Lucas Santtana chega a grande momento em seu quinto disco
Em cada um de seus quatro discos, lançados entre 1999 e 2009, Lucas Santtana parecia construir os álbuns como resumos de todas as possibilidades de seu som. Passeios entre sensibilidade e humor, colagem multiculturalista e Brasil global, eletrônica não-óbvia e suingue terceiromundista, sonoridade futurista e timbres retrôs e tantas diversas influências e inspirações do apurado radar e ampla musicalidade de quem tocava flauta com Gilberto Gil e é sobrinho de Tom Zé.
De repente, em O Deus Que Devasta Mas Também Cura, quinto álbum do cantor, ele parece chegar naquele ponto inevitável na carreira de músicos especiais de fazer uma espécie de resumo de si mesmo, apanhado de seus principais superpoderes, de inspiração destacada. Soma aos trabalhos antigos e dá, ao mesmo tempo, nova luz sobre eles. Entre coleções de pop fora da curva, um álbum inteiro de sonoridade dub e outro criado com voz e violão virados do avesso, Santtana construía o que geralmente se chama de “disco conceitual”. Agora, O Deus... é mais “de canções”, mas é ainda mais conceitual.
“Meus discos são sempre discos de canções, só que acabo me divertindo mesmo é em encontrar as camadas de som para vesti-las”, ele comenta. “Todos os meus discos são assim, e por coincidência acabaram tendo alguma coisa que os amarraram. Gosto disso porque ainda gosto da ideia do álbum, como um livro contando uma história em vários capítulos. Os capítulos não deixam de ser independentes, mas são parte de um todo.”
Nesse novo capítulo, a mudança é sutil, mas profunda. “Meus trabalhos nasciam de uma ideia musical e se adequavam a ela”, observa o músico. “Nesse as canções vieram primeiro e foram determinantes para eu entender que havia um novo disco. Tudo partiu delas.” O segredo, talvez: mais coração. Faixas como a canção-título e a tocante balada “É Sempre Bom Se Lembrar” vão direto na fonte emocional da vida real. Ele explica: “O que amarrou esse disco foi que 80% das canções foram feitas num período de dois meses, um tempo depois da minha separação”, conta. “Tive uma necessidade enorme de descrever o que se passava na minha frente, o disco quase não tem situações ficcionais. E as que tem foram inspiradas em fatos reais.”
Sensibilidade sincera, nervo exposto, lavagem de alma, vigor renovado. Fatos reais como, também, madrugadas eufóricas viradas com Donkey Kong e Space Invader, inspirações para “Jogos Madrugais” e “O Paladino e Seu Cavalo Altar”. “Esse disco não é sobre o fim de relacionamento”, nota ele. “Ele toca nisso também, mas envolve outras questões sobre a vida após isso.”
Na maior parte das dez faixas de O Deus Que Devasta Mas Também Cura, a banda que acompanha Lucas Santtana é formada por Ricardo Dias Gomes (baixo), Marcelo Callado (bateria), Gustavo Benjão (guitarra), os três do Do Amor (e os dois primeiros também da Banda Cê, de Caetano Veloso), mais Lucas Vasconcellos (do Letuce, nos teclados). Outras participações incluem a Orkestra Rumpilezz, Kassin, Gilberto Monte (em uma homenagem orquestral-eletrobrega a Belém do Pará), além de Céu e Gui Amabis. Este, aliás, tem relação especial com a gênese do disco: a faixa-título foi originalmente composta em parceria com Amabis para seu álbum de 2010, Memórias Luso/Africanas, que trazia participação de Santtana. Os dois são também parceiros em “Contravento”, do novo álbum de Céu, Caravana Sereia Bloom, produzido por Amabis e ainda com outra nova de Santtana, “Streets Bloom”.
E a relação com músicos paulistanos foi além. Uma faixa nova, “Músico” - incrível composição safra 94 de Tom Zé em parceria com o Paralamas do Sucesso -, foi gravada com amigos de São Paulo como Curumin, Gustavo Ruiz (irmão e produtor de Tulipa), Bruno Buarque (baterista de Karina Buhr e Céu), Marcos Gerez (do Hurtmold e da banda de Marcelo Camelo) e Mauricio Fleury (do Bixiga70).
Outra canção do disco, “Se pá, ska”, foi composta em homenagem à cidade, símbolo das conexões poéticas, urbanas e musicais de todo o álbum: “just as my kids grow up / nobody notices how cities become crazy”. “Pensei muito nessa solidão de São Paulo, que é algo que está acima de todos, como uma entidade da cidade”, ele diz. “A cidade chapa todo mundo numa condição existencial solitária. E é o encontro com os amigos que salva todo mundo dessa solidão. Gosto muito do refrão em inglês que fala que assim como de repente nos damos conta que já somos adultos, as cidades também vão crescendo desordenadamente de uma maneira louca e ela vai se despedindo dos velhos e vendo os novos chegando. As cidades são esse eterno moto contínuo.”