“Uma Relação Complicada”

Assim, o escritor e parceiro de Raul Seixas em alguns de seus maiores sucessos, define a amizade que os unia

Paulo Coelho

Raul Seixas estampa uma das capas da edição de agosto da Rolling Stone Brasil
Raul Seixas estampa uma das capas da edição de agosto da <i>Rolling Stone Brasil</i>

Em 1989, eu estava fazendo o caminho de Roma quando soube da morte de Raul Seixas, em uma cabine telefônica, quando liguei para o Brasil (como fazia uma vez por semana) para ver se minha mulher estava bem. Tinha três moedas de cinco francos no bolso, um minuto e meio de conversa. Eu disse: “Oi, Cris, tudo bem?” E ela: “Não sei se eu te conto”. Caiu a primeira moeda, depois a segunda e daí ela disse: “O Raul morreu”. Caiu a terceira moeda.

Ao contrário do que manda o figurino, eu senti uma profunda alegria. Parecia que, naquele momento, Raul estava livre, bem, contente. Lembro que passei o resto desse dia cantando nossas músicas. Eu tinha publicado O Alquimista, mas não era o escritor que sou hoje – mesmo no Brasil. E continuei com aquela sensação de que Raul, de alguma maneira, tinha cumprido a missão a qual ele havia se proposto. Raul tinha vivido a lenda da vida dele, feito tudo o que achava que tinha de fazer. E não deixou absolutamente nada: foi uma escolha dele.

Nunca o vejo como uma vítima do sistema ou um cara que entrou num processo de autodestruição – nada disso. Foi uma escolha consciente, muitas vezes conversamos a respeito. Eu sempre demonstrei certo receio, contudo ele dizia que eu não me preocupasse: ele estava fazendo exatamente o que queria. No dia de sua morte entendi perfeitamente.

A nossa relação sempre foi muito complicada desde o começo. Quando começamos a trabalhar juntos, nos víamos todo dia. Ou ele vinha para minha casa ou eu ia para a casa dele. Era uma relação muito intensa, e uma competição acirrada. Raul sempre achava que eu queria mostrar que era melhor que ele, e vice-versa. Eu era o intelectual que sonhava morrer incompreendido, e Raul tinha esse poder de comunicação muito grande – muito grande. Pouco a pouco, nós começamos a desenvolver toda a ideologia da Sociedade Alternativa, unindo o ideário hippie. No disco Krig-Há, Bandolo!, a música-chave é “Ouro de Tolo”, que é dele, e tem “Rockixe”, quase uma declaração de princípios. Pouco a pouco começamos a nos entender. Apresentei as drogas a Raul, as sociedades secretas e essas coisas todas. Será que fiz bem? Raul entrou de cabeça nisso tudo. Em dado momento, eu disse: “Chega, parei”. Mas Raul continuou, uma escolha absolutamente consciente, e ninguém pode julgá-lo por isso.

A única coisa que me desagrada hoje é uma certa manipulação da lembrança dele. E o que me surpreende muito é a atualidade das coisas que fi zemos e, também, a atualidade da presença do Raulzito. Raul Seixas é mais atual que nunca. Vemos, nesse caso, a tragédia como força que consolida a carreira de alguém. Ele não precisaria ter morrido da maneira que morreu, mas repito que foi sua escolha. A tragédia consagra – infelizmente. Assistimos ao Jim Morrison no passado, e assistimos ao Michael Jackson agora. A imprensa fez tudo para destruir Michael Jackson e, quando ele morreu, a comoção popular foi gigantesca.

O mesmo aconteceu com o Raul. No fi nal de sua vida, era convidado para programas de TV, visto como uma raridade. A tragédia faz com que a pessoa ganhe uma dimensão completamente diferente. Ou seja: ele se sacrifi cou por isso. Desde os mitos mais ancestrais, das mortes dos deuses, até hoje. John Lennon é mais importante que Paul McCartney porque foi assassinado. Na verdade, ambos têm o mesmo peso. Você enfrenta a tragédia e se transforma. Nossa relação era pessoal e, claro, foi se desgastando. Duas personalidades muito fortes. Daí nosso trabalho ser muito criticado. Porque não era aquela coisa: “Me mande um cassete que vou botar uma letrinha”. Rolavam discussões e momentos de agressão. Nunca chegávamos às vias de fato, entretanto eu lembro que algumas vezes chegamos muito próximos a isso. Em Brasília, ele chutou uma mesa e eu chutei um abajur. A gente ia se engalfinhar, mas Gloria, que estava com ele, botou panos quentes. Lembro de pensar: “Agora vai sair porrada”. Vinte minutos depois, estávamos sentados compondo. Não fi cava resquício de ódio.

A coisa que eu mais agradeço dessa relação foi ele ter me ensinado que cultura popular não é, necessariamente, uma coisa negativa. Ao contrário, a capacidade de se comunicar com todos é muito positiva. No fundo, é o objetivo do ser humano, a comunicação com seu próximo. A segunda coisa que ele me ensinou é a linguagem e de como fazer uso dela. Eu me lembro de gostar de músicas do Raul, antes de ele ser famoso, que ele fazia para outras pessoas na CBS. Eu o ouvia e dizia: “Então essa música é sua. Que maravilha!” Tem uma música que diz: “Estou voltando pra casa / Camisa amassada / Mais um dia de trabalho / Que afi nal chegou ao fi m”. Eu não sei nem quem canta. Só vim saber muito tempo depois que a canção era dele. Descrevia a rotina que tanta gente vive, do cara que vai de ônibus trabalhar. Raul me ensinou a ver isso e guardo até hoje.

Sem dúvida, minha vida tem dois momentos-chave: um é o Caminho de Santiago, quando assumo, realmente, ser escritor. O outro é o encontro com o Raul, quando deixei de querer ser gênio incompreendido. Recordo que eu dava poesias para Raul ler. A primeira versão de “Al Capone”, por exemplo, era um grande tratado. O Raul disse: “Não é nada disso, cara.” Eu, irritado, respondi: “Você quer algo como ‘Al Capone, vê se te emenda’?” Ele disse que sim. Eu respondi: “Raul, não se escreve dessa maneira”, mas a frase fi cou em minha cabeça.”Vê se te emenda’, que coisa horrorosa.” E, só para sacanear, continuei: “Já sabem de teu furo, nego, no imposto de renda”. E perguntei: “Você acha que isso é bonito?” Ele: “É ótimo”. Falei: “Então tá”.

Fui para casa e escrevi a letra de “Al Capone”. Ele nunca dizia que a letra estava uma droga. Dizia: “Não é assim, sabe?” Letra de música não é poesia. Letra de música é letra de música. É preciso libertar-se um pouco dessa ideia. Aprendi fazendo letra de música que é preciso ser absolutamente objetivo – sem ser superfi – cial. Quando você canta: “Eu perdi o meu medo da chuva / Pois a chuva voltada pra terra traz as coisas do ar”, a frase se encontra no contexto de uma música sobre o casamento, mas poderia muito bem estar totalmente separada desse contexto. Quando terminei de escrever “Gita”, cujo primeiro título era “A Letra A Tem Meu Nome”, a música fi cou com quatro minutos. Eu disse: “Pô, agora vou ter que cortar”. Ele retrucou: “De jeito nenhum. Não vai cortar nada”. Essa era a cumplicidade que tínhamos. Para os padrões da época, “Gita” era uma música muito longa. Ele disse: “Eu vou usar a letra inteira”. “A gravadora vai vetar”, eu disse. “Não vai, não”, ele respondeu: “Já tive sucesso com o Krig-Há, Bandolo!” E realmente não vetaram. Nessa noite, caiu uma grande tempestade que cortou a luz. E nós compondo “Há Dez Mil Anos Atrás” a luz de vela. Levamos para a gravadora e a música deu certo.

Só vim a chorar a morte do Raul seis meses depois. No dia da morte dele, eu senti uma espécie de estranha euforia. Sonhei com o Raul, que ele estava muito bem. Um belo dia, eu estava falando com um amigo, Edinho Oliveira, e de repente eu disse: “O Raul…” E aí desabei, comecei a soluçar. Não conseguia parar de soluçar; eu chorava sem parar. Chorava tudo o que não havia chorado pela sua morte. Quando terminei de chorar, senti de novo aquela paz. Hoje, enfi m, eu vejo Raul Seixas tendo o reconhecimento que merece. Em vida havia muito preconceito, todos achavam que MPB era autêntica e rock brasileiro não merecia nenhum respeito. Mas as coisas são assim. Maktub.