A história de todas as músicas de ‘Nebraska’, de Bruce Springsteen
Simplicidade em forma amadora de gravação contrasta com enorme complexidade de histórias contadas e padrões quebrados no 6º álbum de estúdio do artista
Igor Miranda (@igormirandasite)
Qual deve ser o próximo passo da carreira de um artista após conquistar o topo das paradas? Bruce Springsteen, entre o fim de 1981 e início de 1982, fez em Nebraska o completo oposto do que qualquer especialista em sucesso ofereceria como resposta a essa pergunta. Não que tenha sido planejado — pois boa arte não se organiza desse jeito —, mas aconteceu.
Com o fim da turnê do bem-sucedido álbum The River (1980), Springsteen buscou isolamento em uma casa isolada na pacata Colts Neck, cidade no estado americano de Nova Jersey. Por lá, compôs o material que se transformaria em Nebraska, um álbum introspectivo, todo acústico e com qualidade de som amadora, pois foi todo registrado em casa, sozinho, com um gravador portátil de 4 canais.
Nebraska saiu em setembro de 1982 e se tornaria um dos discos mais importantes de Bruce, seja pelas letras desesperadas e donas de uma visão bem particular dos EUA ou pela influente sonoridade lo-fi de proposta DIY (do it yourself). Está na hora de dissecar esse intrigante álbum, explorado na nova cinebiografia Springsteen: Salve-me do Desconhecido.
Nebraska — Bruce Springsteen
1. “Nebraska”
Posicionada logo na abertura, a faixa-título versa sobre um caso real de assassinato, no qual Bruce Springsteen assume a voz… do criminoso. O serial killer Charles Starkweather matou onze pessoas em oito dias em 1958 nos estados de Wyoming e… Nebraska. Inspirado pelo filme Badlands (1973) e o livro Caril (1974), que narram a história real de Starkweather, Springsteen pesquisou bastante sobre o tema. Entregou uma canção visceralmente perturbadora, tanto pela letra — na qual o facínora deixa claro não sentir remorso mesmo após condenado à cadeira elétrica — quanto pela música soturna, conduzida por um dedilhado discreto e uma gaita cortante.
2. “Atlantic City”
Faz sentido que “Atlantic City” tenha sido lançada como single. Ao menos no que tange à parte musical, esta faixa provavelmente se encaixaria bem em The River (1980), álbum anterior de ritmo agitado e melodias grandiosas. Em Nebraska, contudo, adquire outro nível de profundidade. A letra aborda como a cidade mencionada no título, ainda em sua era pré-cassinos, se tornou o destino de um casal pobre para “tentar a vida”. Em desespero financeiro, o homem deste par acaba envolvido com a máfia, reforçando a decadência social em uma cidade à época tomada pela corrupção. Outro episódio real é referenciado na composição: o assassinato do mafioso Philip “Chicken Man” Testa em 1981.
3. “Mansion on the Hill”
Retomando a estética musical da faixa de abertura com melancolia + violão dedilhado + gaita sofrida — e acrescentando referência a uma canção homônima de Hank Williams —, “Mansion on the Hill” representa o primeiro dos três momentos de carga pessoal em Nebraska, todos ligados à relação conflituosa com o pai do artista. Springsteen volta às lembranças da infância ao versar sobre um menino frequentemente levado por seu progenitor até a frente de uma mansão no alto de uma colina. O “fascinado por dinheiro” Douglas realmente fazia isso junto ao filho só para ficar olhando o casarão, imaginando-se rico. Para um já adulto Springsteen, o exuberante imóvel simbolizava a desigualdade social vivenciada nos EUA desde sempre. O que mudou com o passar dos anos foi a própria ascensão financeira de Bruce. “Quando sonho, às vezes estou de fora olhando a mansão, às vezes estou dentro dela”, disse ele durante show em 1986.
4. “Johnny 99”
“Johnny 99” prova que a definição de “álbum folk” não se encaixa em Nebraska, seja por estética ou temática. Ancorada em um ritmo blues/rockabilly, a quarta faixa do álbum promove um embate quase sarcástico entre sonoridade festiva — obviamente até certo ponto — e letra pesada. Aqui, Springsteen narra a trajetória de um operário endividado após demissão de uma fábrica com atividades encerradas em Nova Jersey. O homem fica bêbado, atira em um balconista noturno e acaba preso, mas fica insatisfeito com a punição de 99 anos de cadeia: ele queria, na verdade, pena de morte. Tornou-se, compreensivelmente, a faixa desse disco mais tocada ao vivo por Bruce em seus shows, com “Atlantic City” na segunda posição.
5. “Highway Patrolman”
Música mais longa de Nebraska (com 5 minutos e 39 segundos), “Highway Patrolmen” representa uma audição não muito fácil. Não apenas por resgatar a estética melancólica no âmbito musical, como também por sua gravação esparsa, a ponto de mal se ouvir o dedilhado do violão em alguns momentos. Um conflito ético serve como base para a letra: o policial Joe tem como irmão Frank, um rebelde egresso do exército americano — imagina-se que após ter sido mandado para a Guerra do Vietnã — e envolvido em uma série de crimes. Ao perseguir Franky após um assassinato, ele o encontra na fronteira com o Canadá… e o deixa fugir. Foi regravada por Johnny Cash (junto a “Johnny 99”) e inspirou o filme Unidos Pelo Sangue (1991) de Sean Penn.
6. “State Trooper”
Se “Atlantic City” encaixaria tranquilamente em um álbum como The River, seria impossível imaginar “State Trooper” em outro formato ou disco que não Nebraska. Este curioso blues contido com berros ocasionais é narrado por um ladrão de carros em fuga por uma estrada deserta. A paranoia provocada pelo medo de ser pego começa a consumi-lo conforme o desenrolar da viagem. Springsteen recorreu a uma improvável inspiração musical para a composição: Suicide, duo synth-pop pioneiro no uso minimalista de instrumentação eletrônica. A banda tem, nas palavras do artista no livro Deliver Me from Nowhere, uma obra “muito perigosa que falava com uma parte sua normalmente não atingida por música no geral”.
7. “Used Cars”
Apenas em 1982 Bruce Springsteen comprou seu primeiro carro zero: um Chevrolet Camaro Z28. “Até então, eu nunca havia gastado 10 mil dólares comigo mesmo”, lembra o músico em sua autobiografia. “Used Cars” remonta à sua infância para detalhar mais uma experiência envolvendo o pai, Douglas: a compra de um automóvel “usado novinho em folha”, correspondente à sua realidade até então. “Meu pai teve todo tipo de carro usado possível”, complementou em conversa com a plateia durante show em 2005. Neste caso, a reflexão típica da classe trabalhadora ao menos se conclui em uma perspectiva mais positiva — ou irônica? — com a promessa de que “quando meu número [na loteria] chegar, nunca mais irei dirigir um carro usado”.
8. “Open All Night”
A oitava faixa de Nebraska é a mais curta do tracklist (com 2 minutos e 53 segundos) e a única de todo o álbum a ter guitarra em vez de violão. Foi divulgada como segundo single, sucedendo “Atlantic City” no formato promocional. Este típico rock’n’roll à moda da década de 1950, parece leve em sua mensagem, pois a letra, repleta de referências automotivas, narra a viagem de um homem por toda a madrugada para reencontrar uma mulher na outra ponta do estado de Nova Jersey. Todavia, a mensagem fica clara mais ao fim: a maior parte das pessoas “comuns” apenas busca algo para se livrar do tédio de uma vida normal em uma cidade pacata, seja um passeio de carro ou uma playlist repleta de canções de rock. Vem de seu último verso, inclusive, a expressão “deliver me from nowhere”, responsável por batizar tanto o novo filme quanto o livro que o inspirou.
9. “My Father’s House”
Última composição a entrar em Nebraska e dona de talvez as melodias vocais mais marcantes do álbum, “My Father’s House” mergulha novamente nas lembranças da infância de Bruce Springsteen — e, mais uma vez, com foco em Douglas. Após sonhar estar perdido em uma floresta e ser salvo pelo pai, o narrador decide visitar seu progenitor buscando reaproximação, mas logo descobre que o familiar não mora mais naquele endereço. Durante um show, Springsteen chegou a contar que, mesmo depois da fama conquistada, frequentemente dirigia pela vizinhança onde cresceu. Seu psiquiatra explicou que o hábito sinalizava um interesse inconsciente de retornar para “consertar” situações erradas do passado. “Mas isso é impossível de se fazer”, completou o especialista.
10. “Reason to Believe”
Outro blues/rockabilly contido, “Reason to Believe” encerra Nebraska com uma mensagem que vai da desilusão ao otimismo. As quatro estrofes contam quatro histórias diferentes: desde a saga de uma mulher abandonada no altar à tentativa de um homem ressuscitar seu cachorro morto. Tudo bem sofrido, como a maior parte do álbum. Entretanto, os versos finais de cada trecho sempre repetem a mensagem: “ao fim de cada dia suado, as pessoas encontram algum motivo para acreditar [em algo]”, no sentido de preservar a esperança mesmo diante dos obstáculos. Seja pelo estilo do storytelling ou pelo senso de comunhão, talvez seja a única faixa que se enquadre na mencionada descrição preguiçosa de “folk music”. Rótulos à parte, um jeito sutilmente grandioso de encerrar um disco tão carregado.
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