Daniel Rezende realiza o ‘impossível’ em adaptação de ‘O Filho de Mil Homens’, livro de Valter Hugo Mãe
A obra conta a história de um pescador solitário, Crisóstomo, que encontra em Camilo, um garoto órfão, e em Isaura a chance de preencher seus vazios
Angelo Cordeiro (@angelocordeirosilva)
Adaptar O Filho de Mil Homens, obra do autor português Valter Hugo Mãe, parecia uma tarefa impossível. O romance é fragmentado, poético e feito de múltiplas vozes que exploram solidão, dor e pertencimento em um vilarejo português. No entanto, Daniel Rezende, diretor de Bingo, o Rei das Manhãs, abraçou o desafio com sensibilidade, conseguindo transportar a essência do livro para a tela, mesmo que em uma forma condensada e reorganizada para o cinema. O resultado, exibido pela primeira vez no Brasil durante a 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, é um filme que dilui a poesia do texto sem se perder em excessos.
O longa acompanha Crisóstomo (Rodrigo Santoro, O Último Azul), um pescador solitário que sonha em ter um filho, e encontra em Camilo (Miguel Martines), um menino órfão, a chance de construir uma nova família. A história se expande para Isaura (Rebeca Jamir, As Vitrines), fugindo de sua própria dor, e Antonino (Johnny Massaro, Máscaras de Oxigênio Não Cairão Automaticamente), um jovem em busca de aceitação. Juntos, esses personagens formam uma rede afetiva que nasce da empatia e do acolhimento, construindo um núcleo de relações que não vem dos laços sanguíneos.
Daniel Rezende conduz a narrativa com um ritmo paulatino e um olhar poético, permitindo que o espectador se aproxime de cada personagem aos poucos, como se desvendasse camadas delicadas desse universo íntimo. A fotografia de Azul Serra transforma o vilarejo litorâneo em um lugar que existe entre o real e o fantástico, e a trilha sonora de Fábio Góes adiciona uma melodia suave e melancólica ao enredo, fazendo com que cada gesto e cada silêncio carregue peso emocional mesmo quando nada é dito.
O filme pulsa com ternura na maneira como retrata esses homens e mulheres solitários, que buscam amor e pertencimento em um espaço que, paradoxalmente, tende mais a isolar do que acolher. A premissa da família que se escolhe revela que é possível superar aquela na qual se nasce. No entanto, se em certos trechos a poesia sustenta a narrativa com força suficiente, em outros, seria necessário um aprofundamento maior nas relações e nos conflitos internos dos personagens para que o drama atingisse sua plenitude — o que é de se esperar de uma adaptação em uma obra tão profunda.
Em suma, O Filho de Mil Homens é um exercício de delicadeza, imaginação e sensibilidade. Daniel Rezende consegue, na medida do possível, capturar a essência do livro, celebrando a construção de famílias escolhidas, o acolhimento e a poesia contida nos pequenos gestos da vida cotidiana. O filme se mostra terno e otimista, provando que, mesmo diante de desafios narrativos e poéticos considerados intransponíveis, o cinema pode transformar-se em um espaço de poesia viva, realizando aquilo que parecia impossível: dar forma e emoção ao universo literário de Valter Hugo Mãe.
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