Sucesso nas rádios, garoto-propaganda lucrativo e respeitado nos cinemas, Seu Jorge comemora a perspectiva vencedora de quem um dia já foi perdedor
O cara está em casa. de chinelos, bermuda e camiseta branca em alto contraste com a pele preta, bate um rango bem brasileiro: arroz, feijão, carne de panela. Quando você está dentro de casa, o glamour é desnecessário, e não importa se sua casa é um barraco no Gogó da Ema, um trailer em um set de fi lmagem em Hollywood, uma esteira de papelão na calçada ou um hotel cinco estrelas. Seu Jorge já morou nesses lugares todos. Hoje, está recém-mudado para uma mansão modesta, em um bairro classe A de São Paulo, um Mustang parado à porta. Reformou o casarão antes de mudar, "pra não ter que mexer nos próximos 20 anos". É automático lembrar a letra da primeira música de sucesso que gravou, em 1998, com o grupo Farofa Carioca: "Moro no Brasil/ não sei se moro muito bem ou muito mal/ só sei que agora faço parte do país/ a inteligência é fundamental". Sim, a inteligência é fundamental, e além disso ele é simpático demais. Enquanto traça o arroz-com-feijão na grande cozinha equipada com fogão a lenha, conta da mãe, que é baiana de ala na Unidos da Tijuca, e do pai, músico, biscateiro, pintor de parede, eletricista, prestes a completar 80 anos. Conta que está bancando o sustento e o curso de direito do irmão caçula, casado, desempregado e com quatro fi lhos. Ele é militar, e cogitava virar policial. "Eu falei: 'Polícia, não, cara, você mora em favela, com quatro fi lhos, vai ser polícia? Entra nessa, não, cara'." Outro irmão está ali do lado, e nem percebi - Charles cuida da segurança, da parte elétrica e dos computadores da casa. Um terceiro irmão morreu em uma chacina, aos 16 anos, em um episódio que precipitou a ida de Jorge às ruas.
Mas, sim, Seu Jorge, nome artístico de Jorge Mário da Silva, agora faz parte do país. E do mundo. No dia seguinte à entrevista, viajou a Los Angeles para shows no Hollywood Bowl e uma estadia em outro tipo de casa - um estúdio primeiro-mundista, onde pretende gravar um novo trabalho, além do DVD recém-lançado e de surpreoutro CD que já está gravado, mas continua inédito. E, bem, não irá só trabalhar. "Vai ter aquela história 'Melrose', dar um rolezinho, ver as promoções, liquidação para as crianças. O verão vai sair lá, aí vão ficar aqueles preços baratinhos, tem que ir na Gap Kids. É, vou fazer o sacoleiro", diverte-se.
Do CD inédito, ele mostra uns trechos, todos no já conhecido pique de samba-soul-rock à la anos 2000. "Errare Humanum Est", de Jorge Ben. "The Model", do Kraftwerk, uma versão acústica dos pais da eletrônica. "Cristina", de Tim Maia. "Samba do Veloso", de Baden Powell e Vinicius de Moraes. E uma releitura suavíssima de "Rock with You", de Michael Jackson. Essa ele reluta em publicar, porque quando gravou não sabia que Michael ia morrer, e acha que a turma não vai acreditar na coincidência, vai achar que é oportunismo. "Até explicar que minhoca não tem osso, é só pena que voa", traduz o Mané Galinha de Cidade de Deus (2002), o primeiro dos vários longas-metragens de projeção internacional em que participou como ator.
Recentemente compôs o elenco de The Escapist e Carmo, ambos ainda inéditos no Brasil.
Além de afável e inteligente, Seu Jorge é um sucesso de marketing, desde pelo menos o boom de Cidade de Deus. Se décadas atrás bananas eram o business de Carmen Miranda, hoje é Seu Jorge que parece divulgar a cara de um Brasil de inédita visibilidade planeta afora. E, se o negócio é lucro, o garoto-propaganda não recusa convites. Já fez música para marca de bebida (Sagatiba), circulou discos em loja de roupas (Mandi), fez reclame para marca de cerveja (Brahma) e hoje está no ar com uma melô black feita de encomenda para um magazine (Riachuelo). Gravou disco em duo com a popular Ana Carolina, e em 2007 não hesitou em aderir ao movimento Cansei, de rebelião das classes médias e altas contra o caos nos aeroportos.
"Continuo cansado", reage à pergunta sobre o Cansei, e se põe a se queixar da "crise ética" dos políticos. "Cadê os caras-pintadas? Cadê os artistas? É muito conformismo." Diz que não se arrependeu do Cansei, mas sabe da má repercussão do movimento: "A mídia ridicularizou, infantilizou a gente". Não significa que o palanque ao lado de Hebe Camargo tenha arranhado sua imagem - está aí de prova a bola de neve publicitária que não para de aumentar.
Bancado pelo Canal Brasil e pela gravadora EMI, o novo América Brasil - O DVD também integra de certa forma o cerco mercadológico. Logo de início, o espectador se depara com um cenário que simula um pedaço de floresta amazônica. Vestidas de verde, duas das filhas pequenas de Jorge (ele tem três) anunciam a entrada do pai. Um músico toca violino maquiado de índio com camisa do Flamengo, outros se alternam entre uniformes de lixeiros, carteiros, palhaços e afins. E eis que o líder adentra a selva vestido num elegante modelo terno-e-gravata e segurando uma mala preta na mão direita. "É o homem da mala de dinheiro que controla aqueles funcionários todos", explica o cara usando bermuda e chinelos.
O tom da letra de "Brasileiro" é crítico ("tem gari por aí que é formado engenheiro"), mas a cena toda não deixa de remeter às pasteurizações do filme Turistas. Ou ainda a uma clássica cena que circula no YouTube, uma apresentação de Jair Rodrigues na TV italiana nos anos 80: o cantor e a família sambam vestidos em trajes elegantes à frente de um cenário tropical tomado por mulatas. O "Brasil para exportação" segue verde-amarelo em 2009, mas com Seu Jorge no posto de Carmen Miranda e "trabalhadores brasileiros" ocupando a vez das antigas mulatas oba-oba.
No repertório, há pouca coisa inédita na voz do cantor. A maior parte da novidade se concentra nos 15 minutos de extras, quando ele e o grupo promovem um autêntico baile de Carnaval para a plateia. Sua voz, sempre aparentada à do sambista João Nogueira, se dá bem relendo com amor e ironia "O Teu Cabelo Não Nega", "Maria Sapatão", "Cabeleira do Zezé". Como Jorge gosta de dizer, é difícil explicar lá fora que suas raízes brasileiras se inclinam mais ao samba de Roberto Ribeiro que à bossa nova de Tom Jobim. Mas ele se esforça. Pragmático, vê o DVD como um produto mercadológico, fruto do sucesso (para ele surpreendente) de América Brasil - O Disco (2007). "As pessoas gostam mesmo é de 'Burguesinha'", constata, referindo-se ao samba-soul sobre a menina que "vai no cabeleireiro/ no esteticista/ malha o dia inteiro/ pinta de artista/ saca dinheiro, vai de motorista no seu carro esporte". O DVD pulou à frente do disco inédito, que na avaliação de Jorge é um projeto experimental, não comercial. Ali, ele é o cantor de uma "banda preta de rock", a Almaz, produzida por Mario Caldato e integrada por Antônio Pinto (autor de trilhas de cinema), Lúcio Maia e Pupilo (ambos da Nação Zumbi). "É uma música para tocar em cada país", define, mostrando que o olho para o comércio não está ausente da mistura de Baden Powell e Vinicius de Moraes com Kraftwerk, com Tim Maia e Jorge Ben com Michael Jackson. "É o Brasil se ramificando, imprimindo soberania", ele ensina.
Frequentemente, as fusões musicais que Seu Jorge patrocina têm toda a pinta de mistura de alhos com bugalhos. Mas se engana quem acredita nisso. A naturalidade com que esse Jorge liquidifica Jorge Ben e Serge Gainsbourg é a mesma que fez com que ele apanhasse um gênero mais ou menos morto (o samba rockeado nos anos 70por Bebeto, Luis Vagner, Franco e outros) e o colasse aos ouvidos dos anos 2000 -inclusive em praias cariocas, antes desconfiadas das origens paulistas do impuro samba-rock, fruto da miscelânea musical e étnica de brasileiros descendentes de africanos, japoneses, italianos e caucasianos.
Esse tipo de mistura é o que mais interessa a Seu Jorge. Uma das inéditas do DVD é "Soy América", que ele planeja regravar em parceria com uma dupla sertaneja. "Eles têm uma porção country muito forte, né? E essa música tem uma coisa countryzinha, e tal..." A letra agulha bem de fi ninho a América do Norte: "Somos todos argentinos, brasileiros, mexicanos/ venezuelanos, colombianos, peruanos, paraguaios, bolivianos e chilenos/ (...) haitianos, cubanos/ americanos". Seria uma provocação pelo fato de os americanos de cima terem tomado para eles a designação "América"? "É mais integração mesmo", ele despista. "Vamos manter uma maneira sutil de dizer pra eles que, 'gente, vocês viajaaaram, não é nada disso'." "Soy América, viva América/ soy América, Latino-América", canta o refrão. "Com uma duplinha sertaneja acho que isso vai pegar", ri Jorge, matreiro e marqueteiro.
Amigo de Mano Brown, ele também já andou pelos meios do hip-hop. Poucos se lembram, mas um "lugar" onde Seu Jorge também morou por um tempo foi uma banda chamada Planet Hemp. "Marcelo D2 me deu esse apoio, ele foi incrível. Eu estava duro, duro. No Invasão do Sagaz Homem Fumaça (2000) eu fui do Planet. Ali eu fui feliz, bicho, pela liberdade que o Marcelo proporcionava, as viagens. Eu não era famosoe não tinha responsabilidade de responder nada. Chegava lá, tocava na minha percussão, pegava meu cachê e ia pra galeeera", sublinha, com voz de risada. "A primeira vez que fui pro Japão foi com o Planet Hemp. Pros Estados Unidos também."
Aos 39 anos, Seu Jorge já correu o mundo. Faz sucesso no Chile com Ana Carolina, mas ainda não esteve lá. Na Venezuela, estranhou ver guardas de trânsito que eram militares. Tem medo de conhecer a Colômbia. À China não quer ir ("vou fazer o que lá?"), mas do Japão já virou freguês ("o Japão é nosso; cheguei a ver umas favelas, cabeça- de-porco mesmo, palafita"). Mas há um continente que ainda não visitou. África. Por quê? "Medo. É minha origem. Talvez lá eu me sentisse um oriental, não ia saber falar a língua... Eu sou negro, mas não sou de lá... Na África do Sul, a coisa ainda é estranha. Se chegar lá e tiver que baixar a cabeça para branco... Sendo negrão, não vai dar certo." E conta que recentemente passou por uma blitz no Rio, ao lado dos atores Selton Mello e Otávio Muller. "Quando o guarda me viu, mandou sair. Viu o negão, mandou sair, mandou levantar a camisa."
Diante do prato farto na cozinha, Jorge reflete mais sobre o tema espinhoso: "Dirimir todo o ranço e recalque e complexo de inferioridade é uma coisa que não acaba nunca, difícil de fazer. Precisa destruir primeiro dentro de você, e já é difícil dizer 'não tenho mais complexo de ser preto, pobre, feio', pra depois começar a olhar o mundo melhor. Eu não sou feio nada, eu não sou mau elemento, eu sou agradável. Quando você consegue isso, as outras pessoas ficam legais. Se fica o tempo todo na defesa, pra virar o digno de pena é um pulinho. Por que um ser humano deve viver assim, esmolando a pena e a piedade do outro?". Seu Jorge talvez seja algo reticente em relação ao Rio de Janeiro natal (nasceu em Belford Roxo, na Baixada Fluminense), mas o recém-lançado DVD mostra que aquele é um dos muitos lugares onde se sente à vontade. Por ideia de Mariana Jorge, sua esposa e empresária informal, bolou um dos melhores momentos do show gravado. De repente, o telão no palco focaliza os bastidores do Citibank Hall, e o astro pop se põe a conversar com a equipe de cozinheiros. "Nessas casas de espetáculos, a cozinha nunca vê show, porque artista não passa por lá. Mariana me atentou pra isso, teve a ideia de botar uma tela plana lá na cozinha para eles poderem ver o show." De telão para a telinha, o ídolo bate papo ao vivo com os trabalhadores da cozinha. Uma das cozinheiras deixa escapar que o movimento está fraco, porque público de show em pé prefere mesmo é beber. Seu Jorge aproveita e faz discurso de "se beber não dirija". Os funcionários batucam nos passos do samba-rock, ao som de "Mangueira" e "Carolina".
Refestelado no compacto estúdio de ensaio que construiu no térreo da nova moradia, o cara reflete sobre a persistência da ordenação social entre casa Casagrande & senzala, e usa para isso um dos sambas que, em 1972, revelaram Martinho da Vila para o Brasil: "Batuque na cozinha sinhá não quer. Por causa do batuque eu queimei meu pé", cantarola. Lembro que nesse caso sinhá quis, e que até não muitas décadas atrás músicos em geral eram obrigados a entrar nos locais de show pelas portas dos fundos. E Jorge faz jus a Zeca Pagodinho: "Ele ajudou muito a mudar isso aí. Reclamando da qualidade do som. Dizendo 'vocês são assim porque é samba, se fosse jazz o som estaria uma delícia', 'como é samba, toca qualquer merda aí, bate no balde'".
Entre um comercial e outro, não deixa de ser trabalho semelhante ao que Seu Jorge faz, quando populariza Mané Galinha aos quatro ventos ou quando canta David Bowie em um filme de Wes Anderson (A Vida Marinha com Steve Zissou, de 2004). No caso do ex-morador do Gogó da Ema, o Brasil é o quintal e o mundão é o lar, doce lar.
O samba-rock que vem à mente, agora, é Chega no Suingue (2001), do primeiro disco solo: "Há muito tempo estamos reclamando o rumo do país/ mas agora não dá mais". E assim proclama ele, que há tempos faz parte do país, na nova "Pessoal Particular": "Viver bem/ estar bem/ querer bem/ não é nada mau". Seu Jorge é trabalhador brasileiro, mas se sente em casa na casa-grande do mundo.