Com a privacidade escancarada e estimulada a viver sempre nos limites, Amy Winehouse também se viciou em alimentar a própria lenda ao seu redor.
Quando Amy Winehouse subiu ao palco da Arena Anhembi, em São Paulo, em 15 de janeiro deste ano, grande parte da plateia presente já sabia o que queria da cantora: o fracasso. As notícias vindas de outras cidades brasileiras nas quais ela havia se apresentado dias antes - Florianópolis, Rio de Janeiro e Recife - não colaboravam na melhoria do clima. A britânica realmente não estava em sua melhor forma. Cabisbaixa (quando não fixava o olhar perdido no infinito) e esfregando as mãos e os braços sem parar, Amy parecia tentar se esconder justamente atrás de seu instrumento de projeção profissional, o microfone. Na abertura do show vieram, de cara, versões medianas de três hits do álbum Back to Black: "Just Friends", "Back to Black" e "Tears Dry on Their Own". O público recebeu as canções com algum entusiasmo, só que a verdadeira empolgação só vinha quando a cantora cambaleava ou passava a mão no nariz, ações que ela repetiria inúmeras vezes durante a noite. Amy Winehouse - despreparada e obviamente desgastada física e psicologicamente - era como uma ovelha indefesa, atirada a três dezenas de milhares de leões implacáveis, ansiosos e sedentos por sangue.
Então, algo incrível aconteceu: a banda engatou em uma versão de "Boulevard of Broken Dreams", sucesso na voz de Tony Bennett nos anos 50, e parecia que os deuses da música haviam descido àquele palco para soprar entusiasmo dentro de Amy. A plateia paulistana reagiu à onda de energia com gritos, e a cantora sorriu. Dançando de forma sensual, mas contida, ela acariciou o microfone. As mãos até se afastaram, uma delas parando na cintura - uma pose que viria a definir a imagem icônica de Amy Winehouse. Aquela artista no palco, nos minutos seguintes, parecia ser a cantora que conquistou o mundo com seu carisma e que, praticamente sozinha, catapultou a música soul de volta para o mainstream.
O momento se prolongou com a triste balada "I'm on the Outside (Looking in)", de Little Anthony & the Imperials. Enquanto cantava sobre não querer "ficar trancada do lado de fora", Amy casualmente arrumava seu famoso penteado ("furtado" da lenda Ronnie Spector, das Ronettes), bagunçado pelo vento, quase sempre com uma segurança que faria falta a ela nos meses seguintes, até o cancelamento súbito da turnê, em Belgrado, na Sérvia. Mas em São Paulo, ao final da canção, Amy Winehouse ergueu a caneca que usava para beber um líquido não identificado como se brindasse aquele grande momento com a plateia. Uma pequena vitória contra os leões.
Só que o repertório rapidamente voltou à sequência tradicional dos últimos tempos, com "Some Unholy War", e o frescor daquelas versões - ensaiadas especialmente para a turnê que começou com aqueles shows no Brasil (e acabaria sendo a última da carreira da artista) - se dissipou ao mesmo tempo que o interesse de Amy. O que é compreensível, porque existe um segredo que os músicos não costumam compartilhar com os fãs: fazer turnê é um saco. São horas e horas de viagens, filas no aeroporto, hotéis inócuos e, o pior, tendo de cantar o mesmo repertório, noite após noite. E Amy Winehouse já cantava aquelas músicas desde 2007, pausando apenas para virar notícia em tabloides e sites sensacionalistas ("Ela colocou seios de silicone"; "Foi vista caindo de bêbada!"; "Brigou com o namorado na frente das câmeras"). Ao longo dos anos, as informações sobre um possível novo disco de Amy foram se tornando pequenas notas complementares em artigos muito maiores sobre qualquer outro tipo de baixaria.
Com o foco alterado para a vida pessoal, a cantora só podia tentar se explicar. Ela sabia que tinha uma personalidade de dependente e que não tinha como evitar seus "venenos", como ela mesma declarou certa vez à Rolling Stone. Era exatamente este o caso: enquanto Amy pulava de um vício para o outro (e aqui podemos encaixar também os relacionamentos amorosos obsessivos, combustíveis não só de Back to Black, mas também de seu antecessor, Frank, de 2003), o público e a imprensa se viciavam em acompanhar as oscilações daquela vida publicamente julgada como desregrada e, consequentemente, errada. A imagem de artista talentosa deu lugar à fama de rainha da baixaria.
Amy winehouse jamais escondeu o interesse pelo que era noticiado sobre ela. Frequentemente era fotografada comprando os tabloides e discutia os escândalos com amigos que - dentro de um círculo vicioso praticamente inquebrável - vendiam as informações para a imprensa. Não havia mais limites ou controle: completamente alterada, Amy surgia pela noite londrina sem pudor algum (em uma das vezes foi fotografada chorando, de sutiã, cambaleando pela rua). Nascia ali, diante das câmeras e dos flashes, mais um vício: o de viver e alimentar a lenda ao redor dela própria. Na cola de tudo isso, ela acumulava problemas de saúde (o pai dela, Mitch - ele mesmo nada avesso à imprensa - chegou a citar enfisema pulmonar e problemas cardíacos sofridos pela filha) e com a Justiça. No ponto mais alto de sua carreira, quando ganhou cinco prêmios Grammy, Amy Winehouse não pôde participar da cerimônia nos Estados Unidos, já que as pendengas na Justiça fizeram com que tivesse o visto de viagem negado.
Elvis Presley e Marilyn Monroe, donos de personalidades tão viciadas quanto a de Amy, possivelmente teriam o mesmo destino trágico se estivessem no auge de sua carreira atualmente. Como viveram e morreram antes da ascensão dos tabloides e da internet (e, consequentemente, do julgamento imediatista e implacável das redes sociais), ambos ficaram preservados no panteão do pop de forma quase imaculada.
Amy Winehouse, por sua vez, foi uma vítima de seu próprio tempo, criticada e estimulada na mesma proporção a viver sempre nos limites e expor sem pudores os seus defeitos. E, mesmo quando exibiu seus breves momentos de brilhantismo (como naquela hoje histórica noite em São Paulo), ela não conseguiu se agarrar à libertação - das substâncias, das pressões externas e dela mesma.