A história de “Born in the U.S.A.”, hit de Bruce Springsteen
Uma das músicas mais famosas de The Boss já foi usada em meio a campanha de reeleição de presidente americano — que claramente não compreendeu a crítica da letra
Pedro Hollanda
“Born in the U.S.A.” é uma das músicas mais emblemáticas da carreira de Bruce Springsteen e da década de 1980. Tornou-se um hino para ufanistas e recebeu até menção do presidente americano Ronald Reagan, à época disputando reeleição. Todavia, a canção representa o oposto desse nacionalismo.
Em 1981, Springsteen contemplava fazer sua estreia no cinema. Ele foi abordado pelo cineasta Paul Schrader – roteirista de Taxi Driver (1976) – sobre a possibilidade de interpretar o protagonista de seu novo projeto, chamado Born in the U.S.A. A ideia de atuar acabou não vingando.
O roteiro contava a história de dois irmãos músicos na cidade de Cleveland. Schrader tirou o nome de uma música da banda punk americana The Generators, que era baseada na cidade. A frase “Born in the U.S.A.” grudou na cabeça de Springsteen.

A criação de “Born in the U.S.A.”
Na autobiografia Born to Run, ele descreveu o momento no qual começou a brincar com a ideia de uma canção de mesmo nome.
“Alguns livros, algumas palhetas de guitarra espalhadas e um suporte de gaita se digladiavam com as migalhas de um lanche, roubando espaço do meu bloco de notas. Um abajur antigo iluminava o roteiro que estava em cima da mesa e que havia sido enviado por Paul Schrader, roteirista que havia escrito Taxi Driver (1976) e Vivendo na Corda Bamba (1978), dois dos meus filmes favoritos dos anos 70. Toquei alguns acordes no meu violão Gibson J200 Sunburst, percorri as folhas do meu bloco de notas, parei numa página e murmurei o verso de uma canção em que estava trabalhando sobre os veteranos da Guerra do Vietnã que voltavam para casa. Dei uma olhada na primeira página do roteiro ainda por ler e cantei o título: ‘Born in the U.S.A’.”
Ao longo do tempo, Bruce havia escrito uma letra sobre um veterano da Guerra do Vietnã alienado da sociedade após retornar do serviço militar. O tema combinava com as canções mais sombrias compostas nessa época, e uma demo da faixa fez parte das sessões caseiras que renderam o álbum Nebraska (1982).
Apesar dessa origem, “Born in the U.S.A.” se diferenciava das outras criações nesse período por uma simples razão: a versão com a banda completa soava melhor. Springsteen escreveu na autobiografia:
“No estúdio Hit Factory, observei que tinha em mãos uma letra, um grande título, dois acordes e um riff de sintetizador, mas não tinha um arranjo. Era o nosso segundo take. Um turbilhão de som vindo do amplificador Marshall soou nos meus fones. Comecei a cantar. A banda me seguiu de perto num arranjo improvisado e, na bateria, Max Weinberg fez uma de suas melhores atuações em estúdio. Quatro minutos e 39 segundos depois, ‘Born in the U.S.A.’, a música, ficava pronta. Soava como se tivéssemos conseguido prender um relâmpago dentro de uma garrafa.”
Gravada em abril de 1982, “Born in the U.S.A.” só foi lançada como single em outubro de 1984, o terceiro do álbum de mesmo nome, que já era um sucesso de vendas. A canção chegou ao Top 10 americano e se tornou uma das mais famosas da década. O disco, por sua vez, teria 30 milhões de cópias comercializadas globalmente ao longo dos anos.
Quanto ao projeto de Paul Schrader que inspirou a canção, o filme eventualmente foi lançado em 1987 sob o título Light of Day (Luz da Fama em português). O papel originalmente oferecido a Springsteen ficou com Michael J. Fox, e o longa também contou com a estreia de Joan Jett no cinema. Bruce compôs o tema musical do longa, como um reconhecimento pela inspiração.
Uso político — e o que diz Bruce Springsteen
Graças à fama de Bruce Springsteen e o uso de símbolos patrióticos no álbum de mesmo nome, “Born in the U.S.A.” logo foi cooptada pelo Partido Republicano dos Estados Unidos por sua sonoridade otimista — mesmo com a letra extremamente crítica às políticas do país com relação à economia e o tratamento de veteranos. Durante um discurso em Nova Jersey, no auge do sucesso da música, o então presidente e candidato à reeleição Ronald Reagan declarou (via site Igor Miranda):
“O futuro da América reside nos milhares de sonhos que existem em vossos corações; reside na mensagem de esperança das canções que nossos jovens admiram; nas canções de Bruce Springsteen, filho de Nova Jersey.”
A imprensa americana o criticou por não se dar ao trabalho de examinar o conteúdo da canção. Seu adversário na eleição, Walter Mondale, até ridicularizou o presidente pela gafe em evento de campanha. Ele disse (via Associated Press):
“Ele pode ter nascido para correr (Born to Run, em inglês, nome de outra música célebre de Bruce), mas ele não nasceu ontem.”
Por sua vez, Springsteen respondeu aos comentários de Reagan — que acabou reeleito — durante um show na cidade de Pittsburgh dia 21 de setembro de 1984. O cantor introduziu uma versão de “Johnny 99”, do álbum Nebraska (1982), com um discurso questionando se o presidente sequer conhece sua obra de verdade.
“O presidente mencionou meu nome outro dia, e eu fiquei pensando qual seria o álbum favorito dele. Acho que não era o álbum Nebraska. Acho que ele não ouviu essa música aqui.”
Ao emendar com “Johnny 99”, Springsteen dava o seu recado. Na letra da canção, ele narra a trajetória de um operário endividado após demissão de uma fábrica com atividades encerradas em Nova Jersey. O homem fica bêbado, atira em um balconista noturno e acaba preso, mas fica insatisfeito com a punição de 99 anos de cadeia: ele queria, na verdade, pena de morte. Como boa parte de Nebraska, soa como uma crítica ao “sonho americano”.
A letra da música
“Nasci sem nada em uma cidade pequena
Comecei a apanhar da vida desde pequeno
Você acaba parecendo com um cachorro que apanhou demais
Até que passa metade da sua vida apenas limpando a sua barra
Nascido nos Estados Unidos
Eu nasci nos Estados Unidos
Eu nasci nos Estados Unidos
Nascido nos Estados Unidos
Me meti numa pequena confusão em minha cidade Natal
Então eles colocaram um fuzil na minha mão
Me enviaram para uma terra estrangeira
Para ir e matar o homem amarelo
Nascido nos Estados Unidos
Eu nasci nos Estados Unidos
Eu nasci nos Estados Unidos
Nascido nos Estados Unidos
Volto para casa, para a refinaria
O homem que contrata diz: Filho, se dependesse de mim
Procurei o meu supervisor do Departamento dos Veteranos
Ele disse: Filho, será que você não entende?
Eu tinha um irmão em Khe Sahn
Combatendo o Viet Cong
Eles continuam lá, ele morreu
Ele tinha uma mulher que amava em Saigon
Agora, eu tenho uma foto dele nos braços dela
Debaixo da sombra da prisão
Ou perto das chamas de gás da refinaria
Estou há dez anos sem rumo
Nada para fazer, nenhum lugar para ir
Nascido nos Estados Unidos
Eu nasci nos Estados Unidos
Nascido nos Estados Unidos
Agora, eu sou um cara das antigas nos Estados Unidos
Nascido nos Estados Unidos
Nascido nos Estados Unidos
Nascido nos Estados Unidos
Agora, eu sou um cara conhecido dos Estados Unidos”
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