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Cinema / Nacional

'Ainda Estou Aqui' resgata a importância de contar os horrores do regime militar brasileiro a uma nova geração

'Este filme pode ajudar a entender por que a democracia é vital.' diz Fernanda Torres

Por Angelo Cordeiro Publicado em 12/11/2024, às 18h16

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Imagem: Divulgação
Imagem: Divulgação
Um dia, os ditadores vão sumir no esgoto da História, mas os livros e os filmes ficarão.

A declaração é de Walter Salles (Central do Brasil), que assinou recentemente sua contribuição poderosa à lista de filmes sobre o regime militar no Brasil, o aplaudido Ainda Estou Aqui.

Centrado no efeito do poder aterrorizante, onipresente e sem rosto definido dos militares sobre a sociedade brasileira de 1964 até os finais dos anos 1980, o filme percorre a conhecida história da família Paiva, que teve o pai, o ex-deputado Rubens Paiva, desaparecido após ser levado de casa por soldados do exército brasileiro em janeiro de 1971.

“Naquela casa, as janelas estavam sempre abertas, e a porta nunca tinha chave”, afirma o diretor Walter Salles, evocando a sensação de liberdade presente e a mistura dos grupos de amigos e discussões políticas que caracterizavam os encontros que aconteciam no local.

Rubens, vivido por Selton Mello (Jean Charles, O Palhaço), nunca mais foi encontrado. No lar, ficaram Eunice Paiva, interpretada por Fernanda Torres (Terra Estrangeira), e seus cinco filhos, entre eles um ainda jovem Marcelo Rubens Paiva, que viria a se tornar o autor do livro homônimo que serviu de base para o roteiro escrito pelo próprio Walter Salles em conjunto com Murilo Hauser e Heitor Lorega.

Após o desaparecimento do marido, Eunice se vê sozinha, sem o provedor do lar, com dificuldades financeiras e um medo incessante da presença intimidadora dos agentes das forças de repressão do exército militar que ficam à espreita de sua casa.

O Estado e o silêncio da verdade

Diante da presença constante deste inimigo cercando a casa dos Paiva, resta a Eunice represar sentimentos e esconder a verdade dos filhos. “O Estado impõe a ela um silêncio, uma não resposta sobre a morte do marido. E ela faz o mesmo com os filhos, de outra maneira, ela se mantém em silêncio. Creio que para preservar a inocência dos filhos, porque era um ato tão arbitrário, tão injusto [o desaparecimento do pai]… como explicar isso para crianças de 9 a 18 anos?”, indaga Fernanda Torres.

A atriz declara que se viu desafiada a captar a dualidade de Eunice: uma mulher que, embora vinculada ao lar, possui uma força e uma resistência notáveis. Sua habilidade de manter a convicção e o sorriso em meio à tragédia foi uma característica marcante que ela teve de transmitir. Fernanda enfrentou o desafio de interpretar Eunice com um enfoque na subtração, evitando o melodrama excessivo.

“A Eunice é uma personagem complexa, uma pessoa complexa”, declarou Fernanda Torres em conversa com a Rolling Stone Brasil, destacando a importância de entender o que movia aquela mulher, especialmente em um momento tão conturbado da história do país. A profundidade emocional de Eunice, conforme revelado por Fernanda, é ancorada em uma força persuasiva que, mesmo em silêncio, dominava seus interlocutores.

Ela tinha sempre no rosto dela um sorriso e uma contundência que dobrava o seu oponente, sempre com uma enorme inteligência e um sorriso irremovível. Ela não se movia da sua convicção.

A cena em que a revista Manchete visita a família para uma entrevista, seguida de uma foto, demonstra isso.

Essa imobilidade em suas crenças e a forma com que ela lidava com a tragédia de sua família tornam Eunice uma personagem de difícil interpretação, algo que o próprio diretor Walter Salles ajudou a moldar ao longo das filmagens. “O Walter vinha e falava, está faltando sorriso, está faltando a Eunice”, relembra Fernanda, descrevendo como foi necessário ajustar sua atuação para refletir a suavidade e o controle emocional que definiam Eunice.

O horror subjetivo da realidade

Ainda Estou Aqui vem na esteira de uma produção cinematográfica consistente, que, nas últimas décadas, tem acertado ao representar a desolação que o período da Ditadura Militar imprimiu ao país. Seja em documentários como Cabra Marcado Para Morrer (1984), de Eduardo Coutinho, ou em obras baseadas em fatos reais, como Marighella (2019), de Wagner Moura, ou O Que É Isso, Companheiro? (1997) – que já contara com Mello e Torres no elenco –, são inúmeros os exemplos das histórias contadas sobre aqueles afetados pelo autoritarismo da época no país.

Como uma ironia triste, o filme começa com uma reunião quente e calorosa entre família e amigos. Alguns momentos dão pistas de que algo não está correto, mas o momento é afetuoso e amistoso, uma pulsação de vida e diálogo. A cena será ressignificada até o fim do longa, não sem antes ser sucedida por um ponto de virada claro, que ocorre quando Rubens Paiva é levado para interrogatório.

Com a tragédia da perda do patriarca, pai e marido, há uma quebra nesse mundo idílico. A casa se fecha, representando a chegada da opressão. “A partir desse momento, tudo muda: a luz se subtrai, o som se abafa, e a linguagem se torna mais subjetiva”, explica Walter Salles. A presença da música, tão vibrante no início, dá lugar ao silêncio e à angústia, exigindo uma nova abordagem na filmagem, com câmeras mais fixas e espaços escuros que refletem a tensão do período.

Walter
Walter Salles

Vale destacar a forma com que os agentes da ditadura são retratados no filme. Em vez de serem mostrados como brutais, Walter Salles opta por apresentá-los como seres complexos, tornando as cenas de violência ainda mais perturbadoras. Não que Ainda Estou Aqui explore a violência física; ela é trabalhada de forma mais psicológica e perturbadora, ganhando ares de um filme de terror angustiante. As cenas de Eunice Paiva no Departamento de Ordem Política e Social (Dops) são sufocantes e revoltantes. Os sons ao fundo lembram algo já feito em Zona de Interesse, filme vencedor do Oscar de Melhor Som no Oscar 2024: sabemos do que acontece por ali, embora nunca sejamos testemunha ocular daquele terror.

Uma ponte para a própria história

Ainda Estou Aqui não força uma resposta emocional do público; ao contrário, a contenção nas atuações e na direção cria uma cumplicidade com os personagens, permitindo que o público sinta a arbitrariedade da vida e do poder. O filme também se destaca por sua abordagem única, que contrasta com a fragmentação da narrativa típica das produções modernas. Em tempos de streaming e conteúdo rápido, Ainda Estou Aqui propõe uma experiência cinematográfica que valoriza o tempo e a profundidade, permitindo que o público se conecte verdadeiramente com os personagens e suas histórias.

Este filme pode ajudar a entender por que a democracia é vital."
(Fernanda Torres)

No entanto, Ainda Estou Aqui não se limita a contar a história de Eunice ou o desaparecimento de Rubens, refletindo também sobre uma era marcada pela luta e a busca por um Brasil mais justo. A partir disso, Walter observa que, na essência do cinema, está a capacidade de conectar pessoas, e isso ficou evidente durante as filmagens, onde todos os envolvidos se tornaram uma “grande família de cinema”.

Além das cenas planejadas, a equipe também filmou ensaios, permitindo que a energia e a espontaneidade dos atores fossem preservadas na tela. Essa abordagem trouxe uma nova dimensão ao filme, proporcionando uma sensação de frescor e autenticidade, fazendo com que as emoções dos personagens se tornassem palpáveis. Nesses momentos, quem mais brilha é Selton Mello, ator conhecido por papeis cômicos como o Chicó de O Auto da Compadecida (2000) e o Leléu de Lisbela e o Prisioneiro (2003). Em Ainda Estou Aqui, ele assume o papel de uma figura querida, o famoso “paizão”.

Selton compartilhou sua experiência de transformação para o personagem, destacando não apenas a mudança física, que envolveu a perda de 20 quilos, mas também a internalização da personalidade de Rubens Paiva. Ele reflete sobre como essa metamorfose foi essencial para dar vida à figura de Rubens, revelando que a transformação não se limitou à aparência, estendendo-se à compreensão profunda do papel

Apesar de não ter muitas referências, visuais ou sonoras, de Rubens Paiva, o ator buscou entender como capturar o espírito dele na tela. O desafio foi encontrar um equilíbrio entre as nuances espirituais e técnicas da atuação. Selton reconhece que a direção de Walter Salles foi essencial para criar um trabalho autêntico e tocante, pois o cineasta alia delicadeza e precisão. “Não foi só o meu carisma”, brinca Selton.

A recepção do filme em festivais como o de Toronto tem sido extraordinária, com diversos prêmios, entre eles o de Melhor Roteiro no Festival de Veneza, e um público constantemente emocionado. Todas as exibições na 48ª Mostra de São Paulo terminaram com aplausos. Os realizadores notam um momento raro para o cinema brasileiro, em que as histórias humanas e familiares estão alcançando um público mais amplo. Essa conexão emocional com o público, não só no Brasil, mas em grandes centros internacionais, é um sinal de que o filme ressoa com questões universais de opressão, liberdade e a busca por dignidade.

A equipe expressou sua esperança de que Ainda Estou Aqui, candidato do Brasil a uma vaga no Oscar de Melhor Filme Internacional em 2025, possa servir como uma ponte para que as novas gerações entendam as lições do passado, especialmente em um momento em que há um fenômeno crescente de jovens que desconhecem a realidade da ditadura.

“Este filme pode ajudar a entender por que a democracia é vital”, afirma Fernanda Torres, reconhecendo que as dificuldades da vida democrática não devem ser confundidas com os horrores de um regime autoritário. “Eu tenho certeza que esses jovens não gostariam de viver no país que eu vivi. E talvez esse filme ajude-os a perceber o porquê.”