Rick Grimes está tendo mais um dia bem ruim. Não um daqueles em que você acorda de um coma e encontra o mundo tomado por zumbis ou em que seu filho atira em sua esposa depois que ela teve um filho que talvez seja do seu melhor amigo. Mesmo assim, é um dia bem ruim. Há sujeira espalhada pelo rosto dele, um corte sangra sobre o olho esquerdo e uma gaze branca suja está enrolada em uma das mãos. Ele tenta tomar fôlego enquanto sobe um morro ao lado da prisão que ele e o bando de sobreviventes que lidera chamam de casa. Parece que vai desmaiar.
O diretor Ernest Dickerson grita “Corta!” e alguns funcionários do serviço de bufê entregam copos com frutas para o elenco e a equipe. No entanto, suando muito sob o forte sol de agosto, Andrew Lincoln precisa de um pouco mais do que um pratinho de cerejas e toranjas para se livrar do fardo pesado de interpretar Rick Grimes, ex-vice-xerife e última grande esperança da humanidade contra o apocalipse dos zumbis no sucesso The Walking Dead.
Algumas horas antes, Lincoln estava saindo da casa onde mora, no bairro de Inman Park, em Atlanta. Naquele momento, era um ator britânico gracioso de 40 anos que, até 2010, era mais conhecido no país de origem por papéis em comédias românticas. Depois de dirigir por uma hora até o Raleigh Studios perto de Senoia, onde troca o sotaque preciso inglês pelo enrolado da Geórgia, passar outra hora na maquiagem e muito tempo no grudento calor da manhã, alternadamente ensaiando e ouvindo iPod, ele está pronto para ser Rick Grimes. Ou quase.
“Ação! Andy! Ação!”
Lincoln está de quatro agora, sobre a terra, e está cantando junto com o iPod, ignorando momentaneamente o programa que espera para ser realizado à volta dele. Um assistente o tira do transe. Lincoln entrega o aparelho e filma a cena uma vez, depois outra. É uma sequência curta, basicamente com ele andando em direção à câmera e falando uma só frase, mas o ator não fica contente com o resultado.
“Vamos de novo!” Agora, ele está gritando. “Porra! Que porra! Merda!” Os fones voltam e ele fica de quatro novamente. Uma tomada final corre bem – pelo menos o suficiente para a filmagem seguir em frente.
“Definitivamente existe uma coisa masoquista em mim”, Lincoln me diz mais tarde. “Se não sinto que é para valer, a equipe entende e fala ‘Continue’”. O masoquismo dá o tom permanente em The Walking Dead, filmado durante os verões quentes da Geórgia, frequentemente em locações externas. O elenco e a equipe enfrentam o calor, desviam-se da chuva, navegam por matas e pastos sendo atacados por carrapatos e mosquitos famintos e aguentam o cronograma punitivo necessário para fazer uma filmagem de 43 minutos cheios de ação e de efeitos especiais, em oito dias, e por 16 vezes entre maio e novembro.
O papel de Lincoln vai além do de protagonista: ele é produtor, professor de atuação, irmão mais velho e torcedor. Frequentemente, assiste a e comenta cenas nas quais não aparece. Os outros seguem as ordens dele. “Andy é quem movimenta o seriado”, diz Steven Yeun, que faz Glenn. “Pense nas condições em que estamos filmando: estão pedindo que as pessoas estejam lá 12 horas por dia durante sete meses. Você fala ‘Não vou fazer isso!’, mas há uma graciosidade que Andy traz, e ela significa isto: ‘Eu sou o primeiro do elenco, mas chego cedo, fico até tarde, assisto às cenas dos outros e levo isso muito a sério’. E esse clima se espalha para a equipe e elenco.”
O resultado é um dos melhores programas da TV e provavelmente a história de sucesso mais surpreendente da indústria do entretenimento na última década. Nascido da popular série de quadrinhos criada por Robert Kirkman, The Walking Dead passou anos indo a lugar nenhum, rejeitado por todos os grandes canais, antes de a rede AMC encomendar a primeira temporada com seis episódios exibidos em 2010. Assim, a emissora jogou um seriado sobre os últimos sobreviventes em um mundo dominado por zumbis – conhecidos apenas como “caminhantes” (walkers) – em um universo televisivo que havia mostrado pouco interesse em qualquer coisa não morta que não fosse um vampiro. Desde então, The Walking Dead acumulou uma contagem de corpos atrás das câmeras quase igual à dos episódios, resistindo à demissão nada amigável de seu primeiro diretor, Frank Darabont (de Um Sonho de Liberdade), e a saída menos animosa do substituto, Glen Mazzara. Comentários se acumulam na internet sobre a instável fidelidade da série à HQ e à visão original de Darabont, destinos de personagens foram lamentados e comemorados, e o próprio programa às vezes luta para equilibrar tramas shakespearianas, filosofia política e o prazer indescritível de ver um zumbi levar um tiro no rosto. Com tudo isso, a audiência continuou crescendo – a série agora é o drama mais assistido na história da TV a cabo norte-americana, com o desfecho da terceira temporada quebrando recordes, e a AMC anunciou um spin-off para 2015 que seguirá personagens diferentes no mesmo ambiente de fim de mundo. The Walking Dead (que no Brasil é exibido no canal Fox) acabou se parecendo com a praga zumbi fictícia que documenta: incansável, sangrento e cada vez maior.
Kirkman ainda escreve os quadrinhos – a edição número 100 foi a HQ mais vendida de 2012 – enquanto também trabalha como produtor executivo e redator do programa. Ele acredita que The Walking Dead deve parte de seu sucesso à má sorte mundial. “Contar histórias apocalípticas é algo interessante quando as pessoas têm pensamentos apocalípticos. Com os problemas econômicos globais e tudo o mais, muita gente sente que estamos indo rumo a uma época negra. Por mais que seja ruim para a sociedade”, ele diz, rindo, “estou me beneficiando muito”.
Dias antes, quando encontro Lincoln pela primeira vez em um café descolado no bairro boêmio de Little Five Points, ele está sentado nos fundos, fazendo o melhor para se misturar aos clientes. Os cabelos castanhos com mechas grisalhas estão quase escondidos sob um boné, e a barba não é feita há dias. Ele mora perto, e a maioria das pessoas que o aborda realmente o conhece como um frequentador. Para as que não o conhecem, ele parece passar da dicção britânica a um sotaque melado, temendo, talvez, que a descoberta de que Rick é inglês possa estragar a magia da série para elas.
Lincoln passou o início da infância no norte da Inglaterra, perto de Hull (“eleito o pior lugar do Reino Unido”, ele conta), com o sobrenome Clutterbuck, bem menos adequado para um ator de sucesso, mas se mudou ainda criança para Bath. A carreira de ator começou no campo de rúgbi, onde, na adolescência, um professor o viu e decidiu que ele deveria fazer parte de uma montagem escolar da peça Oliver! Começou a atuar imediatamente, alimentando-se, diz, da “adrenalina ao vivo”. Nove meses depois de se formar na Royal Academy of Dramatic Art, conseguiu o papel principal no programa This Life, uma comédia dramática que capturava o espírito da geração em meados dos anos 90 na Inglaterra. Isso o levou a outros papéis no cinema e na TV britânicos, incluindo uma série de comédia de sucesso, Teachers, a qual estrelava e onde conheceu a futura esposa, Gael Anderson, assistente de produção e filha do líder do Jethro Tull, Ian Anderson. “Eu não sabia quem era Jethro Tull”, ele diz, como se confessasse um segredo “Um dia, ela me disse: ‘Venha para a casa dos meus pais’. Foi quando percebi que ele era um astro do rock. Nós nos damos bem, é uma pessoa rara.”
A carreira de Lincoln estava correndo bem na Inglaterra e, depois de um papel no filme Simplesmente Amor, ele estava ansioso para tentar a sorte nos Estados Unidos, mas os roteiros que recebia eram desencorajadores. “Não queria fazer mais comédias românticas”, conta. “Não queria ser Hugh Grant.” Quando leu o roteiro do piloto de The Walking Dead, Lincoln parecia ser uma opção improvável, mas os produtores procuravam um rosto novo, então todo o fracasso em mudar de ramo de repente virou um ponto positivo. Rick Grimes é um personagem completo. Não é um anti-herói taciturno como Tony Soprano, Don Draper ou Walter White, mas um tipo Gary Cooper, à moda antiga, com um diferencial: é um homem bom, forçado a fazer escolhas horríveis e violentas. Para esse papel, diz a produtora executiva Gale Anne Hurd, eles precisavam de “alguém que pudesse ser desculpado por fazer coisas brutais. Você realmente tinha de acreditar que ele era um homem honrado arremessado nesta época incrivelmente brutal.”
É quase impossível olhar para Robert Kirkman e não pensar como o Cara dos Quadrinhos de Os Simpsons seria na vida real se fosse bem menos amargo. Aos 34, ele é um homem afável com barba marrom e físico portentoso, cuja única ambição real quando mais jovem era se tornar um escritor de quadrinhos de sucesso. Quando o encontro no pequeno escritório que ocupa no set de The Walking Dead, ele parece ainda surpreso com o quão longe essa meta o levou. Claro, Kirkman é roteirista e produtor do programa, mas admite que, quando se trata das minúcias da TV, ainda está “aprendendo”.
Nas primeiras temporadas, “Eu estava nas reuniões, mas não sabia o que estávamos fazendo ou por que estávamos reunidos”, ele conta. “Agora, estou muito mais atento às coisas que formam um programa de TV.” Kirkman cresceu em Richmond (Kentucky). Quando começou a levar a sério o objetivo de escrever e publicar quadrinhos, não teve coragem de contar aos pais que havia deixado o emprego na loja Kentucky Lighting & Supply. Durante um ano depois da demissão, manteve a história de que ainda estava na empresa. Não admitiu nem depois que a mãe ligou e descobriu que ele não estava mais lá. Foram pelo menos dois anos de enganação – durante os quais Kirkman estava escrevendo as próprias HQs e fazendo trabalhos para a Marvel – antes de finalmente mostrar aos pais uma caixa com as revistas de que participou. “Eles só me acharam esquisito”, diz.
Por volta dos 14, Kirkman viu pela primeira vez A Noite dos Mortos Vivos, de George A. Romero, em 1968. Embora histórias de zumbis existam há séculos, o filme estabeleceu o arquétipo moderno – os cadáveres obcecados que espalham vírus mordendo os vivos e só podem ser eliminados com um tiro na cabeça. Assisti-lo agora é presenciar o molde do que Kirkman e mais tarde Darabont fariam com The Walking Dead. “Uma história sobre vampiros ou lobisomens é uma história sobre pessoas que passam por essa transformação”, diz Kirkman. “Só que histórias de zumbis são sobre seres humanos fazendo coisas relacionáveis: proteger a família, encontrar comida, construir abrigo”. Zumbis também são uma metáfora útil – para as massas cerebralmente mortas e ansiosas por saciar apetites egoístas; para as pressões incansáveis do mundo; para qualquer coisa além do nosso controle que nos deixe morrendo de medo.
Kirkman amava filmes de zumbis, mas tinha um problema com eles: o final. Depois de cerca de 90 minutos de derramamento de sangue, alguns personagens sobrevivem e caminham rumo ao horizonte. Para ele, não parecia o final da história, mas sim o começo. “Pensei: ‘E se uma dessas histórias continuasse indefinidamente?’”, diz. Essa pergunta gerou The Walking Dead, cuja primeira edição apareceu em 2003. A HQ se tornou um sucesso underground e, logo, Kirkman conheceu pessoas interessadas em adaptá-la para o cinema. Nada parecia promissor até Frank Darabont telefonar para ele, em 2005. “Ele compreendeu os quadrinhos”, diz Kirkman. “Não era sobre nojeiras ou zumbis assustando. Era uma história realista de sobrevivência sobre seres humanos.”
Darabont – que não quis falar para esta matéria – escreveu um piloto e passou anos tentando atrair interesse dos canais. Ele já havia desistido do projeto quando recebeu a ligação da produtora Gale Anne Hurd. Juntos, levaram o seriado à rede AMC, que o aprovou em 2009. O piloto, dirigido por Darabont, é um lindo sonho febril de 67 minutos que não se parecia com qualquer coisa já exibida na TV. A estreia foi no Halloween de 2010, com uma audiência que o tornou o programa mais assistido da AMC, superando os campeões do canal, Mad Men e Breaking Bad. Dali, o fenômeno só cresceu. The Walking Dead é uma história sobre sobrevivência, mas, ao lançar uma horda insaciável com origens propositadamente não explicadas para cima dos humanos, Kirkman ofereceu um comentário implícito sobre o mundo que estava destruindo. “Há um século, morávamos em casas que construíamos, cultivávamos os alimentos que comíamos, interagíamos com as famílias. Essa vida faz sentido”, compara. “Agora, trabalhamos em empregos de que não gostamos para comprar coisas de que não precisamos. Estamos estragando tudo.”
“É divertido olhar para The Walking Dead e ver essas coisas sendo eliminadas”, ele acrescenta. “Muita gente acha que o seriado é sombrio e deprimente, mas eu consigo ver para onde ele vai nos próximos dez anos, e penso nele de uma forma otimista. Talvez ele nos tornará pessoas melhores no final.”
Duas semanas depois do primeiro encontro, Andrew Lincoln me convida para jogar golfe. Pouco antes de dar uma tacada, ele diz: “A parte mais assustadora de liderar esta coisa é que perdemos muitos membros essenciais que estabeleceram a cultura do programa. É terrível perder as pessoas”. Ele está falando sobre os colegas de elenco – Sarah Wayne Callies, Jon Bernthal, Jeffrey DeMunn e outras vítimas do universo apocalíptico da série –, mas claramente o pensamento vai também para os diretores Frank Darabont e Glen Mazzara. “Parece sombrio quando estamos filmando agora”, afirma. “O que é ótimo! O programa é sobre isso. Todos ficam unidos.” Ele para de falar e acerta a tacada.
No buraco seguinte, Lincoln arrasa uma tacada que vai parar no centro do campo. Ele joga bem – “Há algo de contemplativo em acertar uma bola”, diz –, com a mesma graça com a qual parece fazer qualquer coisa. Ele olha para o buraco, a uns 150 metros, e pega outro taco. “Vou tentar acertar de uma vez. Vejamos”. O balanço dele é perfeito. Ele se ajeita e executa a pior tacada do dia. A bola voa na grama lisa em direção a um largo buraco de areia.
“Para! Que filha da puta”, diz. Por um instante, parece que Rick Grimes virá à tona, mas Lincoln dá risada. “Olha aí! Está vendo só? É isso que dá quando você tenta acertar de uma vez.”