CRÍTICA

‘A Melhor Mãe do Mundo’ revela a força invisível de quem carrega o mundo nas costas

Novo longo da diretora Anna Muylaert (Que Horas Ela Volta?) traz uma forte personagem feminina no centro da narrativa, vivida por Shirley Cruz

Angelo Cordeiro (@angelocordeirosilva)

‘A Melhor Mãe do Mundo’ revela a força invisível de quem carrega o mundo nas costas (Divulgação/+Galeria)

Em A Melhor Mãe do Mundo, filme disponível no streaming, Anna Muylaert retorna ao universo feminino com a mesma sensibilidade e rigor narrativo que marcaram seus melhores trabalhos. Depois de apresentar ao público figuras como a empregada que desafia as hierarquias domésticas em Que Horas Ela Volta? ou a mãe que descobre uma troca de bebês em Mãe Só Há Uma, a diretora agora se debruça sobre Gal, vivida por Shirley Cruz (O Clube das Mulheres de Negócios), uma mulher preta, catadora de recicláveis e mãe de dois filhos, que foge de um relacionamento abusivo carregando sua vida (e seus filhos) na carroça, literalmente.

Mais uma vez, Muylaert constrói uma personagem que se ergue a partir da dor, mas que não se define por ela. Shirley Cruz entrega uma atuação profundamente física. Sua Gal se move com o peso simbólico de tudo o que precisa abandonar — e a atriz, que se recusou a usar dublê nas cenas mais exigentes, transforma o próprio corpo em linguagem.

A relação entre Gal e seus filhos, interpretados por Rihanna Barbosa e Benin Ayo, é o coração da narrativa. Muylaert aposta na naturalidade como método, e essa escolha ressoa na autenticidade dos gestos, das falas e dos silêncios. O filme não apenas acompanha uma fuga, ele mergulha em um processo de transformação íntima e dolorosa, mas também esperançosa.

Engana-se quem enxerga nessa jornada uma fábula edificante ou uma glorificação da maternidade; Muylaert nunca transforma Gal em mártir. Ela reconhece a violência doméstica, institucional e urbana, mas recusa estetizá-la. A “melhor mãe do mundo” do título não é idealizada por seu sacrifício, mas por sua humanidade: forte e frágil, amorosa e exausta, vulnerável e decidida.

O masculino aparece, mais uma vez na filmografia da diretora, mas como elemento desestabilizador e não como eixo da narrativa. São as decisões de Gal, e não os abusos de Leandro (Seu Jorge, Marighella), que movem a trama. Isso reafirma o lugar central da mulher no cinema da diretora.

A Melhor Mãe do Mundo sintetiza e aprofunda temas já recorrentes na filmografia de Muylaert. A maternidade é mais uma vez tensionada, não como instinto naturalizado, mas como construção atravessada por desigualdades de classe, raça e gênero.

Gal não é só mãe: é mulher, trabalhadora, companheira, vítima, protagonista de sua própria resistência. Muylaert não entrega um final feliz no molde tradicional, mas um gesto de liberdade possível: um recomeço sem garantias, mas com dignidade. O realismo social aqui não se opõe ao afeto; ao contrário, o lirismo emerge da própria aspereza da realidade.

Ao final, A Melhor Mãe do Mundo reforça o compromisso de Anna Muylaert com um cinema que dá centralidade às histórias de mulheres invisibilizadas. Sem recorrer ao melodrama ou à manipulação emocional, ela constrói uma narrativa sensível, feminina e profundamente honesta.

É um filme que se impõe pela força dos detalhes, pela escuta atenta e pela recusa em simplificar o que é, por natureza, complexo. Gal carrega o mundo nas costas, não como heroína mítica, mas como tantas mulheres que seguem caminhando, mesmo quando ninguém as vê.

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Angelo Cordeiro é repórter do núcleo de cinema da Editora Perfil, que inclui CineBuzz, Rolling Stone Brasil e Contigo. Formado em Jornalismo pela Universidade São Judas, escreve sobre filmes desde 2014. Paulistano do bairro de Interlagos e fanático por Fórmula 1. Pisciano, mas não acredita em astrologia. São-paulino, pai de pet e cinéfilo obcecado por listas e rankings.
TAGS: A Melhor Mãe do Mundo, Anna Muylaert, Seu Jorge, Shirley Cruz