CRÍTICA

‘O Último Episódio’ abre o baú das lembranças e transforma o passado em cinema

Com direção de Maurilio Martins, o longa acompanha um garoto que, para conquistar a garota dos seus sonhos, diz possuir a fita do lendário último episódio de Caverna do Dragão

Angelo Cordeiro (@angelocordeirosilva)

'O Último Episódio' abre o baú das lembranças e transforma o passado em ficção (Divulgação/Embaúba Filmes)

Criada em 2009, a produtora Filmes de Plástico nasceu do impulso de transformar o íntimo em universal. Do coração de Minas Gerais, em Contagem, os diretores André Novais Oliveira (O Dia Que Te Conheci), Gabriel Martins (Marte Um) e Maurilio Martins (No Coração do Mundo) e o produtor Thiago Macêdo Correia (A Felicidade das Coisas) criaram um “fazer cinema” que parte das próprias vivências — das ruas, das casas e das lembranças que os formaram — para chegar ao mundo. Há uma verdade emocional que atravessa suas obras: filmar o que se conhece de perto, com afeto e sem idealização.

O Último Episódio é mais um capítulo dessa trajetória, em que o cotidiano vira cinema e a memória se transforma em gesto poético a ser compartilhado com o mundo. Na história de Maurilio Martins, o garoto Erik (Matheus Sampaio), de 13 anos, tem uma paixão platônica por Sheila (Lara Silva) e, para se aproximar dela, afirma ter em casa uma fita com o lendário “último episódio” do desenho Caverna do Dragão. Com a ajuda dos amigos, ele tenta encontrar uma saída para a enrascada em que se meteu, vivendo uma intensa história de amadurecimento.

O gênero coming of age encontra em O Último Episódio seu terreno mais fértil. Maurílio Martins abre o baú das lembranças e transforma o passado em ficção, retornando ao Jardim Laguna, em Contagem, e à matéria-prima da infância: o espanto, o medo e o amor inaugural. Todo mundo já foi Erik em algum momento — tentando ser aceito, inventando histórias para parecer mais interessante, descobrindo que crescer dói, mas também liberta. A mentira do garoto, seu desejo de ser visto e acolhido, espelha um Brasil que aprendeu cedo a criar mitos para suportar a falta. É um tipo de narrativa que emociona porque fala do que é comum a todos: o desejo de pertencer, o medo de errar, o encanto de ver o mundo pela primeira vez. No cinema de Martins, esse rito de passagem ganha novas camadas — amadurecer não é esquecer quem fomos, mas aprender a olhar com ternura para o que ficou.

O olhar que o diretor lança sobre 1991 é menos o da reconstituição e mais o da evocação — um tempo que pulsa em cores desbotadas, sons com chiado e gestos cotidianos. Cada objeto — o uniforme escolar, as revistas, os pôsteres colados na parede — é portador de uma memória partilhada, mas o que importa é o sentimento que esses elementos despertam. Como em outros trabalhos da Filmes de Plástico, a periferia surge não como espaço de falta, mas de plenitude afetiva. É o lugar onde se amadurece com dor, humor e invenção, onde a imaginação se confunde com a sobrevivência.

A trilha sonora de John Ulhoa e Richard Neves, músicos do Pato Fu, é o fio invisível que costura essas memórias. Feita com timbres e texturas que oscilam entre o analógico e o inventado, ela recria o som dos anos 1980 e 1990 com forte apelo nostálgico. Há faixas que soam como lembranças distorcidas — o eco de um rádio distante, o chiado de uma fita cassete que insiste em tocar —, e outras que ampliam a emoção, como a canção “Inside”, que marca um dos momentos mais íntimos do filme. O trabalho da dupla é de uma inteligência sensorial rara: a trilha não comenta o filme, ela o sonha com ele. O som é também memória.

Essa comunhão entre som e imagem revela o rigor do cinema de Martins. O diretor constrói uma narrativa em que a simplicidade é força estética: o cotidiano da periferia filmado com delicadeza, o humor que surge de dentro das relações, a dor que nunca é transformada em miséria. O Último Episódio é, antes de tudo, um filme sobre o afeto — entre amigos, entre mães e filhos, entre o cineasta e o lugar de onde veio. É a prova de que mostrar a infância na periferia como lugar de descoberta e beleza é um gesto de resistência diante de um país que tantas vezes nega dignidade às suas margens.

O que diferencia o longa dos demais coming of age é a sua brasilidade íntima. O amadurecimento de Erik não é apenas emocional; é também social e geográfico. Crescer no Jardim Laguna nos anos 1990 é aprender a sonhar dentro dos limites do possível, a inventar um mundo onde o real não dá conta. O filme resgata essa potência com olhar terno e, ao mesmo tempo, crítico — uma nostalgia que não é escapismo, mas elaboração de uma ferida. Martins entende que o passado não se revive: ele se reinventa em cada lembrança, em cada som que retorna.

No fim, O Último Episódio é menos sobre a fita lendária que ninguém viu e mais sobre o poder de criar e compartilhar histórias. Ao prometer um episódio inexistente, Erik inventa o seu próprio, e o cinema de Maurílio Martins faz o mesmo: transforma ausência em presença, ruído em melodia, saudade em gesto de partilha, sua própria história em ficção. É um filme sobre crescer, mas também sobre permanecer — fiel à doçura, ao riso fácil e à comunidade que nos molda. Um retrato da infância para quem acredita que a memória é uma das coisas mais tenras a ser compartilhadas.

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Angelo Cordeiro é repórter do núcleo de cinema da Editora Perfil, que inclui CineBuzz, Rolling Stone Brasil e Contigo. Formado em Jornalismo pela Universidade São Judas, escreve sobre filmes desde 2014. Paulistano do bairro de Interlagos e fanático por Fórmula 1. Pisciano, mas não acredita em astrologia. São-paulino, pai de pet e cinéfilo obcecado por listas e rankings.
TAGS: coming of age, crítica, Filmes de Plástico, John Ulhoa, Matheus Sampaio, Maurilio Martins, O Último Episódio, Pato Fu, Richard Neves