Ainda se surpreendendo com os frutos do Cansei de Ser Sexy – agora CSS –, Lovefoxxx revela que, fora dos palcos, é menos excêntrica do que se imagina
No palco apertado da abarrotada casa de shows paulistana, somente a vocalista está ausente. Enquanto Adriano Cintra se concentra em linhas de baixo pulsantes, Ana Rezende, Luiza Sá, Carolina Parra (guitarras) e o baterista JR Kurtz mantêm a batida dançante do CSS intensa e em alto volume. Dedicada a uma missão solitária, Luísa Lovefoxxx se perde nos braços de um público ensandecido como ela. Após intermináveis minutos, ela retorna ao pedestal do microfone, suada e com o rosto avermelhado, já despida de sua camiseta branca (com a estampa "Ay que Horror"), que acabara de ser rasgada pela plateia. Ao final da apresentação - a mais longa da história da banda, com 22 músicas no set list e 1h45 de duração -, ela ostenta no corpo, além do curto short jeans, apenas um sutiã.
"Quando estávamos indo pro palco, rolou um momento de emoção. A gente se olhou, meio que trocou pensamentos", relembra Lovefoxxx, agora diante de uma mesa de um café em Higienópolis, quase três meses após o referido show - a primeira apresentação individual do grupo na cidade em mais de cinco anos. São Paulo, aliás, tem um significado especial: foi onde os integrantes se conheceram e formaram o CSS (a banda prefere atualmente a sigla ao nome original, Cansei de Ser Sexy). Foi onde também que, em 2010, o atual quinteto largou a rotina pesada de shows para se concentrar na composição e gravação do terceiro álbum, La Liberación, com lançamento previsto para este mês. É quase como uma volta às raízes: após Donkey (2008), um disco menos festivo e carregado nas guitarras, retornam as músicas mais expansivas, com mais elementos eletrônicos e experimentações. Há piano, guitarra espanhola, saxofone e trompete, instrumentos inéditos na história do CSS. "Neste a gente quis pirar, ser superexuberantes, fazer o que a gente quisesse", comemora Lovefoxxx.
Assista ao making of da sessão de fotos com Lovefoxxx:
La Liberación reflete o atual momento do CSS e, principalmente, de Lovefoxxx. Aos 27 anos, ela conserva o ar juvenil de quando começou, por acaso, a cantar (tinha 19). Hoje, parece mais madura e garante - sem se dar ao trabalho de explicar o porquê - que 2010 "foi um dos melhores anos" de sua vida. Diferentemente do estilo intenso e elétrico que exibe ao vivo, fora do palco ela se revela, a princípio, tímida, quase séria demais. Bebendo água com gás, ela desvia o olhar enquanto formula suas respostas, bagunça os cabelos negros e grossos e evita entrar em assuntos que não sejam referentes à música ou à carreira artística - embora diga, em contradição, que sua "vida pessoal é meio que a banda". "Se a gente não guarda essas coisas mais pessoais", ela afirma, "parece que não tem nada que é só seu."
A história de vida de Luísa Hanae Matsushita remete a um conto de fadas pós-moderno. Em menos de cinco anos, ela deixou a casa dos pais em Campinas (SP) para se tornar o principal rosto da banda brasileira mais famosa no circuito alternativo internacional, sendo considerada "uma das pessoas mais cool do planeta" pela publicação britânica NME. A rotina na metrópole era sonho de adolescente - a ponto de Luísa trocar, em pensamento, as ruas da cidade onde morava pelas largas vias paulistanas. "Eu ficava sonhando. Às vezes, estava em Campinas, mas ficava imaginando que estava descendo a rua Augusta." Aos 13, ainda sem carregar a alcunha de Lovefoxxx, ela esperava as férias para descolorir os cabelos e pintá-los de rosa, como canta na autobiográfica "City Grrrl", terceira faixa de La Liberación. A recepção à sua aparência, conforme recorda, não era acolhedora. "Gritavam do carro umas coisas pesadas, sabe? A pessoa saía do caminho pra encher meu saco. Eu era supermontada e o povo me 'xoxava' muito na rua. Chegava em casa e chorava de raiva. Só queria que ninguém me enchesse o saco."
Luísa almejava ser estilista e dava vazão à verve criativa costurando peças por conta própria. Quando soube de um projeto para novos talentos na Semana de Moda (hoje, Casa de Criadores), mandou um portfólio para o organizador, André Hidalgo. "Peguei minhas amigas magras e fotografei todas as roupas que eu tinha feito", ela conta. "Eu era muito nova pra participar do evento, mas ele me deu um estágio. No último dia da Semana de Moda, liguei pra casa: 'Mãe, meu lugar é aqui. Eu não posso mais voltar pra Campinas." Os pais aceitaram, contanto que a filha se virasse sozinha para conseguir um lugar para morar e uma escola. Luísa saiu pela avenida Paulista perguntando em bancas de jornais sobre os colégios na região; deu de cara com mensalidades acima do que os pais podiam pagar, e procurou, na lista telefônica, "o colégio mais barato de São Paulo". A moradia, ela encontrou conversando com uma garota (a quem nunca tinha visto na vida) na Galeria Ouro Fino, que estava alugando um apartamento com algumas amigas. Quando se deu conta, já levava a vida em São Paulo.
Para quem a presencia liderando a música do CSS, Lovefoxxx parece a mais extrovertida das criaturas - seja se comunicando com os fãs, seja executando passos de dança improváveis ou tecendo comentários nonsense entre uma faixa e outra. Mas, sem o distanciamento e as luzes proporcionados pelo palco, exibe um quê de acanhamento - ou seria de defesa? Um exemplo: ela jamais executa exercícios para aquecer as cordas vocais em público. "Eu tenho vergonha", diz. "Acho que é muito pessoal, fico completamente constrangida, tenho até vontade de chorar. Na turnê, fecho o ônibus inteiro, vou lá pro fundo; quando vejo que o ônibus deu uma mexidinha, porque alguém está entrando, eu paro."
"Eu fico muito mais confortável no palco do que na maioria dos lugares", ela se explica, parecendo pensativa. "Acho que sou um pouco... eu não sou a pessoa mais sociável do mundo. Odeio ficar jogando conversa fora, que vai do zero a lugar algum. Tipo: 'E aí, tudo bem?' 'Tudo' 'Então tá bom'. Não gosto, tenho um pouco de preguiça." No entanto, Lovefoxxx confessa o pavor de que afirmem que ela faz uso de algum tipo de personagem em suas performances. "É sempre a mesma pessoa, só que você é diferente em cada ocasião: quando você vai jantar com seus pais, mostra um lado. Quando vai sair com as suas amigas, mostra outro. Eu, no palco, não sou um personagem. Sou eu, só que em circunstâncias diferentes."
Mas o CSS parece funcionar como a união de tudo o que define Lovefoxxx: é o meio pelo qual ela se expressa como artista, é sua família na estrada e é onde estão seus melhores amigos ("Hoje, não consigo imaginar minha vida sem eles", decreta). Na concepção dos milhares de jovens que tentam formar bandas em quartos diminutos ou estúdios alugados, a rotina do CSS parece mesmo conter os ingredientes de um sonho fabuloso: os integrantes se divertem fazendo o que querem, viajam o mundo na companhia de quem os agrada e, quando não estão trabalhando, ainda matam o tempo juntos. Na noite da entrevista, Lovefoxxx sairia em seguida para a casa de Ana Rezende. A cantora, então, tira da mochila um pacote de presunto e explica que aquela seria "a noite de presunto e vinho", com frios trazidos da Espanha por uma amiga.
"Eu li uma entrevista com o Bob Dylan, em que ele dizia que tem tanta música já feita no mundo, que ninguém mais precisava fazer nenhuma, não precisava ter mais nenhuma banda", Lovefoxxx teoriza. "É meio 'uó' isso, mas aí fico pensando... Acho que não temos a necessidade de suprir nada, porque já existem sei lá quantos mil anos de música antes de nós." Tal reflexão, aparentemente, tem funcionado: é impossível ficar incólume a uma apresentação do CSS justamente pelo fato de que nada do que ocorre no palco parece planejado. O CSS é o tipo de banda que faz qualquer um querer ter uma banda: é como se nas letras os integrantes falassem sobre temas que discutem somente quando estão bêbados - coisas que pessoas "normais" como eu e você teriam pudores de revelar em público. Ao vivo, os cinco (seis, se contarmos o baterista Kurtz, contratado para a atual turnê) parecem se divertir tanto quanto quem assiste às apresentações, em um misto de histeria improvisada e concisa eficiência conquistada à custa de centenas de shows em palcos internacionais, realizados desde 2006.
Obviamente, a história do CSS não teve só glórias. Na época da gravação de Donkey, a banda se viu no limite, em meio a uma turnê inacabável e problemas de natureza burocrática. "Se não fosse pelo Adriano, não teria o Donkey. Ele consegue trabalhar em qualquer circunstância. Fiz umas letras, mas ele fez o álbum quase inteiro, ele que pegou pesado", conta Lovefoxxx. "Fazer música não é uma coisa sistemática. Você tem que ter alguma inspiração, estar ou muito triste ou muito feliz. E [naquela época] eu não queria fazer nada."
Foi em meados de 2007 que o CSS acusou Eduardo Ramos, o então empresário do grupo, de fraude. Lovefoxxx prefere não lembrar o assunto, mas diz que nem mesmo a crise causada à época (ela afirma que o único momento em que passaram dificuldades financeiras aconteceu "quando fomos roubados", como se refere ao caso) os fez cogitar acabar com o grupo.
"A gente nunca pensou. É muito incrível a existência dessa banda nas nossas vidas. Já passou, a gente já superou. O que importa é que a gente está bem." Ela para por um segundo, e repete, querendo enfatizar as próprias palavras: "A gente está bem".
Adolescente recém-chegada a são Paulo e morando sozinha, Luísa Lovefoxxx se concentrou no trabalho: conseguiu estágio na área de diagramação em uma revista e passou a vender ilustrações para a publicação. A certa altura, trabalhava em dois lugares: estudava de manhã, à tarde estagiava com um estilista na Galeria Ouro Fino e trabalhava até as 22h no site da consultora de moda Gloria Kalil. Nessa época, conheceu os futuros integrantes do Cansei de Ser Sexy em bares e, assistindo a shows, tiveram a ideia de montar uma banda, mesmo sem ter experiência em nenhum instrumento. Lovefoxxx - que criou o apelido na época em que ilustrava e passou a adotá-lo para se diferenciar da guitarrista Luiza Sá - tocaria guitarra. "Cheguei ao primeiro ensaio e tinha, tipo, quatro pessoas tocando guitarra, um microfone no meio e ninguém cantando", ela lembra. "Eles estavam tocando 'Hollywood', da Madonna. A gente baixou a letra da internet, imprimiu e eu comecei a gritar muito." Adriano tocava outros instrumentos e já era veterano da cena alternativa paulistana, mas optou pela bateria para que todos ficassem igualados no quesito "não saber tocar". "Sério, não dá para acreditar que a banda foi tão longe", Lovefoxxx diz. "Fui para aquele primeiro ensaio porque pensei: 'Se essa banda fizer um show, eu vou querer muito estar lá, porque vai ser divertido'. Essa foi a minha única ambição pessoal: fazer um show. Depois, eu não conseguia acreditar que tinha gente indo nos ver."
Ainda que a maioria das letras seja escrita por ela (e boa parte dos arranjos caiba a Adriano Cintra), Lovefoxxx sempre faz questão de tirar a atenção de si própria. "Hoje, a gente divide tudo. Todas as histórias. Quando eu estou em crise, eles me ajudam", ela afirma. "Eu sempre quis ter uma 'gangue'. E é legal, porque a gente é uma gangue que foi pro Japão, pra Austrália." Até para falar sobre os temas das composições, a vocalista cita os companheiros. "Eu gosto de fazer letras que representam todo mundo. Tem muita coisa que, se não fosse pela nossa convivência, eu não conseguiria ter feito."
A expectativa causada pela persona artística de Lovefoxxx é inversamente proporcional à normalidade que ela exibe em uma conversa casual. Não há, como poderia sugerir a imaginação de quem a vê de longe, comentários loucos, gestos expansivos ou tiques surpreendentes. Mas, aos poucos, assim como ocorre sempre que está no palco, ela vai se soltando. Dá risada ao finalizar frases, repara em um rato que passa pela sarjeta e no forte cheiro de peixe da rua, que havia abrigado uma feira livre horas antes. Mesmo não se comportando como a frontwoman alucinada dos shows, a Luísa distante dos holofotes é provavelmente uma boa companhia para festas e porres - agora, ela garante, mais comedidos do que os de antigamente. "A única coisa que eu faço é beber. Mas eu adoro beber, e quero beber pro resto da minha vida, então bebo direito. Não fico mais misturando tudo, como eu fazia antes."
Tão peculiares quanto a tatuagem de um cérebro que carrega na palma da mão direita são os planos de Luísa Lovefoxxx para o futuro não tão distante - ela quer se dedicar ao desenho (quando criança, pretendia trabalhar com histórias em quadrinhos). "Desenhar me traz uma satisfação muito grande. Vejo muito como um passatempo, acho que tenho que encarar como uma coisa séria." Embora pense para frente, Lovefoxxx costuma refletir sobre o passado: gosta de se lembrar da adolescência, de pensar sobre os caminhos que a levaram ao lugar onde está. Do ímpeto juvenil de morar sozinha e trabalhar longe da família à entrada inesperada no contexto pop global, ela se declara dividida entre o que foi e o que ainda virá.
"Eu sou mais ansiosa com o futuro do que triste ou querendo viver no passado, mas gosto de lembrar. Gosto meio de comparar sempre, sabe? Quando tá melhor, quando tá pior... eu não gosto de ficar pensando", ela conta sorrindo, dando a entender que não está falando tão sério assim.
Em relação ao CSS, a intenção de Lovefoxxx continua sendo a mesma de oito anos atrás, quando se transformou em vocalista quase que por acidente: divertir-se. E, mesmo passado tanto tempo, ela ainda faz questão de se surpreender. "Um menino escreveu falando que, depois de um show nosso nos Estados Unidos, ele ficou tão feliz que saiu do armário. E ele tem 15 anos. Esse tipo de coisa me deixa meio chocada, porque é bafo, né?", Lovefoxxx exulta. "Nossas músicas são pop. Eu fico feliz quando podem motivar alguém tanto assim. A gente nunca imaginou que esse tipo de coisa fosse acontecer."