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Rap, política, terapia e arte: Qual o legado do Racionais MC's?

Em entrevista à Rolling Stone Brasil, a diretora Juliana Vicente falou sobre os bastidores do documentário 'Racionais: Das Ruas de São Paulo Pro Mundo'

Pamela Malva Publicado em 17/11/2022, às 17h00

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Juliana Vicente (Foto: Divulgação) e cena do documentário (Foto: Divulgação/ Netlix)
Juliana Vicente (Foto: Divulgação) e cena do documentário (Foto: Divulgação/ Netlix)

“Essa coisa de gravar, de ser cantor, era uma coisa tão distante quanto Júpiter. Eu sabia que uma hora a gente ia ser ouvido. Isso eu já sabia. Quero que os pretos me ouçam, preciso que eles me ouçam.” Era essa a concepção que Mano Brown tinha no começo de sua carreira, antes mesmo do Racionais MC's.

Tudo começou com duas duplas, entre o final dos anos 1970 e começo dos anos 1980. Na Zona Norte de São Paulo, Edi Rock e KL Jay criavam sua própria versão das músicas que viam nos bailes. Do outro, amigos desde a infância, época em que eram cercados pelo samba tocado depois das giras em terreiros de Candomblé, Ice Blue e Mano Brown cantavam sobre sua realidade no Capão Redondo, na Zona Sul.

É exatamente essa história que conta o novo documentário Racionais: Das Ruas de São Paulo Pro Mundo, que chegou ao catálogo da Netflix na última quarta-feira, 16. Dirigido por Juliana Vicente, o filme narra os primórdios do Racionais MC’s, considerado o maior grupo de rap do Brasil.

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Curiosamente, a história de Juliana com o Racionais vem de longe, segundo ela contou em entrevista à Rolling Stone Brasil. Nome por trás da criação e produção do clipe de “Mil Faces de um Homem Leal (Marighella)”, Juliana também acompanhou o Racionais durante a turnê de 25 anos do grupo — quando, entre os intervalos de vendas de camisetas e de ajuda nos bastidores, gravou todos os shows.

Diretora, roteirista, produtora e fundadora da Preta Portê Filmes, Juliana olhou para todos os materiais que conseguiu na turnê e percebeu que, ali, em suas mãos, tinha gravações suficientes para criar um filme sobre o Racionais. Foi assim que, junto de Eliane, a empresária do grupo, a cineasta decidiu montar um DVD sobre a banda da periferia de São Paulo. Mas algumas coisas precisavam mudar antes.

A gente até montou o DVD, mas não era exatamente isso, porque a gente também não estava super preparado para fazer a captação dos shows. E, já que eu ia fazer alguma coisa sobre o Racionais, eu queria fazer algo mais político. E a gente não tinha esse material na turnê, porque foi um momento comemorativo. Então decidi entrevistar todos eles”, explicou Juliana.
Doc dos Racionais
Entrevistas do documentário (Foto: Divulgação/ Netflix)

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Foi assim que, em 2015, as entrevistas para o documentário começaram a sair do papel, não apenas com as vozes por trás do Racionais, como também com as pessoas que ajudaram a criar o grupo. "Quando a gente terminou a primeira entrevista, sabíamos que tinha alguma coisa alí”, disse a diretora.

Com as conversas — que mais pareciam sessões de terapia — em mãos, Juliana descobriu que Eliane tinha algumas fitas VHS do Racionais e decidiu utilizar o material gravado também. Para sua sorte, o conteúdo cobria cerca de 30 anos da carreira do grupo em vídeos nunca antes vistos.

Juntando as gravações, Juliana percebeu que já tinha o primeiro corte do documentário — que mudou algumas vezes até ser lançado pela Netflix. Segundo a cineasta, todavia, não foi nada fácil chegar ao resultado final da produção, uma vez que “são 4 personagens, 30 anos e um grupo que faz músicas de 9 minutos”. “A gente tinha que fazer escolhas. Como contar essa história?”, explicou a diretora.

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Tinham as questões que me atravessam pessoalmente e o que a gente precisava para contar a história. É por isso que eu falo que dá para fazer mais 100 abordagens em novos filmes sobre o Racionais que você ainda vai encontrar novidades”, afirmou ela.

Com os muitos vídeos inéditos e as entrevistas lotadas de memórias, então, a produção — que, para Juliana, é essencial porque “o Racionais é uma coisa que as pessoas deveriam conhecer, ouvir e ler” — chegou até mesmo na tradicional 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

“Eu fico muito feliz que a gente tenha passado na Mostra, porque a gente tá chegando lá com o cinema preto. Não é uma coisa que sempre aconteceu”, afirmou Juliana. “Pra mim, é muito importante ocupar um espaço desses. Assim como na própria Netflix. Não sei quantas diretoras pretas eles têm no catálogo deles, mas acho que não muitas.”

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E, junto do cinema preto, o documentário também levou para a Mostra de Cinema a música preta e periférica de São Paulo, que é extremamente marcada pela força da cidade onde o Racionais foi criado. É por isso, inclusive, que o filme fala bastante do impacto de locais como o Largo São Bento na história e na própria criação do Racionais, que, segundo Juliana, “fica muito marcado na visão dos artistas”.

Quando comecei esse documentário, eles não falavam. Não tinha material para eu estudar eles, não tinha nada anterior. Então era uma oportunidade pra você ver eles falando. E quando você faz um documentário de pessoas que estão vivas, é uma p*ta oportunidade de ouvir a pessoa contando a própria história."

Para a diretora, que teve a oportunidade de acompanhar essa história de perto, o novo documentário também “tem a proposta de ser um documento mesmo”. “Se você é um extraterrestre e não conhece o Racionais, mesmo estando no Brasil, acho que você sai sabendo quem eles são”, brincou ela.

Doc dos Racionais
Cena do documentário (Foto: Divulgação/ Netflix)

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E, embora “Racionais” e “legado” sejam quase sinônimos, Juliana diz estar bastante animada para ver como o documentário será recebido pelas novas gerações. “Quero muito ver como esse filme vai bater na molecada. É muito importante pra mim saber como os moleques mais novos vão ver essa história.”

Quando filmei a turnê de 25 anos, tive a oportunidade de ouvir todos esses caras da cena do rap falando o quanto o Racionais foi importante para eles. 100% das pessoas pretas e boa parte das pessoas periféricas que eu conheço falam da importância e do legado do Racionais pra elas. Eu ouvi de muitos meninos: ‘O Racionais foi o pai que eu não tive’”, lembrou a cineasta.

É por isso, inclusive, que Juliana acredita que o documentário veio em tempo certo. “É um momento importante pra gente refletir sobre o que a gente tá falando no filme. Espero que as pessoas fiquem tocadas e inspiradas para a gente começar esse próximo ano com mais força, mais união”, afirmou ela.

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Tal inspiração, segundo a diretora, também pode vir diretamente dos processos pelos quais os próprios membros do Racionais passaram. “Eles mudaram bastante, porque não são, de forma nenhuma, pessoas rígidas, então evoluíram com o tempo. Mas, ao mesmo tempo, eles têm um grau de coerência alto, muito alto. Então existe uma essência Racionais que está sempre ali”, explicou a cineasta.

"Eu ainda nem sei mensurar o que é, porque eu estou há 10 anos trabalhando com Racionais. E você tá falando de uns caras que ainda estão aí, criando uma série de coisas, se reinventando. Eles só estão melhorando com o tempo. Acho que a gente ainda vai falar muito sobre o legado do Racionais.”