Músico disse sentir “constrangimento em ainda existir”, apontou que fórmula atual das atrações é complicada e citou situação após “pergunta burrinha” de Anne Lottermann
Publicado em 09/11/2023, às 10h00
Guilherme Arantes é um dos grandes hitmakers da música brasileira. Além de ter emplacado vários sucessos como “Meu Mundo e Nada Mais”, “Cheia de Charme” e “Um Dia, Um Adeus”, teve canções gravadas por Roberto Carlos, Caetano Veloso, Maria Bethânia, Elis Regina, Belchior, entre vários outros.
Hoje com 70 anos de idade, o músico está longe de sua aposentadoria. Mantém-se ativo nos palcos e lançou seu álbum mais recente, A Desordem dos Templários, em 2021. Mesmo assim, ele evita participar de programas de TV, vistos como uma das principais formas de divulgação para trabalhos artísticos no país.
Em uma longa publicação no Facebook,Arantes abordou a questão e admitiu que algumas perguntas lhe perguntam por que ele não tem o hábito de estar em atrações televisivas. Na visão do cantor, sua “imagem pode trazer danos à audiência” e o próprio público da TV também “pode trazer danos” a ele. O motivo, segundo ele, está na fórmula executada pelos programas e em como pessoas de aparência fora do padrão parecem não pertencer mais àquele espaço. Inicialmente, declarou:
“Sei que a TV foi maravilhosa para nossas gerações, especialmente a minha. Tenho total reconhecimento. Amo a TV. Amei existir e fazer parte dela. Mas era outra TV. Outro jeito de se fazer. A gente cantava e pronto. Não tinham os componentes e as fórmulas que vingaram nos tempos atuais. Ficou bem complicado agora, com interatividade e o voyeurismo invasivo, científico, dos talk shows…”
Em seguida, Guilherme destacou saber “que os programas das TVs vivem na corda-bamba, lutando desesperadamente por audiência”. Porém, em sua visão, “muito da TV, hoje, se constrói em função do que vem e do que causa nas redes sociais — e isso é Orwelliano, diabólico”.
“Não quero constranger o público, também, já que hoje em dia as pessoas são todas muito bonitas nas redes sociais, nas mídias. Esta é a época de ouro da humanidade, em que os seres humanos são todos simplesmente maravilhosos e todos muito virtuosos, com seus milhões de seguidores. Todo mundo faz a sua lição de casa, bonitinhos, com seus sorrisos e mensagens agregadoras, ou estudadamente ‘chocantes’ , provocativas, vale tudo desde que sejam de alguma forma eficientes para angariar seguidores. É a nova verdade. Diga-me quantos te seguem, e te direi quem és.”
Na parte mais forte de seu relato, Guilherme Arantes disse sentir “um constrangimento em ainda existir”.
“Sei que já passou o tempo de eu estar enterrado num passado de lembranças, e não incomodar mais. Só que eu, Guilherme Arantes, insisto em não morrer (seria o ideal) e estou nascendo hoje para o futuro e insisto em dizer pra mim mesmo: eu existo. Dane-se o incômodo que causar.”
O cantor, então, citou um exemplo ocorrido em abril de 2022, quando ele participou do programa Faustão na Band. Segundo ele, a jornalista Anne Lottermann lhe fez uma pergunta “inocente e burrinha”, mas que ilustra seu ponto de vista.
“Fui fazer o Fausto Silva e a Anne Lottermann me perguntou se eu sentia saudades da cabeleira, da minha juventude. Sei que foi uma pergunta inocente e burrinha, coitadinha, porque eu lhe respondi na lata. Fiquei surpreso com a pergunta ‘na lata’. As pessoas na TV têm que ser lindas. Isso é inquestionável. Respondi que não sinto saudades porque o meu conteúdo cerebral de hoje, o meu carisma até para responder... não dá para comparar com o conteúdo ‘ralinho’, o carisma fraquinho que eu tinha no tempo dos cabelões — que aliás, hoje datam de mais de 40 anos, a provável idade dela.”
Por fim, Arantes apontou que não deseja mais fazer televisão “quando é para ser entrevistado, a pergunta já vem pautada para ‘causar’”. Ainda segundo ele, “as falas na TV são sempre tóxicas, trazem aborrecimentos e perdas pessoais”.
“Tenho visto colegas entrarem nessa roubada de ‘debates’ , de temas, de ‘pautas’, cujo único propósito é colocar o artista frente a frente com o paredão de fuzilamento da polarização. Até aí, vai quem quer. Aí, quando é para cantar, aí as produções querem os ‘hits’ mais comportadinhos e digestivos, que garantam a audiência através dos ‘grandes sucessos’, que não tragam questionamento novo algum. É um tempo muito difícil de se estar vivo. Muito fácil para se estar morto.”
Mais de uma semana após a publicação original — e sua repercussão, atingindo mais de 11 mil curtidas e 1,3 mil compartilhamentos no Facebook —, Guilherme Arantesretomou o assunto em outra postagem que serviu de complemento. O músico deixou claro que sua crítica não era a todos os programas de TV e apontou alguns exemplos positivos.
“No post, eu coloquei logo no início o verbo ‘evitar fazer TV’ porque não é um repúdio generalizado à mídia. Espero, de coração, poder retornar a espaços generosos que ainda existem e resistem, com qualidade, na grade televisiva.
Quando fui na Ana Maria Braga, tempos atrás, foi incrível o programa, me providenciaram um piano de cauda maravilhoso, e nosso papo foi um exemplo de emoção e de cultura.
O Raul Gil é um amigo antigo e leal, sempre terá o meu apreço e minha gratidão, aliás eu sempre acreditei em sua verdade, legitimidade e importância para o Brasil.
Ano retrasado, fiz um programa especial com o Pedro Bial, direto da Sala Sinfônica Lienzo Norte, de Ávila, na Espanha, que ficará para sempre como um dos meus melhores momentos na minha relação afetiva com a TV.
Como não lembrar do Sem Censura, em suas diversas fases, e ainda, como poderia esquecer do excelente Metrópolis, sempre prestigiando os lançamentos, de todas as gerações da música do Brasil?
Zé Maurício Machline é outro que permanece ativo com ótimas transmissões, um eterno apaixonado pela MPB.
O Faustão, queridíssimo, é outro bom exemplo, sempre foi um espaço precioso que faz parte da minha história. É um legado que não posso negligenciar.
Fui há meses no Marcos Mion, cantar com sua banda, excelente por sinal, e foi uma delícia me encontrar ali com Ferrugem, de quem sou fã, e que se mostrou um fã meu, super carinhoso.
Fui no Esquenta, e não faz nem tanto tempo assim, e recebido com honras pela nata do samba, um programa inesquecível... as pessoas me recebendo como um rei, cantando comigo de lágrimas nos olhos... Isso não dá pra esquecer!”
O problema, de acordo com Arantes, “é que a grade televisiva vai se modificando com o tempo”. Como alguns espaços deixam de existir, ocupam tais postos “um vácuo de aridez preenchido por atrações e realities de fundamentos questionáveis”.
Em seguida, o músico apontou que a grade televisiva apresenta problemas desde sempre. Ele também destacou exemplos positivos, mas citou situações negativas do passado. Inicialmente, focuo nos bons momentos:
“Não credito o meu ‘evitar fazer TV’ apenas aos tempos atuais. No meu início de carreira, havia muita pedreira, muita coisa nefasta a se encarar. Não falo aqui do inacreditável Silvio Santos, que foi, de cara, respeitosíssimo para comigo, no Show de Calouros, um dos primeiros programas da minha vida. Fui com a cara e a coragem para ser julgado pelo júri, embora já estivesse ‘estourado’ no rádio (AM, ainda, TV branco e preto.. kkk). Esse programa foi um marco na minha vida, galgou para mim uma audiência, um prestígio e uma popularidade impressionantes! Silvio sempre foi um cavalheiro comigo. Também devo aqui lembrar positivamente da querida Hebe, cujo carinho e carisma sempre me acolheu com muito amor.”
Depois, uma das situações negativas foi comentada por Guilherme.
“Flávio Cavalcanti, que deveria ter me recebido melhor, preferiu a polêmica da guilhotina, com a qual cortou impiedosamente o meu disco A Cara e a Coragem, em 1978. Fiquei muito chateado com a injustiça. Às vezes eu me assusto com minha memória de elefante. Tinha tanta coisa pior na música, tanta picaretagem já naquela época , para ser guilhotinada… Aliás, digo melhor: cá entre nós, ninguém é para ser guilhotinado! [...] Por tudo isso, peço que as pessoas me perdoem o excesso de empolgação ao externar os sentimentos por estranhar os tempos atuais, de realities, talk shows, voyeurismos, hedonismos, etarismos, e outros ‘ismos’.”
Igor Miranda é jornalista formado pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e pós-graduado em Jornalismo Digital. Desde 2007 escreve sobre música, com foco em rock e heavy metal. Colaborador da Rolling Stone Brasil desde 2022, mantém o site próprio IgorMiranda.com.br. Também trabalhou para veículos como Whiplash.Net, portal Cifras, site/canal Ei Nerd e revista Guitarload, entre outros. Instagram, X/Twitter, Facebook, Threads, Bluesky, YouTube: @igormirandasite.