“A música ocupa um lugar espetacular em ‘O Último Episódio'”, afirmam músicos do Pato Fu
John Ulhoa e Richard Neves falaram à Rolling Stone Brasil sobre o processo criativo da trilha sonora do filme, entre experimentação, referências aos anos 1980 e a busca por emocionar sem perder a autenticidade
Angelo Cordeiro (@angelocordeirosilva)
O Último Episódio, novo longa de Maurilio Martins (No Coração do Mundo), revive a nostalgia das crianças dos anos 1980 e 1990. O filme acompanha um garoto de 13 anos que, para impressionar a menina que gosta, garante ter em casa a fita com o lendário episódio final de Caverna do Dragão. Com a ajuda dos amigos, ele enfrenta uma série de desafios e vive uma intensa história de amadurecimento, no espírito dos grandes coming of age que marcaram gerações.
A trilha sonora, assinada por John Ulhoa e Richard Neves, surge como um personagem à parte, entre nostalgia e experimentação. Em entrevista à Rolling Stone Brasil, a dupla contou como buscou recriar o som dos anos 1980 e início dos 1990, mesclando referências pessoais, memórias da infância e liberdade criativa do Pato Fu. Confira o papo na íntegra a seguir:
Chegando ao projeto de O Último Episódio
O músico Richard Neves contou que o convite para participar de O Último Episódio surgiu por meio de uma antiga amizade com o produtor Gabriel Martins, o Gabito [na foto abaixo], conhecido pelo trabalho de direção em Marte Um (2022). “A gente é amigo de longas datas, porque eu sou do interior de Minas, de Tiradentes, e fazia um festival de blues paralelo ao festival de cinema que rola lá em janeiro, com uma banda que eu tinha na época”, explica Richard.
Segundo ele, o produtor era presença frequente no evento. “Gabito batia cartão anualmente no festival. Ele sempre assistia aos meus shows e a gente conversava muito — ele já envolvido com cinema, e eu com a música”, lembra. Os dois voltaram a se encontrar em Belo Horizonte, e, anos depois, no mesmo bairro onde moravam. Foi quando o convite surgiu de forma natural:
“Ele falou: ‘Cara, estou produzindo um filme com o Maurílio [Martins] e pensei talvez no Pato Fu, ou em você e no John, pra fazerem a trilha’. Eu respondi: ‘Fazemos!’”, conta Richard, rindo. “Deu certo de novo essa dobradinha com o John, que já vem funcionando há alguns anos.”

John Ulhoa confirma a história e brinca: “É tudo verdade! Eu cheguei meio como o convidado do convidado pra fazer a trilha”, diz o músico. Na primeira reunião com o diretor Maurílio Martins, a dupla já começou a delinear o estilo sonoro do projeto.
“Ele explicou que queria algo com uma pegada nostálgica, fim dos anos 1980, início dos 1990. Na mesma hora acendeu uma luz pra mim e pro Richard”, conta John. “A gente pensou: vamos fazer a trilha como se tivesse sido feita naquela época, como se fossem bandas obscuras desse período.”
A intenção era que o público ficasse em dúvida sobre a origem das músicas. “Queríamos que as pessoas ouvissem e pensassem: será que isso é uma trilha original ou é uma banda dos anos 80 que eu não conheço?”, explica John. “A ideia era enganar — no bom sentido —, criar essa sonoridade tão fiel que pudesse confundir até os mais atentos.”
O resultado, segundo eles, surpreendeu até o próprio diretor. “A gente conseguiu enganar o Maurílio algumas vezes”, revela John, rindo. “Ele perguntava: ‘Vocês chamaram o cara?’ E a gente dizia: ‘Não, a gente fez!’.”
Pato Fu como escola de produção
A trajetória do Pato Fu como banda experimental e inventiva também deixou marcas profundas na forma como os músicos abordaram a trilha do filme. John respondeu que a influência foi direta. “Influenciou, sim. O Pato Fu, ao menos para mim, virou uma escola de produção”, afirmou. “Hoje em dia, aqui no meu estúdio, consigo fazer quase qualquer som que eu imagine. Claro, nem tudo dá pra simular perfeitamente — tipo uma orquestra com fagotes e arpas —, mas sonoridades de época, isso a gente faz com prazer.”
Segundo ele, tanto ele quanto Richard desenvolveram uma técnica própria ao longo dos anos, que facilitou o trabalho na trilha. “Pra gente, é gostoso fazer esse tipo de som. Quando vem um direcionamento, tipo ‘vamos fazer algo dos anos 80’, a gente já sabe o caminho. No meu caso, que sou um pouco mais velho, eu estava lá tentando fazer esse som naquela época”, conta John, rindo.
“Não é uma coisa nostálgica pra mim, como seria tentar reproduzir o som dos anos 1950. Eu vivi isso. Eu sei como os bateristas e baixistas tocavam, as manias que tinham. É quase uma redenção: penso que, se eu tivesse a técnica que tenho hoje, minhas bandas nos anos 80 teriam arrebentado!”

O músico reflete que as limitações técnicas da época acabaram se transformando em estética. “Era um som chumbrega, mas virou estilo”, diz. “A falta de experiência e os erros técnicos criaram uma identidade. E hoje esse som aciona o botão da nostalgia. Quando você ouve aquele chiadinho de fita cassete, pensa: ‘Putz, esse som!’.”
Richard concorda e complementa que o espírito experimental da banda é inevitavelmente trazido para os projetos atuais. “A influência do Pato Fu é inevitável, ainda mais fazendo trilha com o John”, diz. “Essa inventividade vem muito dele, e trabalhar com ele é beber direto da fonte. Ele me deixa muito à vontade pra experimentar minhas esquisitices.”
“Às vezes, eu tô no teclado e acho um timbre estranho, muito anos 80, e penso: ninguém nunca me deixaria usar isso. Aí o John fala: ‘Pois não!’”, conta, rindo. “Isso vem muito dessa escola do Pato Fu — da experimentação, da coragem de arriscar, de ousar com um som feio pra caramba e descobrir que ele vai ornar perfeitamente numa canção ou num instrumental.”

A trilha sonora como estética
Essa experimentação sonora é uma das marcas mais evidentes da trilha, e John explica que esse espírito apareceu de maneiras diferentes ao longo do processo. “Acho que tem duas categorias diferentes nessa trilha”, comentou. “Algumas músicas têm a ver com essa timbragem bem anos 80 ou início dos 90, que até carrega um certo humor. Esses timbres ficaram meio estigmatizados, né? Hoje em dia, as pessoas usam de forma quase irônica, como se fosse um meme musical.”
Segundo ele, a proposta foi justamente abraçar essa estética de maneira consciente, integrando-a à narrativa do filme. “Quando você faz o som inteiro com essa característica, o negócio começa a fazer sentido dentro da estética. Por exemplo, na cena da festa, quando eles estão tomando Cinzano, a gente foi sem medo de ser feliz: timbres típicos, batida house da época, bem estereotipada mesmo”, conta John. “Queríamos que soasse como uma música que o espectador já conhece, mesmo que não exista.” Mas nem todas as canções seguiram esse tom mais leve ou brincalhão.
“Tem outras faixas que são o lado mais emotivo do filme. Aí a gente tira um pouco a brincadeira, usa esses timbres com mais cuidado. Na música que a Fernanda [Takai] canta, por exemplo, fizemos um arranjo bonito, sem concessões. O que ela tem de anos 80 vem da própria composição, mas o tratamento é sério, elegante”, explica. “Já em Inside, que eu canto, a gente manteve essa timbragem, mas de um jeito classudo, bonito — é um dos momentos mais sérios do filme.”

Richard Neves complementa, destacando momentos em que a dupla buscou soluções sonoras inusitadas: “Tem o ‘regode’, como a gente chamou”, diz, rindo. “É uma cena em que tá passando um jogo de futebol no bairro, e o Maurílio queria que isso soasse como o ambiente real da comunidade dele. A gente pensou: vamos misturar samba com reggae. Só que não queríamos fazer um samba puro, então criamos um batuque de samba sobre uma base de reggae. São dois mundos muito definidos que acabam funcionando juntos.”
O resultado, segundo ele, foi um “esquisitismo controlado”, coerente com a atmosfera do filme. “É uma música que causa essa sensação de familiaridade estranha. Você ouve e pensa: ‘isso me lembra alguma coisa’, mas ao mesmo tempo remete àquele bairro, àquela época”, explica Richard.
Ele lembra ainda que a trilha dialoga diretamente com a estética visual do longa. “Tem também os momentos das animações, em que o som acompanha essa mudança de textura. Já que eles estão brincando com a imagem, a gente quis brincar também com o som”, diz. “Buscamos muito essa referência dos anos 80, com aquela coisa dos 8 bits, dos videogames da época. Foi uma forma de espelhar visual e sonoramente esse universo.”

A relação dos músicos com a música
O Último Episódio traz uma forte carga nostálgica e acompanha o olhar da infância — algo que despertou lembranças pessoais nos músicos John Ulhoa e Richard Neves. Questionados sobre a relação deles com a música nessa fase da vida, ambos voltaram às próprias origens sonoras.
John lembrou das longas viagens em família entre Minas Gerais e o litoral do Espírito Santo, embaladas pelas fitas cassete da época. “Eu ouvi muita música com meus pais, nas viagens de Paracatu pra Marataízes”, recorda. “Era o fim dos anos 1970, começo dos 1980, e todo mundo de BH ia pra lá. A gente fazia viagens longas de Fusquinha ou Fiat 147, ouvindo fitas com coletâneas das coisas que tínhamos em vinil em casa.”
Entre essas fitas, uma diversidade impressionante de sons. “Tinha de tudo: Orquestra de Ponto e Ar, Zimbo Trio, Geraldo Vandré, Tom Zé… Eu tinha um compacto do Tom Zé com Se o Caso É Chorar, que é uma música linda. Esses dias tocamos com ele e eu levei o disco pra mostrar”, conta.
John diz que sua formação musical foi muito marcada pelas influências da família. “Eu era o irmão mais novo, influenciado pelos meus pais e pelo meu irmão mais velho, que começou a comprar os discos de rock. Depois, veio uma guinada forte quando comecei a andar de skate — e o skate trouxe uma trilha sonora própria, com o pós-punk e o som alternativo dos anos 1980. Foi por causa do skate que comecei a tocar, e não o contrário. O skate veio antes.”

Richard se identifica com essa trajetória. “Também sou o filho mais novo, de três irmãos, e a música sempre veio muito de casa, especialmente do meu pai”, conta. “Minha mãe gostava muito de ouvir, mas quem realmente aplicava som, comprava vinil, era ele.” O pai de Richard tinha um gosto musical amplo, algo que influenciou diretamente a formação do músico.
“Meu pai ouvia de tudo: Fundo de Quintal, Brahms, Rita Lee, Chico Buarque, Gilberto Gil, Beatles, Led Zeppelin, Cream… e ainda O Barbeiro de Sevilha, Bezerra da Silva. Era uma mistura total”, lembra. “Acho que isso contribuiu muito pra hoje, quando a gente faz uma trilha de cinema, conseguir misturar estilos diferentes. Esse leque gigante ajuda a construir algo rico e variado.” Richard acredita que essa vivência também torna natural o diálogo deles com o universo sonoro do filme.
“Eu tava lá nos anos 80 ouvindo esse monte de coisa. Então é natural pra gente criar uma trilha que abarca esse universo amplo, esse ‘lecão’ [grande leque] de referências.”
Com o filme pronto…
Os músicos perceberam diferenças importantes em relação ao material que acompanharam durante a produção da trilha. “A principal diferença de ver o filme pronto é que ele ganha muita ambiência”, explica John. “Quando recebemos o corte, geralmente temos muito pouco som ambiente. O diálogo está seco, e você coloca a música em cima das cenas, mas falta aquele ‘bafo’ da vida real.”
Ele ressalta que acompanhar o filme inteiro proporciona uma experiência completamente nova. “Quando você faz a trilha, por uma questão prática, não assiste tudo de uma vez. Você coloca uma música, depois outra, meio triste, depois animada, e trabalha na suposição de que isso vai funcionar. Ver o filme inteiro é só na hora da mixagem final, e aí percebe-se como o coração bate junto com o filme. E deu muito certo, ele flui de um jeito muito legal.” Richard complementa, destacando a novidade da experiência:
“Tem uma coisa legal desse processo que nem eu nem o John tínhamos vivido antes: assistir o filme completo com todas as inserções sonoras. Fizemos isso no último corte de áudio e vídeo em São Paulo, em um estúdio com sala de cinema, e muda totalmente a percepção.”

Segundo ele, a experiência ofereceu uma visão mais precisa de como os sons se distribuíam na narrativa. “Você percebe: a voz está no centro, as guitarras de um lado, os teclados do outro, e eles se cruzam. E ouvir assim, com a sensação de sala de cinema, foi incrível. Nem sempre se tem essa oportunidade — geralmente você está num estúdio tradicional, com dois monitores e um sub.”
A equipe pôde ajustar detalhes de mixagem considerando essa imersão. “Ali, você já consegue posicionar cada som: ‘Beleza, aquela música vai lá atrás, põe esse som aqui também’. Mesmo sabendo que nem toda sala terá essa qualidade de áudio, a experiência ajudou a fazer escolhas mais precisas. Lá mixamos em 5.1, mas a mixagem final será em estéreo, garantindo que nada se perca”, explica Richard.
O momento para se atentar à trilha
Ao serem questionados sobre qual cena do filme recomendariam ao público para prestar atenção na música, John e Richard destacaram um momento central e intimista: “Cara, eu acho que a música ocupa um lugar espetacular em todo o filme”, afirma John. “Quando você é chamado para fazer a trilha de um filme, especialmente um que conta a história do Maurílio, você percebe o quanto a música é forte. Em algumas cenas, ela chega a influenciar o próprio corte.”

Ele citou a faixa “Inside“ como exemplo. “Essa música começa com a mãe ouvindo uma mensagem do filho, de forma muito confessional. O som começa baixinho e vai crescendo enquanto ela escuta. Na hora que corta para ele, ele fala ‘Am I invisible?’. A bateria tem uma virada exata que marca o corte, e a edição foi ajustada para que a música encaixasse perfeitamente naquele momento.” John explica que essa liberdade criativa só é possível quando há confiança com o diretor:
“Tínhamos muitas idas e vindas com som e ideias. Às vezes, uma música funcionava melhor se o corte fosse dois segundos depois, para que a virada da música coincidisse com o momento certo. Foi muito bom poder trabalhar assim.”
Richard complementa, destacando a importância narrativa da cena. “Também acho essa a melhor cena”, disse. “Além da música, há uma revelação importante no filme: um dos atores principais se apresenta para a mãe e para os amigos, revelando sua sexualidade. É um momento de amizade, de identidade, de se mostrar para os outros. A música ajuda a intensificar essa emoção.”
Para ambos, esse momento reflete a confluência entre trilha sonora e narrativa: “Acho que todos ficaram muito felizes com a composição e com o corte. É um momento que condensa amizade, descoberta e emoção, e a música se integra perfeitamente a isso”, conclui Richard.
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