Bastidores da composição foram detalhados em "A vida até parece uma festa", livro com a história completa dos Titãs; leia mais
Com a turnê Titãs Encontro: Todos ao Mesmo Tempo Agoraa todo vapor, fãs têm relembrado sucessos de todas as eras dos Titãs. Um destes hits, sem dúvidas, é "Cabeça Dinossauro". A faixa, parte do disco que resgatou o grupo de uma fase impular nos anos 1980, acabou se tornando símbolo de uma era - o que nem todo mundo sabe é que ela surgiu durante uma ressaca de Paulo Miklos, no ônibus de turnê da banda.
A história é resgatada pelos jornalistas Hérica Marmo e Luiz André Alzer na biografia A vida até parece uma festa, livro lançado em 2022, que resgata os 40 anos dos Titãs narrando toda a história da banda que moldou muito do rock nacional. Com páginas lotadas de histórias até então desconhecidas sobre o grupo paulista, a obra conta com fotos exclusivas e com tramas diferentes das contadas pela biografia lançada nos 20 anos do grupo.
A Rolling Stone Brasil teve acesso a um dos trechos do livro, um capítulo que conta como surgiu o repertório de Cabeça Dinossauro.
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Maior sucesso dos Titãs e um dos mais relevantes discos do rock nacional, Cabeça Dinossauro conta com hits como “Bichos escrotos”, “Família”, “Homem Primata”, “Igreja”, “Polícia” e “AA UU”. E é no trecho abaixo que Marmo e Alzer contam a história de como surgiram tais sucessos, bem como os desentendimentos e os anseios que cercaram a criação do terceiro álbum de estúdio dos Titãs.
No trecho exclusivo de “A vida até parece uma festa”, os jornalistas também narram como o produtor e ex-Mutante Liminha surgiu nos bastidores do álbum, apesar dos conflitos entre ele e os Titãs— conflitos estes que já não existem mais, principalmente considerando que será o próprio Liminha quem vai assumir as guitarras de Marcelo Fromer, falecido em 2001, na turnê dos Titãs em 2023.
Confira o trecho exclusivo de A vida até parece uma festa disponibilizado à Rolling Stone Brasil:
"O ônibus estava apagado, quase todos os titãs dormiam, cansados da maratona de shows pelo interior de São Paulo. Sentado ao fundo, Paulo Miklos dedilhava no violão uma melodia qualquer para tentar espantar uma ressaca que o impedia de pregar os olhos. Acabou acordando Branco Mello, que, sentado no banco da frente, despertou gritando:
— Cabeça dinossauro!
Paulo gostou e logo os dois já estavam encaixando a frase na melodia.
— Barriga de elefante — arriscou Paulo.
— Não, meu! Vamos ficar na pré-história — rechaçou Branco, traduzindo o novo verso para o universo da sua viagem musical:
— Pança de mamute.
— Cabeça, cabeça, cabeça dinossauro! Pança de mamute! Pança de mamute!
Repetindo sem parar as duas frases, a dupla acordou o restante do grupo. Eis que surge Arnaldo Antunes da parte da frente do ônibus:
— Espírito de porco! Espírito de porco!
Em questão de segundos todo o ônibus estava cantando e gargalhando com a mais nova composição dos Titãs que, imaginavam eles, não teria futuro além daquela estrada.
Durante a turnê de Televisão, o grupo compunha junto o tempo todo. Os oito aproveitavam as viagens de ônibus ou as horas ociosas nos hotéis em que se hospedavam para tocar, inventar novas letras e melodias, testar levadas, enfim, criar. Tudo muito mais na intuição do que na técnica. Como o cachê era modesto, a banda dividia quartos, formando quatro duplas, que normalmente eram as mesmas: Tony e Marcelo (os inseparáveis Curingas, como foram batizados pelos demais); Arnaldo e Branco (os Monstrinhos Crack, numa alusão a um biscoito famoso na época, que vinha com uma marca de mordida; tão estranho quanto o visual da dupla); Britto e Paulo; e Nando e Charles. O trânsito nos corredores dos hotéis, porém, era constante, impulsionado principalmente pelo desejo de compor sem parar.
A turma passava noites acordada, ora em pequenos grupos, ora os oito espremidos num mesmo quarto. “Homem primata”, por exemplo, nasceu no Copacabana Sol Hotel. Marcelo, que tinha criado o refrão “Homem primata, capitalismo selvagem” com Ciro Pessoa na época dos Titãs do Iê-Iê, chamou Britto e Nando para desenvolverem a ideia. Quando sentou na cama, com o violão no colo, o trio tinha em mente fazer um ska com inspiração na balada “A message to Rudy”, do grupo inglês The Specials. Até que a canção se dirigiu mais para o rock, o que combinou com a letra que contesta com veemência os males da modernização do homem (“Eu aprendi/ A vida é um jogo/ Cada um por si/ E Deus contra todos/ Você vai morrer/ E não vai pro céu/ É bom aprender/ A vida é cruel”). Ídolo dos três compositores, Bob Marley ainda seria homenageado com “Monkey man” e “Concret jungle”, citadas na estrofe em inglês.
Usar como influência nas composições o som que os músicos ouviam nas suas vitrolas, aliás, era um expediente comum às bandas daquela geração. Os grupos, a maioria formada por gente de classe média e alta, representavam uma espécie de antena, que captava os movimentos que aconteciam nos Estados Unidos e na Europa e os traduzia para a linguagem brasileira. Uns bebiam sempre na mesma fonte, outros variavam mais. Os da primeira turma não escapavam das comparações. Como os Paralamas do Sucesso, que no começo da carreira eram chamados de The Police brasileiro, ou o Ira!, com relação à banda inglesa The Jam. A verdade é que quem conseguia tirar algo de novo sobrevivia. As meras cópias tendiam ao fracasso. Os Titãs, especialmente na virada de 1985 para 86, aprenderam a ter uma relação antropofágica com os seus ídolos: absorviam o máximo que podiam e apresentavam para o público o resultado de oito interpretações distintas.
O furor criativo dos Titãs e a vontade de compor em grupo não diminuíam quando estavam em São Paulo, nos intervalos das turnês. A cada brecha na agenda, eles se reuniam na casa de um e de outro para compor. Marcelo aproveitava que a mulher, Martha, passava o dia trabalhando na Kaos Brasilis para ficar horas e horas tocando violão em busca de novos sons. Britto era um que frequentava regularmente a residência dos Fromer e costumava sair de lá com alguma novidade, como já tinha acontecido com “Massacre”.
Numa tarde produtiva, os dois decidiram relaxar na cozinha depois de tanto quebrar a cabeça em músicas mais elaboradas. Nesse momento de descontração, embalados por uma viagem de cocaína, nasceu “AA UU”, recebida com euforia pelos autores. Quando Martha chegou em casa à noite ainda encontrou a dupla cantando alto a nova letra (“Estou ficando louco de tanto pensar/ Estou ficando rouco de tanto gritar/ AA UU”), fazendo com que a vizinhança ouvisse em primeira mão esse que seria o próximo sucesso dos Titãs O clima do terceiro disco poderia ser mais festivo por conta dessas composições, que até entraram no LP, se a reunião para discutir repertório na casa de Branco não estivesse mais perto do episódio da prisão de Arnaldo do que das farras criativas nas excursões do Televisão. Nessa época, Branco e a mulher, Paula Mattoli, moravam num amplo apartamento no Conjunto Nacional que virou ponto de encontro dos Titãs.
Naquela tarde de janeiro de 1986, a banda já tinha decidido que o novo disco seria bem diferente dos que eles já haviam gravado. O processo contra Tony e Arnaldo, que absorveram como uma violência contra todo o grupo, de certa forma influenciou na agressividade das composições feitas depois do episódio, mas a vontade de alcançar uma unidade já existia pela forma como Televisão foi recebido pela crítica e pelo público. A proposta de cada faixa representar uma emissora de tv, no ponto de vista da banda, não foi bem compreendida e a imagem do grupo, idem. O que eram aqueles oito caras do radinho de pilha? New wave? Brega? Alternativos? O terceiro disco tinha o desafio de dar essa resposta de uma vez por todas. E os Titãs apostavam que o caminho era levar para o estúdio a pegada que mostravam no palco.
À medida que o violão rodava de mão em mão na casa de Branco, iam surgindo peças dessa almejada unidade. Charles fazia sua estreia como compositor com uma música que mostrava claramente como o baterista tinha (ou não tinha) digerido a prisão de Arnaldo. “Estado violência” (num primeiro momento batizada de “A lei que eu não queria”) era uma letra nova para uma canção antiga. A melodia era a mesma de “O homem palestino”, dos tempos do Ira!, que nunca foi gravada.
Sinto no seu corpo
O odor da carne
fria
Do homem que
morre Gritando e
não queria
Caminhavam pelas
ruas Arma e soldado
Na mente a ideia
fixa Morte pelo
Estado
Homem
palestino jovem
ou cristão Não
havia escolha O
futuro da nação
(“Homem palestino”)
Sinto no meu
corpo A dor que
angustia A lei ao
meu redor
A lei que eu não queria
Estado violência
Estado hipocrisia
A lei que não é minha
A lei que eu não queria
[...]
Homem em silêncio
Homem na prisão
Homem no escuro
Futuro da nação
(Trecho de “Estado violência”)
Tony, pivô da lamentável prisão, também tinha sua resposta: “Polícia”, letra e música compostas com raiva no apartamento da rua Pamplona. Inspirado em “Police and thieves” — dos jamaicanos Lee Perry e Junior Murvin, gravada pelos ingleses do The Clash —, mas genuinamente um protesto indignado, o futuro hit precisou de muito lobby do seu autor para entrar no repertório do álbum. Além de não ter causado tanta empatia, contava contra a música ela ter sido composta por um único integrante. Esse equilíbrio de créditos sempre teve peso nas discussões de pré-produção dos Titãs.
E já que era para entrar uma música de apenas um autor, Paulo, em quem Bellotto havia pensado para interpretar “Polícia”, acabou simpatizando mais com “Estado violência”, de Charles. Foi uma outra divisão também problemática, a de músicas por cantores, que salvou a canção-protesto do guitarrista. Britto enxergou uma possibilidade de hit ao ver a inteligência com que o assunto polêmico era tratado pelo colega (“Polícia para quem precisa/Polícia para quem precisa de polícia”) e escolheu “Polícia” como a terceira faixa que cantaria no disco — as outras seriam “AA UU” e “Homem primata”. Juntos, o guitarrista e o tecladista chegaram a um arranjo que finalmente convenceu o grupo todo.
A produção em massa de seus compositores enchia os Titãs de opções numa decisão de repertório. Mas também causava um problema para um de seus integrantes. Embora a maioria não percebesse, Nando estava cada vez mais distante do processo de produção, que quase sempre acontecia em conjunto. Ele assistia de fora, com um misto de admiração e inveja, ao desenvolvimento dos outros titãs. Mas, tímido demais, desenvolveu um bloqueio que o impedia de participar do ambiente livre e passível de erros e acertos em que nasciam as parcerias. Não fosse o observador Marcelo, que notou que o amigo não tinha apresentado uma canção sequer para o novo disco (“Bichos escrotos” e “Homem primata” não contavam, porque tinham sido feitas num outro contexto e época), Nando permaneceria vendo à distância a evolução do seu próprio grupo e, pior, sem acreditar que tinha capacidade para se integrar.
— Não tô entendendo, Nando! Você escrevia muito melhor, fazia poemas, cartas... e eu nunca fazia nada. Agora eu faço música e você não faz porra nenhuma. Que isso, meu?! Se liga! — cobrou o guitarrista.
O sacode surtiu efeito. Nando foi para a casa dos pais, no Butantã, e com o violão de náilon da mãe criou “Igreja”. A inspiração partiu de uma declaração de Roberto Carlos a favor da censura sofrida pelo filme Je vous salue, Marie, de Jean-Luc Godard. O baixista juntou a indignação com a posição do Rei à sua própria relação dúbia com religião e em apenas uma hora compôs a canção. Tudo às pressas porque àquela altura o repertório do novo álbum estava praticamente fechado.
“Igreja” abriu uma polêmica inédita no grupo. A música dividiu a banda — o que era comum pela quantidade de compositores em comparação ao número de canções que entram num disco —, mas pela primeira e única vez na história dos Titãs a razão da resistência era uma questão moral e não musical. Os versos “Eu não gosto de padre/ Eu não gosto de madre/ Eu não gosto de frei [...] Eu não gosto do papa/ Eu não creio na graça/ Do milagre de Deus” foram recebidos como traços de genialidade pela maioria, mas Paulo e Arnaldo ficaram receosos.
— Esse é um território em que não me sinto à vontade. Me incomoda tanto cantar isso quanto cantar “Eu amo Cristo” — defendeu Arnaldo, que foi voto vencido, mas não deu o braço a torcer. Durante as turnês de Cabeça Dinossauro e de Jesus não tem dentes no país dos banguelas, ele saía do palco quando o grupo tocava “Eu não entro na igreja/ Não tenho religião”. Os primeiros acordes de “Igreja” eram a deixa para o cantor se retirar no seu protesto solitário.
A música de Nando caiu com uma luva naquele repertório de canções contestatórias e fechou um bloco conceitual — formado por um mero acaso — que tinha como alvo as instituições, bem ao estilo punk. Cabiam nesse pacote “Polícia”, “Estado violência” e “Família”, a mais leve delas.
A demo do terceiro disco, gravada em apenas dois dias, em março de 1986, deixou o estúdio Mosh, em Pinheiros, para ganhar fãs onde fosse executada. Já com a maioria dos arranjos que entrariam no LP — e na história do rock brasileiro —, a fita encheu de expectativas André Midani, presidente da Warner, que estava com um pé atrás com a banda por causa das vendas decepcionantes de Televisão. Quem também gostou do repertório foi o ex-mutante Liminha, que ouvira a demo ainda no Mosh, quando gravou uma participação no disco Pânico em SP, dos Inocentes, que Branco Mello e Peninha produziram no estúdio na mesma época. Diretor artístico da gravadora, produtor em ascensão, Liminha naquele período era uma espécie de desafeto do grupo. O motivo eram declarações que Britto e Branco deram à imprensa. “Os discos do Liminha são todos iguais”, detonaram na Folha de S.Paulo, referindo-se a LPs do Kid Abelha e Lulu Santos, para citar alguns que o produtor tinha no seu currículo até então.
Porém, naquele momento, os Titãs não só não olhavam mais torto para Liminha como chegaram à conclusão de que ele era o nome certo para o disco que planejavam gravar. Os trabalhos que havia produzido podiam até ser pop e parecidos, mas todos tinham uma captação de som impecável, e era isso que eles queriam para o terceiro LP. Precisavam, no entanto, acabar com o mal-estar que existia entre as duas partes. E com a cara e a coragem, os Titãs — Branco e Britto à frente — procuraram Liminha na sede paulista da weA e fizeram o convite.
— Vocês são engraçados. Ficam falando mal de mim na imprensa e agora querem trabalhar comigo — respondeu o produtor, valorizando a situação, mas no fundo decidido a aceitar.
Liminha tinha muita curiosidade em relação aos Titãs. Graças a seu cargo na weA, acompanhava-os de perto e enxergava naqueles oito paulistas “uma usina de tudo o que se possa imaginar”. Decidiu então pagar para ver como funcionava essa fábrica de criação.
Arnolpho Lima Filho se acostumou desde cedo a estar no olho do furacão. Aos dezesseis anos, no grupo Baobás, participou do nascimento do Tropicalismo acompanhando Caetano Veloso, em 1967, na histórica gravação de Alegria, alegria. Dois anos depois, Liminha passaria de fã a baixista dos Mutantes, tocando com Rita Lee, Sérgio Dias e Arnaldo Baptista. Ficou na banda até 1974, quando começou a trabalhar como freelancer em produções musicais. Foi contratado pela weA em 1976, como assistente de produção. Sua estreia como produtor se deu no ano seguinte, com o LP As Frenéticas, que ganhou disco de ouro. Em sociedade com Gilberto Gil, André Midani e os técnicos Ricardo Garcia e Vitor Farias, criou, em 1984, o estúdio Nas Nuvens, que ao longo dos anos foi se tornando lendário graças à quantidade de discos de sucessos que saíram de lá. Cabeça Dinossauro entraria nessa lista."
*Trecho extraído do livro "A vida até parece uma festa" lançado pela Globo Livros e liberado para a Rolling Stone Brasil, mediante crédito obrigatório. Não pode ser republicado!