nas palmas de ambas as mãos. O rosto também está machucado, com um hematoma perceptível em meio a arranhões na maçã esquerda. São frutos de uma queda acidental enquanto realizava uma caminhada na praça próxima à sua casa em São Paulo. Só a fragilidade física natural de quem beira os 70 anos - a serem completados no próximo 21 de junho - justifica o estrago causado pelo simples tombo. Principalmente quando se trata de alguém que realiza exercícios físicos regularmente e teve a pele endurecida por muitos golpes na juventude - culpa do boxe.
Quando adolescente, o sobrenome Suplicy - pelo qual o político e senador pelo estado de São Paulo é nacionalmente conhecido - era secundário. O nome do meio, hoje pouco alardeado, tem peso histórico. Eduardo é também um Matarazzo, uma das famílias mais tradicionais de São Paulo, ligada diretamente ao processo de industrialização no Brasil. Não é de se surpreender que, logo em seu primeiro campeonato de boxe, em 1962, Eduardo tenha escutado da torcida rival: "Acaba logo com esse filhinho de mamãe". "O boxe foi um aprendizado notável da técnica de esquivar, dançar, golpear, estar preparado para se defender diante das mais difíceis situações da vida", ele narra em Um Notável Aprendizado, uma coletânea de textos autorais.
O livro parece servir de guia de conduta para o próprio autor. Uma entrevista pessoal com Eduardo Suplicy se assemelha à leitura de sua própria biografia - independentemente da pergunta feita, será aberto um parêntese relativo a alguma história passada que será recontada com as mesmas palavras escritas - mas em ritmo agonizantemente lento. Embora lembre exatamente o número de votos que alcançou em cada eleição vitoriosa, a fluência para transpor memórias e elaborar raciocínios, dos complexos aos mais simples, mostra-se compatível à destreza de um boxeador veterano. Quando questiono como ele avalia sua situação política atual dentro do PT, segue-se uma resposta de uma hora e 20 minutos marcados no relógio. Uma luta de 30 rounds não duraria tanto.
Entre o boxe e a arena política, foram anos de experiência no mundo acadêmico - Suplicy é PhD em economia na Michigan State University - e no meio jornalístico. Graças à aceitação de seus artigos e análises econômicas, publicados nos jornais Última Hora e Folha de S. Paulo, amigos o incentivaram a entrar para a política. Em 1978, foi eleito deputado estadual por São Paulo, pelo MDB. A extinção forçada do partido, no ano seguinte, o levou a se aproximar ainda mais de Luiz Inácio Lula da Silva, a quem havia conhecido em 1976. Em fevereiro de 1980, Suplicy estava entre aqueles que assinaram a ficha de fundação do Partido dos Trabalhadores, mas não sem antes ter feito uma pesquisa entre seus eleitores para saber se deveria ou não tomar aquela decisão. Oitenta e cinco por cento responderam favoravelmente.
A busca de Suplicy por aprovação e legitimidade por meios democráticos vai além do mundo eleitoral, da relação entre político e eleitor, ou é moldada justamente por ela. Diariamente, ele é abordado por pessoas na mesma proporção com que as aborda. Um sorriso - ou um olhar mais direto em sua direção - é suficiente para que pare e estenda as mãos para um cumprimento. Trata a todos com educação de lorde, tanto pelos modos como pelo português correto. Um bate-papo pode vir a acontecer, dependendo dos compromissos que vierem a seguir. Se a conversa for duradoura, é bem provável que caia em um tema recorrente na sala em que dá aula: a renda básica de cidadania.
Eduardo Suplicy é jocosamente apelidado de "senhor renda básica" nos corredores de Brasília - menos entre seus pares e mais entre os jornalistas que cobrem política. Sua insistência pelo tema, do qual é pai, ultrapassa fronteiras geográficas, étnicas e etárias - seja no microfone do Plenário do Senado, seja em uma visita ao Iraque, seja no encontro recente que teve com o líder do U2, Bono, seja em uma palestra na classe de sua neta Laura, de 8 anos. A Renda Básica de Cidadania é, tal como o Bolsa Família, um projeto de distribuição de renda com fins sociais, mas com uma diferença: enquanto o último é destinado às camadas mais pobres, o primeiro não enxerga distinções - todo brasileiro (e estrangeiro que resida no país há pelo menos cinco anos) terá direito a receber R$ 40 mensais pelo governo, a fim de "atender às necessidades vitais de cada pessoa".
Temas ligados à área social deveriam ser vistos com cautela e ceticismo enquanto iniciativas políticas. Suplicy, contudo, consegue legitimar suas preocupações na própria esfera pessoal, em iniciativas de pouco apelo midiático que importam menos ao grande público e mais aos envolvidos diretos. Em um período de um mês, ele depôs em São Paulo a favor da absolvição do ativista Luiz Gonzaga da Silva, o Gegê, acusado de envolvimento em um assassinato em 2002; apontou os caminhos para o rapper Emicida obter o visto para os Estados Unidos e se apresentar no festival Coachella ("o Mano Brown, do Racionais, que é meu amigo, pediu para que eu o ajudasse", diz); e participou - como competidor - do Desafio da Paz, corrida realizada no Complexo do Alemão (Rio de Janeiro).
Contudo, é o lado showman - ou pitoresco, dependendo da percepção - que faz de Eduardo Suplicy uma figura folclórica, de carisma nacional. Em 2007, sua performance de "O Homem na Estrada" em uma sessão da Comissão de Constituição de Justiça virou hit na internet. Em agosto de 2009, mostrou um cartão vermelho ao presidente da casa, José Sarney, e também para o então senador Heráclito Fortes, em plena tribuna do Senado. Poucos meses depois, participou de uma brincadeira do programa Pânico na TV, em que vestiu uma sunga vermelha por cima das calças.
"Certo dia, a...", Suplicy conta, hesitando por dez segundos. "Sabrina Sato?", eu sugiro. Ele continua: "Ali próximo do Senado, formou-se um grupo de umas 15, 20 pessoas, assistindo à entrevista...", ele solta um sorriso quase infantil, relembrando quando a humorista o presenteou com uma sunga, representando o calção do Super-Homem. "O senhor é o meu herói, e quero lhe dar um presente", Sabrina disse na ocasião. "Perguntei às pessoas: 'Vocês acham que vai significar uma quebra de decoro se eu vestir o presente?", Suplicy relembra. "Cometi a imprudência de vestir."
A repercussão do caso foi tamanha que fora cogitada a abertura de um inquérito para averiguar quebra de decoro parlamentar por parte do senador - o que não veio a se materializar. Porém, tornou-se explícita a discrepância entre público/eleitorado e a esfera política. Há, na verdade, uma dicotomia entre a ideologia pessoal e a política de Suplicy, o que o transforma em um ser singular entre seus pares. O idealismo faz dele uma pessoa pública anacrônica: ele simplesmente não consegue evitar ser fiel demais a valores muito caros ao jogo político. Ele também personifica um paradoxo do poder: querido entre eleitores, mas, ao mesmo tempo, visto como pária - apesar de respeitado - dentro do próprio PT e nas estruturas governistas. O caso da sunga vermelha mostra que, às vezes, super-heróis públicos podem ser seres políticos solitários.
Esse povo do PT é uma merda."
A funcionária do estafe de Eduardo Suplicy aproveita para reclamar, em voz baixa, enquanto o senador se encontra distraído ao telefone. "Quando ele liga para o [governador de São Paulo Geraldo] Alckmin, ele retorna logo em seguida. No PT, eles enrolam demais. E ele ainda agradece!"
No misto de casa e escritório na capital paulista, a equipe de Suplicy tem certa liberdade para tratá-lo sem o decoro natural do cargo que ocupa - frutos de anos de convivência. As secretárias estão lá há mais de 15 anos. A relação com os funcionários próximos exibe traços familiares. "Ele não almoçou ainda? Não acredito... Já tomou os remédios, Suplicy?", cobra Damião, motorista dele há 26 anos. A resposta vem passiva, tal como os comentários que vêm em seguida: "Olha a moça, Damião, ela está atravessando a rua. Olha o carro".
Apesar do vigor físico à beira dos 70 anos e da rotina de exercícios, Eduardo Suplicy não é mais um atleta. A saúde, inclusive, já se torna um ponto restritivo. O senador cancelou uma viagem à região de Altamira (PA), por onde passa a polêmica construção da represa de Belo Monte, e também suspendeu uma sessão de fotos para a reportagem da Rolling Stone com a mesma justificativa: "O médico pediu repouso absoluto".
Das confortáveis poltronas em sua sala de estar, o ambiente é peculiar. De um lado, está o escritório, cuja parede é forrada por estantes recheadas - livros de economia e biografias são o destaque, tanto quanto cinco romances escritos por José Sarney. De outro, uma televisão de LCD, um Nintendo Wii ("meus filhos e netos usam quando vêm para cá") e CDs, ao lado de um piano descontextualizado no espaço - há quatro anos Suplicy tem aulas do instrumento. O local é aconchegante, mas, pelo fato de ser também a área de trabalho do senador em São Paulo, o lado "escritório" fica mais exposto do que o de "lar, doce lar".
"Se eu estiver bem de saúde - como espero estar", ele reflete, "e, naturalmente, sabendo que terei acumulado uma experiência, conhecimento bastante significativo, acredito que eu possa colaborar ainda para os objetivos que tenho para o Brasil, seja como senador, seja para outra função pública relevante." Os filhos de Suplicy - André, João e Eduardo, o Supla - optaram por manter distância da militância política - o primeiro é advogado e os outros dois músicos, que tocam juntos sob o nome Brothers of Brazil. "Tenho o maior respeito por cada um e suas respectivas profissões", diz o pai, parecendo orgulhoso pelas trajetórias dos filhos. "O importante é que estejam felizes."
A carreira política do sobrenome Suplicy, porém, não pertence apenas a Eduardo, e segue caminho com Marta Suplicy. Entre os dois, a palavra "companheiros" denota uma série de significados: o matrimonial - em desuso desde 2001, após o fim do casamento de 36 anos (ele atualmente namora a jornalista Mônica Dallari, com quem está desde 2003) -, o partidário - ambos são do PT, sigla em que todos se tratam dessa forma - e também no âmbito dos cargos - os dois são senadores eleitos por São Paulo. A ironia é que Marta, hoje, é uma Suplicy mais forte politicamente do que o próprio homem que lhe deu o sobrenome - ela, ao lado do Ministro da Ciência e Tecnologia, Aloizio Mercadante, são os nomes mais cotados para representar o PT nas eleições para a prefeitura de São Paulo, em 2012.
O comentário que corre dentro das altas estruturas do poder petista é o de que "gosta mais do Suplicy quem não é do PT". Os sucessos (foi eleito deputado federal em 1983, vereador em 1988, e senador em 1991, tendo sido reeleito desde então) e também os fracassos (concorreu a prefeito de São Paulo em 1985 e 1992 e ao governo do Estado em 1986) são irrelevantes para seu futuro político. Na verdade, o fato de ser uma figura histórica não protege ou engrandece Eduardo Suplicy, mas sim o isola.
O ano-chave é 2005. Suplicy contrariou a orientação do PT e da bancada governista no Senado e assinou o requerimento da CPI dos Correios. "Nunca, em minha vida política, uma decisão tinha alcançado tamanha repercussão positiva", ele reflete. Entre seus pares, porém, a atitude tem reflexos até hoje. Na discussão do novo valor do salário mínimo, em fevereiro de 2011, havia temor entre a bancada se Suplicy votaria com o governo - o que acabou acontecendo. No ano passado, indicado para ser vice de Mercadante na disputa pelo governo paulista, ele atendeu à solicitação do partido e cedeu a vaga a Antônio Clovis Pinto Ferraz (PDT). Para a presidência da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, Suplicy acabou preterido recentemente pelo senador Delcídio do Amaral, o líder do PT à época do escândalo do Mensalão.
Quando pergunto se ele se sente um homem solitário e desvalorizado dentro do mundo político, ele abre um sorriso. O "não" é seguido de explicações que duram minutos incontáveis. Diante de minha insistência no tema, Suplicy completa, sem se alterar: "Para que você tenha melhor a resposta dessa pergunta, precisa entrevistar também as pessoas da direção do partido".
Eduardo Matarazzo Suplicy tem a consciência de que, apesar de ser um pária político, conta com uma blindagem histórica e popular para ser salvo de críticas públicas, principalmente de seus próprios companheiros. Mas, nos bastidores, a história é outra. O que se passa não é um jogo maniqueísta de "ame ou odeie". Os sentimentos são mais frios e distantes. "O Genoíno e o Palocci têm vários inimigos fortes, na oposição, na imprensa e dentro do próprio partido", revela uma fonte envolvida com os bastidores de Brasília. "O Suplicy, não. Ele está lá, é simpático, e é simplesmente ignorado, irrelevante."
Da maneira discreta que lhe é de praxe, Eduardo Suplicy chega ao auditório da faculdade onde será realizada a abertura do II Congresso das Direções Zonais do PT, evento em que o partido tomará as primeiras decisões referentes às eleições municipais de 2012. O senador dispensa a entrada pelos fundos, que dá acesso direto ao palco, e passa em meio à plateia, entre cumprimentos e acenos. Enquanto uma dupla de músicos se apresenta, uma bancada aguarda as personalidades políticas da noite - entre elas, o presidente do partido, Rui Falcão. Seguem-se discursos de políticos da esfera municipal - o alvo preferido dos ataques é o governo do atual prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab. Chega a vez do pronunciamento de Suplicy. Quando chamado ao microfone, é aplaudido efusivamente pela plateia. Ao meu lado, um senhor, provavelmente com a mesma idade do senador (mas sem o mesmo vigor físico), comenta, maldosamente: "Quer ver só que ele vai terminar cantando?"
Quando as palavras "renda básica de cidadania" são pronunciadas por Suplicy, três membros do alto escalão do PT levam as mãos discretamente ao rosto, algo entre o constrangimento e o sentimento de déjà-vu. O projeto, contudo, aparece de forma secundária no discurso. Suplicy relembra de seu próprio histórico político, e relata ao público uma história que havia me contado horas antes: da vez que, em 1992, o PT insistiu para que ele disputasse a prefeitura de São Paulo, "porque o Paulo Maluf estava muito forte". Suplicy foi para o segundo turno da eleição, mas perdeu para Maluf. O então responsável pela campanha de marketing do petista, Chico Malfitani, fora afastado pelo partido no entre-turnos. "Quando a equipe do Paulo Maluf soube, eles estouraram champanhe", Suplicy relata, com pesar. "Nós também", um petista da plateia cochicha para o outro.
O fato que ocorre em seguida não exatamente surpreende a plateia. Suplicy convida a dupla de músicos para retornar ao palco. "Viu só? Eu sabia!", comenta enfático o senhor ao meu lado. O violão começa a ressonar uma sequência de acordes famosa. Chega o refrão, e Eduardo Suplicy, empolgado ao microfone, dá voz profética às famosas palavras de Bob Dylan: "The answer, my friend, is blowing in the wind / The answer is blowing in the wind".