CRÍTICA

Em ‘Foi Apenas um Acidente’, a vingança é um prato que ninguém quer servir

Vencedor da Palma de Ouro em Cannes e exibido na 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o novo filme de Jafar Panahi transforma o trauma em dilema moral

Angelo Cordeiro (@angelocordeirosilva)

Em 'Foi Apenas um Acidente', a vingança é um prato que ninguém quer servir (Divulgação/MUBI/Imovision)

Poucos cineastas filmam a tensão entre a liberdade e a repressão com tanta serenidade quanto o iraniano Jafar Panahi. Desde O Círculo (2000), passando por Táxi Teerã (2015), seu cinema se constrói entre paredes — físicas, políticas, morais — e encontra nelas um espaço para pensar o mundo.

Panahi filma a vida no que ela tem de mais ambíguo: os gestos banais que revelam abismos éticos, o cotidiano que se torna metáfora. Em Foi Apenas um Acidente, vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes e exibido na 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em cartaz nos cinemas brasileiros a partir desta quinta-feira, 4 de dezembro, o diretor volta aos temas que lhe são caros, transformando um episódio trivial — o atropelamento de um cachorro — em uma reflexão sobre culpa, memória, vingança e a impossibilidade de reparação.

Na história, o mecânico Vahid (Vahid Mobasseri) acredita reconhecer, no motorista envolvido no acidente, o homem que o torturou no passado. A dúvida se torna o motor da narrativa: até que ponto é possível distinguir o algoz da vítima, e o que se ganha — ou se perde — ao buscar vingança?

Em vez de respostas, Panahi oferece zonas cinzentas. Seu filme não investiga apenas um crime ou um evento isolado, mas o eco prolongado da violência e a dificuldade de seguir adiante quando o passado insiste em permanecer. Vahid vai atrás de outras pessoas que possam confirmar a identidade do torturador, mas a incerteza parece cada vez mais certa e a vingança vai perdendo sentido.

Panahi constrói essa tensão com a sobriedade de quem conhece a dor sem precisar dramatizá-la. Condenado no Irã a vinte anos sem poder filmar ou conceder entrevistas, o cineasta faz de sua experiência de aprisionamento uma lente para observar o outro. O resultado é uma ficção que parece sempre à beira do real — não por se confundir com sua biografia, mas por partilhar sua inquietação ética. Nesse sentido, Foi Apenas um Acidente troca o espetáculo pelo desconforto, o clímax pela dúvida. Cada silêncio é uma ferida aberta; cada olhar, um juízo suspenso; cada som da perna mecânica do possível torturador, uma ameaça.

E, como em toda a sua filmografia, há humor — um humor que não ameniza a situação, mas que revela sobre aquelas pessoas — e sobre nós mesmos. Panahi transforma a comédia em uma ferramenta moral, um modo de iluminar o absurdo cotidiano sem perder a ternura. Entre ironias discretas e pequenos mal-entendidos, o filme se aproxima da comédia de erros, mas de tipo reflexivo, em que rir é também uma forma de reagir ao absurdo. Ninguém aqui é inteiramente culpado ou inocente, e é nesse terreno sinuoso que o diretor encontra a força de seu cinema: a capacidade de compreender antes de condenar.

O desfecho, filmado com uma precisão cruel, condensa toda a ambiguidade do percurso e a ética do cinema de Panahi. O gesto final pode ser lido — no caso, ouvido — como ameaça ou redenção, talvez ambos, a depender do espectador. O cineasta não oferece catarse; oferece a sugestão, o pensar sobre, a inquietação.

A vingança, no fim, é um prato que ninguém quer servir — não por falta de coragem ou certeza, mas por perceber que o seu sabor será o mesmo de conviver com a culpa. O que resta é o silêncio, essa forma madura de resistência que Panahi domina como poucos. Seu cinema, feito entre proibições e recomeços, continua a ser um ato de fé na arte e esperança na humanidade, revelando, novamente, o que quase ninguém mais tem coragem de escutar: a consciência.

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Angelo Cordeiro é repórter do núcleo de cinema da Editora Perfil, que inclui CineBuzz, Rolling Stone Brasil e Contigo. Formado em Jornalismo pela Universidade São Judas, escreve sobre filmes desde 2014. Paulistano do bairro de Interlagos e fanático por Fórmula 1. Pisciano, mas não acredita em astrologia. São-paulino, pai de pet e cinéfilo obcecado por listas e rankings.
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