Fã declarada da nossa música, aclamada cantora inglesa celebra retorno ao país para série de shows, um deles abrindo para Lenny Kravitz
Publicado em 19/11/2024, às 17h36 - Atualizado às 17h42
Com jeito doce e uma pontinha de timidez, Lianne La Havas diz, com toda a modéstia do mundo, que está “aprendendo” (não “learning”, “aprendendo” mesmo) a falar português. É a resposta dela a uma brincadeira: propôs-se que a intimidade dela com a língua seja testada ao longo da entrevista para a Rolling Stone Brasil. Nada sério, pois nem precisa. Estamos falando de uma artista que não só conhece muito bem a música brasileira como cantou, em nosso idioma, mais de uma vez, junto a ninguém menos que Milton Nascimento.
É o tipo de situação que talvez ajude a explicar por que o Brasil abraçou tanto a cantora e compositora, uma das mais aclamadas a surgir da Inglaterra nos últimos 15 anos. Assim como a obra de alguns dos maiores músicos nacionais, o trabalho de Lianne é difícil de ser rotulado, mas fácil de se apreciar. Tem soul (neo-soul?), R&B, jazz, folk e, claro, um tempero brasileiro que vem de sua forma de tocar violão e guitarra, claramente inspirada pelo jazz nacional, MPB e, indiretamente, bossa nova.
Tal conexão se traduz em mais uma visita ao país para shows, a terceira de sua carreira. Por aqui, a inglesa filha de pai grego e mãe jamaicana cumpre uma agenda de quatro apresentações, a primeira delas já realizada, no último domingo (10), durante a edição 2024 do festival Afropunk em Salvador. A segunda acontece no Circo Voador, Rio de Janeiro, na próxima quinta-feira (21). As duas últimas ocorrem em São Paulo, em contextos distintos: sábado (23), diante de milhares de pessoas no Allianz Parque, como atração de abertura de Lenny Kravitz; domingo (24), em contexto mais intimista, no Cine Joia. Ingressos estão à venda no site Eventim.
À Rolling Stone Brasil, a artista se diz “extremamente grata” pela oportunidade de realizar mais uma sequência de apresentações em território brasileiro, como em 2016 e 2023. Fãs devem esperar um repertório que passeia por seus três álbuns e até mesmo canções inéditas. Sobre participações especiais, desconversou, mas não é improvável esperar por algo que aconteceu em Salvador: uma nova colaboração com Liniker, que também servirá como atração de abertura para Kravitz no sábado (23). Ela reflete:
Estou empolgada para compartilhar minha música em diferentes espaços, conhecer o público e as pessoas brasileiras que já me ouvem, mas também, talvez, conquistar novos fãs ao tocar para a plateia do Lenny. Estou muito empolgada — talvez um pouco nervosa, mas acho que vai dar tudo certo.”
As viagens anteriores ocorreram em 2016 e 2023. Da primeira vez, abriu para o Coldplay em São Paulo (no mesmo Allianz Parque onde toca no sábado, 23) e no Rio de Janeiro (no estádio do Maracanã). Lianne diz que, naquela ocasião, se apaixonou pelo Brasil imediatamente — e hoje sente orgulho por ter conseguido se apresentar em espaços de tal porte tão cedo em sua carreira, aos 26 anos.
Já a segunda ocasião, no início do ano passado, envolve uma lenda urbana parcialmente confirmada pela inglesa. Tem quem diga que ela estava no Brasil de férias. Outras versões apontam que teria vindo ao país em busca de inspiração para compor novas músicas. Fato é que lhe ofereceram se apresentar no Clube Manouche, no Rio, e no Cine Joia, em São Paulo. De sopetão, as performances foram anunciadas ao público poucos dias antes de acontecerem — e a procura por ingressos foi tamanha que ela precisou marcar datas extras nas duas cidades. Já no palco, chegou a admitir que não pretendia aceitar o convite para realizar shows.
Ao ser informada sobre a chamada lenda urbana, Lianne deu risada e cravou: “é meio verdade, mas não completamente”. Ela estava no país para gravar uma participação em Milton + esperanza, álbum lançado em agosto último por Milton Nascimento em parceria com a contrabaixista de jazz americana Esperanza Spalding. A colaboração se deu na faixa “Saudade dos aviões da Panair (conversando no bar)”, também junto a Maria Gadú, Tim Bernardes e Lula Galvão.
[Risos] Isso é muito engraçado. É verdade que eu estava de férias. Também é verdade que eu estava buscando inspiração, porque isso sempre é verdade. Mas o motivo real foi que eu estava aqui para gravar com a Esperanza Spalding e o Milton Nascimento. E surgiu a oportunidade de fazer alguns shows apareceu. Não pude dizer ‘não’. Para mim, também foi uma lembrança incrível. Fico tão feliz por ter feito esses shows e pelas pessoas que conheci. Além disso, fazia sete anos desde a última vez no Brasil. Então eu queria garantir que poderia vir e ver todos. Então, sim, é meio verdade, mas não completamente.”
Sabe-se que a ligação com Milton Nascimento havia surgido antes do convite para participar do álbum. Tanto que, em junho de 2022, Lianne La Havas cantou ao vivo “Encontros e Despedidas” — com português impecável — junto ao ídolo durante show dele no Union Chapel, em Londres. Porém, a oportunidade de gravar uma canção em estúdio se provou ainda mais especial para a artista londrina, que encheu Bituca de elogios.
Foi inacreditável, muito mágico. Ainda não consigo acreditar que aconteceu. Acho que ele é um dos maiores artistas que já tivemos. Um dos maiores compositores, intérpretes, cantores e músicos. Pessoalmente, ele tem uma presença muito mágica. É de outro mundo. E achei muito profundo conversar com ele, estar ao lado dele, ouvir sua voz e cantar ao lado dele. Até mesmo gravar meus vocais com os vocais dele tocando nos meus fones de ouvido foi uma experiência inacreditável. E também trabalhar com a Esperanza, de quem sou uma grande fã. Eu a respeito muito. Foi uma grande honra, uma das melhores coisas que já fiz.”
Se Lianne está “aprendendo” a falar português, a experiência de gravar “Saudade dos aviões da Panair (conversando no bar)” certamente a ajudou no processo. Como na interpretação ao vivo de “Encontros e despedidas”, sua fluência no idioma é impressionante. Mesmo assim, ela garante não ter tido vida fácil.
Ouço muita música brasileira e letras em português. Então, para mim, o difícil foi ler a página com a letra e cantar ao mesmo tempo, porque eu sei como soa, mas ler é como realmente entender o significado. Demorou um pouco, mas me senti ainda mais conectada à cultura e ao país fazendo isso. Foi um pouco difícil, mas acho que passar tempo aqui torna as coisas um pouco mais fáceis. Acaba vindo naturalmente depois de um tempo.”
Milton Nascimento é, na verdade, apenas a pontinha do iceberg da relação que Lianne La Havas tem com a música brasileira. Inclusive, a forma como a artista conheceu o trabalho de Bituca mostra que, ao mesmo tempo, ela teve acesso a vários outros nomes lendários.
Descobri o Milton através de um álbum que encontrei, uma compilação de música brasileira organizada por David Byrne (Talking Heads) chamada Beleza Tropical. Desculpe, mas não me lembro onde consegui o álbum ou por que o peguei, mas eu coloquei para tocar e deixei fluir. Aí, certas músicas se destacaram para mim. E foi assim que descobri Milton nesse álbum.”
A compilação mencionada por Lianne foi lançada em 1989 e também traz canções de Jorge Ben Jor (à época, Jorge Ben), Gilberto Gil, Caetano Veloso, Maria Bethânia em parceria com Gal Costa, Chico Buarque, Lô Borges e Nazaré Pereira. Ao ser convidada a citar outros artistas brasileiros que admira, ela reforça Caetano e destaca outros nomes descobertos de outras maneiras: Elza Soares, Edu Lobo, Djavan, Bala Desejo e Liniker. Também pontua:
Acho que todos têm vozes e composições incríveis e apenas o espírito do país pode ser ouvido em todos esses diferentes gêneros, mas eles são unidos por esse espírito e pela linguagem, a poesia.”
A influência da música brasileira é tamanha que pode ser sentida em suas composições. A reportagem exemplifica durante o bate-papo ao citar “Seven Hours”, faixa presente em seu álbum homônimo de 2020, e Lianne agradece, também fazendo uma revelação:
Para mim, é um elogio que você consiga ouvir isso, porque eu literalmente estava ouvindo Milton naquele dia quando escrevi essa música, a música ‘Tudo que você podia ser’ (Clube da Esquina). Realmente queria capturar essa essência que amo na música brasileira. Amo o violão também. É um grande elogio que você consiga ouvir isso nessa música, em particular.”
Nos últimos anos, Lianne La Havas tem feito shows sozinha. De verdade: sem banda de apoio só ela no palco, cantando e tocando guitarra. Vez ou outra conta com algum convidado em uma ou duas canções, mas nada além. E nada de usar bases pré-gravadas, loops e afins: é tudo 100% ao vivo.
Parece uma decisão arriscada, ainda mais considerando que algumas de suas apresentações são realizadas em grandes espaços, seja como parte de um festival ou abrindo para algum artista popular. Mas é só ouvir um pouco que tudo faz sentido. Ela explica suas motivações, que se estendem para o trabalho em estúdio:
Tocar ao vivo é diferente de gravar, mas tocar sozinha me permite realmente refinar a música, por não ter mais nada ali. Se soa bem com apenas um instrumento, fico empolgada em pensar como posso interpretar isso em uma gravação. Isso me permite voltar ao elemento bruto do que a música trata e o seu significado. E aí posso pensar em como transmitir o significado com som. Quero apenas me conectar com as palavras, a melodia e o ritmo.”
Questionada se bate alguma insegurança por apresentar-se sozinha diante de espaços tão grandes, Lianne admite sentir-se “muito exposta e vulnerável às vezes”. Todavia, essa mesma sensação pode ocorrer quando está com uma banda, visto que tal fragilidade está relacionada, também, às canções.
Pode ser desafiador se eu me sentir emocionalmente vulnerável, mas é muito fortalecedor de qualquer forma. Amo fazer isso, porque acho que é muito impactante quando você tem uma grande plateia ou um espaço grande e só tem você. Acho muito marcante e empoderador. Eu gosto, só preciso me certificar de que emocionalmente, naquele dia, estou bem.”
La Havas confirma que tem composto material para seu próximo álbum, ainda sem título ou prazo para lançamento, mas projetado para 2025. Ela, inclusive, declara de forma enigmática que no próximo ano pretende seguir seus “impulsos artísticos, talvez de formas que não sejam música”. Seja o que for, temos praticamente certeza de que será ótimo.
*Lianne La Havas se apresenta no Circo Voador, Rio de Janeiro, na próxima quinta-feira (21). Depois, segue para São Paulo: sábado (23), realiza show no Allianz Parque, como atração de abertura de Lenny Kravitz; domingo (24), em contexto mais intimista, toca no Cine Joia. Ingressos estão à venda no site Eventim.
Igor Miranda é jornalista formado pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e pós-graduado em Jornalismo Digital. Desde 2007 escreve sobre música, com foco em rock e heavy metal. Colaborador da Rolling Stone Brasil desde 2022, mantém o site próprio IgorMiranda.com.br. Também trabalhou para veículos como Whiplash.Net, portal Cifras, site/canal Ei Nerd e revista Guitarload, entre outros. Instagram, X/Twitter, Facebook, Threads, Bluesky, YouTube: @igormirandasite.