A crescente presença de representantes de igrejas evangélicas na política impulsiona uma sociedade mais conservadora ou é apenas produto dela?
Você já leu a Bíblia?”, questiona o presidente do Partido Social Cristão, pastor Everaldo Ramos, antes de indicar um trecho. “Em Mateus, 25, há a parábola dos talentos. Certamente, você já ouviu falar dela.” Um rápido resumo da história citada pelo pastor: um senhor dá posses a três servos, de acordo com suas capacidades, para que eles as administrem enquanto faz uma viagem. Dois deles, que multiplicaram as posses do homem, são glorificados; por medo e falta de iniciativa, o servo que tinha a menor quantidade de posses para administrar não as multiplicou, e é rechaçado. A intenção de Ramos é exemplificar, por meio de um dos livros mais antigos do mundo, de onde vem a força de alguns grupos evangélicos. “A gente acredita em meritocracia. É isso que está lá em Mateus. Não temos medo de trabalho. A gente acorda cedo para não depender do Estado. Queremos produzir, empreender, correr atrás”, afirma.
Impossível dizer se madrugar para ir ao trabalho é algo inerente a todos que seguem a crença evangélica, mas ao analisar as conquistas desse grupo no campo político dá para concluir que, sim, eles estão suando a camisa atrás de votos. Nas últimas eleições municipais, em outubro de 2016, 250 candidatos eram de igrejas evangélicas, segundo levantamento realizado pela revista Veja! (agosto de 2016). O plural “igrejas”, nesse caso, faz-se necessário, pois é incorreta a ideia de uma unidade evangélica. Há uma variedade de formatos e diretrizes. Muitos grupos sequer se aventuram por disputas eleitorais. Mas há diversos outros que entram para a política, disputam e ganham. É o caso da Igreja Universal do Reino de Deus, da qual faz parte o bispo Marcelo Crivella (PRB-RJ), atual prefeito do Rio de Janeiro, uma das principais cidades do país.
Crivella não iniciou a carreira política em 2016. Já foi senador (2003-2017), ministro da Pesca e Agricultura no governo Lula (2012-2014) e candidatou-se às eleições para governo do estado duas vezes e a prefeito da capital fluminense outras duas antes de superar Marcelo Freixo (PSOL-RJ) no ano passado, no segundo turno. No entanto, a vitória foi um choque para muita gente. “Até a grande mídia fez campanha contra, mas não conseguiu evitar a eleição dele”, avalia Milton Bortoleto, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), sobre o fato de veículos de imprensa publicarem posições contrárias ao religioso. Não deu certo. Crivella foi eleito com 59,37% dos votos.
Antes mesmo de o político assumir o posto, especulações sobre o motivo da vitória dele tomaram conta do debate. Falou-se muito sobre o fato de a posição religiosa que ocupa ter ajudado a alavancar sua candidatura – Crivella foi cantor gospel e parte dos opositores atribui seu sucesso na política à fama musical. “A vitória do Crivella assustou mesmo. Mas ele não ganhou porque é evangélico”, afirma Ronaldo Romulo Almeida, antropólogo, pesquisador do CEBRAP e professor da Unicamp. O estudioso acompanhou de perto a campanha. “Estive no Rio de Janeiro e vi como o Crivella conversou com o conjunto da sociedade. Ele fez um discurso mais amplo, no qual incluía a Igreja Universal, os evangélicos, os não evangélicos e os não religiosos”, complementa.
Também se faz necessário elencar os possíveis erros do candidato derrotado. “Freixo falava para a classe média alta escolarizada. Um eleitorado muito mais elitizado de renda, escolaridade e local de moradia. E ele não conseguiu estender sua base eleitoral, como fez o Crivella”, resume Ricardo Mariano, professor da Universidade de São Paulo (USP) e autor do livro Neopentecostais: Sociologia do Novo Pentecostalismo no Brasil.
Para Rodrigo Franklin de Sousa, professor de Ciências da Religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Faculté Jean Calvin (na comuna francesa de Aix-en-Provence), a derrota de Freixo é um símbolo do problema da esquerda no Brasil: “A dificuldade de falar a voz do povo, com discurso excessivamente intelectualizado e que assume para si a voz do pobre, do negro e da periferia sem de fato ouvir o que essa população quer falar”. Diante dessa incapacidade de seu adversário, Crivella saiu na frente, mesmo sendo fortemente rejeitado por uma parcela da sociedade. Prova disso são as abstenções às eleições no Rio de Janeiro: 1,3 milhão de eleitores, ou seja, 26,85% do eleitorado, deixaram de votar. Deve-se notar, também, o percentual de 15,9% para votos nulos e 4,18% de votos em branco. “A maior parte da população carioca não votou em nenhum dos dois”, destaca Christina Vital, professora do Departamento de Sociologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e colaboradora do Instituto de Estudos da Religião (Iser).
Independentemente desse cenário, a população evangélica não para de crescer no Brasil. Segundo dados do último Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), referente a 2010 e divulgado em 2012, 22,2% dos brasileiros se declararam evangélicos. Em 1991, o percentual era de 9%, e em 1980 de 6,6% (o Censo é realizado a cada dez anos). Tal crescimento alimenta a tese de que os eleitores evangélicos votam em políticos ligados à mesma fé. Em outubro de 2016, uma pesquisa do Datafolha apontou que Marcelo Crivella tinha 92% das intenções de voto entre os evangélicos cariocas. No entanto, os números, a estratégia e a vitória do candidato do PRB desmontam – ou pelo menos enfraquecem – a teoria de que os evangélicos foram responsáveis por sua eleição, pois só com o voto desse segmento ele não chegaria ao posto de prefeito. “Esses 22% [da população brasileira que se declara evangélica] não são expressivos para ganhar tudo. Se um político ganha é porque tem outros apoios”, analisa Magali do Nascimento Cunha, professora de pós-graduação da Universidade Metodista de São Paulo e líder do Grupo de Pesquisa Mídia, Religião e Cultura (Mire) da mesma universidade. Para Ronaldo Romulo Almeida, da Unicamp, “ele apelou para outras coisas que não a religião. Apelou para a vida cotidiana das pessoas. Não colocava Deus no vocabulário, falava mais da questão econômica”. Já Christina Vital, da UFF, rememorou as palavras proferidas na posse do prefeito, em janeiro. “Ele agradeceu ao povo, antes de citar qualquer igreja”, diz. Sobre a ideia de o voto ser garantido entre os fiéis, o pastor Everaldo acredita que “no passado existia mais isso de irmão votar em irmão. Hoje, não. Os evangélicos estão vendo se a pessoa tem competência, estão vendo a capacidade do candidato.” É preciso lembrar também a dinâmica de voto de todos os eleitores brasileiros. “Votos [em determinados grupos] nunca são automáticos. Há vários fatores influenciadores que mudam de acordo com o perfil. O significado do voto não é o mesmo para um universitário escolarizado e para um trabalhador da periferia”, relata Milton Bortoleto.
E o Parlamento – o Congresso Nacional – o outro palco de debate sobre evangélicos. O número de parlamentares declarados evangélicos no Congresso é o maior da história, com cerca de 90 representantes (outro exemplo: em São Paulo, o número de vereadores ligados a alguma igreja evangélica quase dobrou após as eleições de 2016, tendo passado de 8 para 14). A questão em torno dessa representação se acirra na sociedade à medida que tais políticos tomam medidas antiprogressistas. “A família é um tema muito caro aos evangélicos e, portanto, eles serão contra tudo que fugir ao modelo que consideram o certo”, afirma o pesquisador Romulo Almeida. Não à toa, pautas como o estatuto da família, aborto e união de homossexuais geram polêmica. “Ao legislativo [Câmara dos Deputados e Senado] são eleitos aqueles que vão defender o Evangelho, a liberdade religiosa dos evangélicos, a família cristã e os valores morais cristãos”, completa o professor Ricardo Mariano. Na visão do pastor Ariovaldo Ramos, ex-presidente da AEVB (Associação Evangélica Brasileira) e um dos fundadores da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, “os parlamentares evangélicos, de modo geral, estão respondendo aos desejos de uma comunidade que tem um viés moralista muito forte e se pensam representantes dos anseios mais profundos de uma nação cristã”. O lado negativo disso, segundo Magali do Nascimento Cunha, da Metodista, é que “quando a gente fala em família, na verdade não é sobre a família. O que se pretende é o controle do corpo, sobretudo o corpo das mulheres, algo que sempre esteve em pauta no universo cristão conservador”. Os valores cristãos e conservadores não são exclusividade das igrejas evangélicas. “Essa forte ideologia está tanto na Igreja Católica quanto nas evangélicas e até em centros espíritas”, completa a docente, que acrescenta: “A bancada evangélica tem o apoio de outras bancadas, como a dos ruralistas, a dos empresários. É necessário analisar o contexto, porque se os evangélicos conseguem vitórias é porque eles têm apoio”.
Para Rodrigo Franklin, “é necessário perceber que o Brasil é conservador e os neopentecostais são parte disso”. Esse grupo da sociedade é apenas uma porção do Congresso e carece de apoio para dar prosseguimento às suas pautas. “Eles precisam de adesão e vão se associando a outros parlamentares também conservadores. É só assim que as pautas são aprovadas. Há essa troca de interesses”, explica Magali.
Representar interesses privados no Congresso sempre pega mal, mas o pastor Ariovaldo Ramos comenta que essa contradição de interesse público versus privado acomete apenas quem pensa a “democracia conceitualmente”. Um parlamentar evangélico, segundo ele, “não se vê como delegado da população geral [e sim como um representante dos evangélicos]. E também é assim com parlamentares de outros grupos”, frisa. Sobre o fato de privilegiar apenas os interesses de uma parcela da sociedade, ele acredita que todos, no fundo, estão defendendo seus próprios interesses. “A sociedade brasileira sempre foi profundamente desigual e injusta. Essa história de homem cordial [tese criada pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda no livro Raízes do Brasil] não existe.” O pastor completa: “O Brasil é um país de cultura escravagista. A questão de classe é coisa dada e assumida. Ou seja, o nosso país é visceralmente dividido – e basicamente entre senhores e escravos. Não foram os evangélicos que inventaram isso. Eles apenas entraram nesse caldo”. O professor Rodrigo Franklin de Sousa, do Mackenzie, partilha da mesma opinião. “O Brasil não é essa sociedade que a gente fantasiou, de mistura de raças, de união. O país nunca saiu do espírito Casa Grande/Senzala. É um país de sociedade dividida. Sempre foi.”
É nessa linha tênue que reside muito do preconceito contra os evangélicos no geral, independentemente de a qual igreja eles pertençam. É certo que há fundamentalistas evangélicos no Congresso, como há em todos os estratos da sociedade brasileira. Mas é necessário perceber que nem todo fundamentalista é evangélico, e vice-versa. “Vamos pegar o exemplo da Lava Jato. Quando um político é preso, ninguém diz se ele é umbandista, católico ou espírita. Mas se for evangélico todos vão dizer ‘o evangélico foi preso’”, observa o pastor Everaldo Ramos. Por outro lado, não se pode negar o fato de que na raiz dessa má fama estão, sim, ações de intolerância religiosa praticadas por membros de algumas igrejas evangélicas. “Até os anos 1990, a Igreja Universal batia muito em todo mundo. Quem não se lembra do chute na santa?”, diz Milton Bortoleto, que rememora o episódio de 1995, quando Sérgio von Helde, bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, insultou e chutou a imagem de Nossa Senhora de Aparecida em rede nacional, durante programa exibido na rede Record. “Há também toda a perseguição que fizeram e até hoje fazem às religiões de matriz africana."
Talvez seja esse mal-estar e essa incapacidade de se autocriticar que causem em parte da população brasileira uma má vontade em entender a variedade religiosa do país. “A crítica aos evangélicos é de um setor minoritário da sociedade: o dos intelectuais de esquerda”, rebate o pastor Ariovaldo. “Como agora eles estão com uma visibilidade maior, [o preconceito] acontece. Mas a presença dos evangélicos na política tem altos e baixos”, avalia Magali. E, de acordo com Christina Vital, toda a polêmica em torno desse panorama dá a impressão de que eles “têm mais poder do que têm de fato”. “Não é verdade que o Estado Laico vive sob ameaça só por causa da presença da bancada evangélica. Ele sempre esteve sob ameaça no Brasil. O Estado nunca foi Laico, mas tenta ser. Então, não dá para dizer que só eles ameaçam os direitos constitucionais, porque eles não estão sozinhos."
O fundamentalismo religioso é o problema, e não a religião em si. “O problema não é ser conservador. Não vale deslegitimar os conservadores só porque não concordamos. Que sejam conservadores, mas que sejam democratas”, resume Ronaldo Romulo Almeida, que vê com cautela o fortalecimento dos evangélicos na política. “Não sei se continuará aumentando e também não dá para dizer que o feito do Crivella se repetirá. Mas eles estão conquistando mentes e corações. A chegada ao poder é legítima. Eles são parte da sociedade. Os outros [políticos] que trabalhem para conseguir eleitores.
Não representa
Fundamentalistas polêmicos não traduzem a totalidade das igrejas evangélicas
Marco Feliciano (PSC), Jair Bolsonaro (PSC), Silas Malafaia... A lista de religiosos fundamentalistas e polêmicos tem peso. Mas o barulho que esses nomes produzem no debate político e social brasileiro é inversamente proporcional em relação à multiplicidade de discursos das igrejas evangélicas. Eles não necessariamente traduzem as ideologias de todas – ou da maioria – das igrejas. “O que o Malafaia diz independe da igreja. Ele seria o mesmo numa igreja católica, por exemplo”, diz Ronaldo Romulo Almeida, antropólogo, pesquisador do Cebrap e professor da Unicamp. O pastor Malafaia, ligado à Assembleia de Deus, não tem cargo político, mas mantém relações no meio e costuma proferir opiniões contrárias e ofensivas em relação aos direitos das mulheres e dos homossexuais. Para Milton Bortoleto, pesquisador do Cebrap, esses líderes colocam-se como porta-vozes dos evangélicos ao exaltar os valores mais extremados de determinadas doutrinas. “Isso faz com que gerem polêmicas e atraiam votos.” O deputado Jair Bolsonaro é um exemplo disso. Uma pesquisa para as eleições presidenciais de 2018, realizada pela CNT/MDA e divulgada em 15 de fevereiro, apontou Bolsonaro em segundo lugar nas intenções de voto, atrás de Luiz Inácio Lula da Silva (16,6%). De acordo com o estudo, se a disputa tivesse ocorrido em fevereiro, Bolsonaro teria 6,5% dos votos, à frente de Aécio Neves (2,2%) e Marina Silva (1,8%). Os indecisos representavam 57,1 % da população.