ENTREVISTA

O som de um mistério: os segredos do design sonoro de ‘Twin Peaks’

Rolling Stone Brasil conversou com Dean Hurley e Lori Eschler, supervisores de música e som de uma das séries mais enigmáticas da TV

Angelo Cordeiro (@angelocordeirosilva)

O som de um mistério: os segredos do design sonoro de 'Twin Peaks'
O som de um mistério: os segredos do design sonoro de 'Twin Peaks' - Divulgação/ABC

Poucas obras na história da televisão causaram tanto estranhamento e fascínio quanto Twin Peaks, criada por David Lynch e Mark Frost. Parte do que torna a série tão inesquecível é algo que raramente ganha os holofotes: o design de som. Mais do que uma trilha marcante — assinada por Angelo Badalamenti — , o universo sonoro da série é uma construção sensorial que envolve drones, ruídos, loops analógicos e, acima de tudo, intuição emocional.

Em entrevista exclusiva à Rolling Stone Brasil, Dean Hurley, supervisor de som e música de Twin Peaks: O Retorno (2017), e Lori Eschler, supervisora musical das duas primeiras temporadas e do longa Os Últimos Dias de Laura Palmer (1992), revelaram o processo criativo por trás dos sons que moldaram o universo de Lynch e deixaram conselhos valiosos para quem deseja mergulhar nesse ofício.

“Era um laboratório de experimentação sonora”

Dean Hurley relembra com carinho seu início em 2005 no estúdio de Lynch, bem antes do retorno oficial da série em 2017. “Ele usava muitos métodos experimentais e queria que o processo fosse divertido. Era como um laboratório onde ele dizia: ‘Este é o meu estúdio, é aqui que experimento com som’”, conta Hurley.

Contratado como engenheiro de estúdio, ele logo percebeu que seu papel seria muito mais amplo. “Eu fiquei confuso na primeira semana. Ele me pedia para fazer várias coisas diferentes. Era tudo muito fora do convencional”, lembra.

Em vez de instrumentos exóticos, o diferencial estava nas técnicas. “Eu pegava gravações feitas no estúdio do Angelo Badalamenti, criava loops, sobrepunha trechos, desacelerava frases. Era mais sobre a manipulação dos sons do que sobre os sons em si”, explica ele. 

O som de um mistério: Os segredos do design sonoro de 'Twin Peaks' (Divulgação/ABC)
O som de um mistério: Os segredos do design sonoro de ‘Twin Peaks’ (Divulgação/ABC)

Da lâmina de barbear ao digital

Segundo Lori, o salto tecnológico entre a primeira temporada e o revival de 2017 foi determinante para acelerar o trabalho de som na série. “Na primeira temporada, tudo era feito com fita magnética, editado com lâmina de barbear e colado com fita adesiva. Quando chegamos à segunda, eu já estava usando um dos primeiros sistemas digitais de edição.

Essa mudança não apenas acelerou processos, como também abriu novas possibilidades criativas. “Com o digital, os diretores queriam testar cada vez mais. ‘Tenta essa música, tenta aquela’. Isso deu liberdade e variedade”, diz Lori. “Os efeitos sonoros se tornaram mais sofisticados, porque os editores agora tinham tempo para mergulhar nos detalhes.

Mesmo com o avanço tecnológico, Hurley reconhece algo insubstituível no trabalho original de Twin Peaks:

Ainda não existe nenhuma série que chegue perto do som daquela primeira temporada. Quando você faz algo de um jeito tão único, aquilo se torna uma coisa própria”

Nem mesmo a terceira temporada, embora elogiada por seu estilo singular, recria a atmosfera sonora original. “David era a mesma pessoa nas duas temporadas, mas com muita experiência de vida a mais quando fez a terceira. A tecnologia permitiu que ele mesmo fizesse muitas edições de som e imagem que antes dependiam da Lori.

O som de um mistério: Os segredos do design sonoro de 'Twin Peaks' (Divulgação/ABC)
O som de um mistério: Os segredos do design sonoro de ‘Twin Peaks’ (Divulgação/ABC)

Uma assinatura inimitável

Para Hurley, o som da série transcendeu o papel de apoio à narrativa. Ele virou linguagem própria, com elementos imediatamente reconhecíveis. “Você praticamente não pode mais usar um piso quadriculado e cortinas vermelhas sem que as pessoas saibam de onde aquilo veio. Sonoramente, é a mesma coisa: sons desacelerados, invertidos, guitarras com aquela vibe pesada dos anos 1950…”, explica.

Esses recursos, segundo Hurley, não só marcaram época como abriram novas possibilidades criativas na televisão. “Quando ele fazia algo, era de maneira enfática. Ele mostrava caminhos que as pessoas nem sabiam que podiam seguir. Era como abrir uma porta que ninguém via.

Lori concorda e acrescenta: “Hoje, isso virou uma marca. Não tem nada recente que eu tenha visto que seja realmente parecido com o design sonoro ou musical de Twin Peaks ou de outros trabalhos do David. Virou uma identidade própria. As pessoas dizem: ‘isso é lynchiano’.”

Segundo ela, o termo pode até ser evitado por alguns diretores e produtores, mas o impacto é inegável. “Como o Dean disse, é tão óbvio e tão forte, que quando alguém tenta fazer algo parecido, você imediatamente reconhece de onde aquilo veio.

O som de um mistério: Os segredos do design sonoro de 'Twin Peaks' (Divulgação/ABC)
O som de um mistério: Os segredos do design sonoro de ‘Twin Peaks’ (Divulgação/ABC)

 

Mas o que exatamente define o som de Twin Peaks para quem nunca ouviu? A resposta está no contraste entre atmosfera e estilo. “A personalidade sonora da série é, por vezes, muito sombria e misteriosa”, diz Lori. “Mas, ao mesmo tempo, é extremamente estilizada. Ela segue sua própria convenção e permanece fiel a ela. Não há rupturas.

O estilo musical da série incluía desde cool jazz até arranjos orquestrais exuberantes e referências ao rock dos anos 50, sem nunca descambar para o óbvio. “Não havia rock and roll, por exemplo. Havia country no jukebox ou certos elementos visuais nos hotéis, mas tudo era tratado com muita consistência estética”, completa ela.

Performance e experiências sensoriais

Uma das perguntas que Hurley mais recebe envolve o grito final de Sheryl Lee, intérprete de Laura Palmer, na terceira temporada, um dos momentos mais arrepiantes da série. A resposta, no entanto, surpreende: “Isso não é design de som. É performance. Só se torna um elemento de design por causa de como a interpretação soa.

Para ele, a força do som em Twin Peaks não está apenas nos recursos técnicos, mas nas experiências sensoriais que o som evoca. E muitas dessas experiências vêm da própria infância de Lynch.

Ele cresceu ouvindo aviões bombardeiros passando pela cidade. Aqueles motores duplos criavam um zumbido constante no céu, algo que marcou ele profundamente. Décadas depois, a gente estava no estúdio criando loops de drones que até levavam nomes como ‘bombardeiro tal’… É uma tentativa de capturar aquela mesma sensação de quando você ouviu algo pela primeira vez e foi tocado por aquilo.”

Hurley explica que, ao contrário do que se espera de um diretor, Lynch não usava sons “realistas” por padrão. Em cenas silenciosas, por exemplo, ele muitas vezes preferia preencher o espaço com o som do vento, criando um tipo de atmosfera invisível, o “MSG misterioso”, como Hurley define.

“Ele adorava vento. Pegou isso do [Federico] Fellini, tenho certeza. No começo de Oito e Meio, quando os carros estão em um engarrafamento, você esperaria ouvir buzinas, motores… Mas só ouve o vento. Isso te coloca dentro da mente do personagem”, explica.

O som de um mistério: Os segredos do design sonoro de 'Twin Peaks' (Divulgação/Showtime)
O som de um mistério: Os segredos do design sonoro de ‘Twin Peaks’ (Divulgação/Showtime)

O episódio 8

Tido por muitos fãs como o melhor episódio da história de Twin Peaks, no famoso episódio 8 da terceira temporada, Hurley admite que foi o mais simples em termos técnicos para ele, justamente porque foi o mais pessoal para Lynch.

Até o David falou: ‘Deixa comigo’. Ele mesmo editou a imagem, o som, a música. E é por isso que esse episódio é tão icônico. Não havia intermediários. Era 100% ele”, conta.

O uso intenso de abstração, colagem sonora e montagem não-linear fez com que o episódio se tornasse um marco da TV moderna e também um raro caso de um diretor com controle completo de todos os elementos sensoriais de sua obra.

O som de um mistério: Os segredos do design sonoro de 'Twin Peaks' (Divulgação/Showtime)
O som de um mistério: Os segredos do design sonoro de ‘Twin Peaks’ (Divulgação/Showtime)

Os Últimos Dias de Laura Palmer e os desafios de Lori

Para Lori, um dos momentos mais desafiadores da carreira veio em Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer. A complexidade técnica da mixagem sonora se somava à intensidade emocional do filme.

Eu criava diferentes loops e alimentava diretamente os faders que o David usava na mesa. Ele mexia em tudo, um pouco disso, um pouco daquilo… A gente testava, ouvia, tirava algo, colocava uma textura nova, talvez com mais agudos. Foi um processo com muita mudança constante.”

Apesar da dificuldade, ela garante: trabalhar com Lynch nunca foi um martírio. “Eu meio que sempre sabia pra onde ele queria ir. Às vezes, nem precisávamos falar. Ele só me dava um sinal e eu já entendia: ‘Precisa de mais brilho’. E eu entregava.

O som de um mistério: Os segredos do design sonoro de 'Twin Peaks' (Divulgação/ABC)
O som de um mistério: Os segredos do design sonoro de ‘Twin Peaks’ (Divulgação/ABC)

O erro é onde as descobertas nascem

Ao final da conversa, perguntamos a Dean Hurley e Lori Eschler quais conselhos eles dariam a quem deseja trilhar carreira em música ou design sonoro. As respostas, assim como a obra de David Lynch, foram carregadas de sensibilidade, liberdade criativa e um profundo respeito pelo instinto.

Para Lori, o primeiro passo é perder o medo. “Mantenha-se aberto e não tenha medo de experimentar tudo e de errar. Porque é aí que você descobre coisas novas.” Dean encoraja os aspirantes a abraçarem a ousadia, testarem combinações inesperadas, mesmo quando parecem exageradas:

Jogue sons sobre a imagem e veja o que sente. Não deixe o medo dizer: ‘Isso está demais? Devo suavizar?’. O objetivo é encontrar aquela combinação mágica que, de repente, te empolga.”

Segundo ele, até os mais jovens percebem quando algo funciona. “É inegável. Mas até chegar lá, há muito tropeço pelo caminho.” Ele relembra o que tornava David Lynch um mestre da experimentação: “Ele tinha uma paciência e uma curiosidade tão grandes que não se importava em se perder nos detalhes. Quando finalmente encontrava o som certo, era como se algo o eletrocutasse por dentro. Ele reagia com entusiasmo total: ‘É isso! É isso!’

E continua, em tom poético: “Trate seu corpo como um diapasão. Quando algo começa a ressoar, a te mover internamente, você sente. E quanto mais você se abre a isso, mais constrói um repertório pessoal de respostas — sobre o que usar, quando usar, como reagir.”

Esse senso de escuta emocional e física, segundo Hurley, é essencial para qualquer pessoa que queira trabalhar com som. “Você desenvolve uma paleta. Começa a saber o que fazer nas mais diversas situações. E isso vem da prática, da ousadia e da conexão com o que você sente.

O som de um mistério: Os segredos do design sonoro de 'Twin Peaks' (Divulgação/Showtime)
O som de um mistério: Os segredos do design sonoro de ‘Twin Peaks’ (Divulgação/Showtime)

 

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Angelo Cordeiro é repórter do núcleo de cinema da Editora Perfil, que inclui CineBuzz, Rolling Stone Brasil e Contigo. Formado em Jornalismo pela Universidade São Judas, escreve sobre filmes desde 2014. Paulistano do bairro de Interlagos e fanático por Fórmula 1. Pisciano, mas não acredita em astrologia. São-paulino, pai de pet e cinéfilo obcecado por listas e rankings.
TAGS: david lynch, Dean Hurley, Lori Eschler, mark frost, Twin Peaks