Com repertório que passeia por clássicos do ex-casal, do grupo Novos Baianos e de suas inspirações musicais, Baby e Pepeu animam o público e mostram intimidade no palco
A Concha Acústica de Salvador não é qualquer palco. Ela é quase uma entidade, a quem se convém pedir licença para pisar, cantar, e devotar a deusa música. Um ser vivo em forma de anfiteatro grego no meio da Roma Negra, que traz na bagagem, desde 1959, alguns shows mais icônicos da história da Bahia. Entre eles, claro, muitos dos lendários Novos Baianos.
Foi aí que Pepeu Gomes, talentoso soteropolitano, e Baby do Brasil, a enteada fluminense que foi adotada por Salvador aos 17 anos, decidiram dar o pontapé inicial da sua primeira turnê juntos em mais de 20 anos. Pouco antes de começar, uma chuva de inverno despencou, atrasando os visitantes e o show. Dava para sentir a ansiedade no ar úmido da noite de sábado, 23 de julho.
Com 30 minutos de atraso a banda se posiciona, anuncia a dupla, a Concha vibra, e passam mais uns dois ou três minutos enrolando até que Baby e Pepeusurgem, caminham até o centro do palco, espalmam as duas mãos e dizem alguma coisa um ao outro.
Agora, com 6 filhos criados e 34 anos depois do divórcio, começam a soar os primeiros acordes de "Masculino e Feminino" (1983), numa versão mais suingada, ao estilo da Bahia. Está valendo a tour 140 Graus, que representa a soma da idade dos dois músicos.
Baby, sendo Baby, aparece multicolorida, com bota dourada, calça legging roxa, assim como as luvas e a boina imensa, recoberta por umas fitas tipo as do Senhor do Bonfim, só que brilhantes. Veste um corpete arrastão, saia de tule verde e cabelo azul e rosa que se estica até o meio das costas.
Pepeu, sendo Pepeu, está todo de preto à moda roqueiro setentão, com os cabelos na altura dos ombros, bem pretos, e um crucifixo metálico no peito. Cada um no seu pedaço do palco não poderia ser mais diferente do outro e, no entanto, têm uma siergia que só a música é capaz de explicar.
Emendam "Paz e Amor" (1981), e Baby já está mais à vontade. Tira o microfone do pedestal, arranca o tule da saia colorida e Pepeu está visivelmente encantado com os solos que saem da sua guitarra. Em seguida vem "Um Raio Laser" (1982) e a banda mostra sintonia, nos metais, na grande fila de atabaques, tamborês e xiquerês da percussão, baixo e guitarras – no plural.
"É um prazer estar aqui, vocês não têm ideia. É onde tudo começou, eu nasci aqui atrás", diz Pepeu, emocionado, e Baby completa: "Cheguei na Bahia não tinha dinheiro. Vim escondida de papai e mamãe, e graças a Deus eles entenderam depois", lembra. Promete que o restante do show vai rolar "como se fosse um baita laboratório ao vivo e a cores pra vocês".
Então chega a hora de "Sem Pecado e Sem Juízo" (1985), um clássico do par, que revela um momento de cumplicidade. Ele conduz a letra com o público e ela para ao lado dele para fazer umas vocalizações enquanto olha para o companheiro de estrada e sorri. Baby cantarola a versão em inglês da música e joga para o público, que não desaponta.
"Deusa do amor" (1983) vem em uma versão salseada e, na sequência, duas canções são acompanhadas pela plateia palavra por palavra, como em um grande karaokê: "Telúrica" (1981) e "Mil e Uma Noites de Amor" (1985). E então se inicia o momento "banquinho e violão" do show – ou melhor, a inescapável guitarra, mesmo que domada, porque ali está Pepeu Gomes, afinal.
"Acabou Chorare", que dá nome a um dos álbuns mais importantes da música brasileira, de 1972, abre a sessão, enquanto são projetadas imagens dos Novos Baianos no telão ao fundo. Baby e Pepeu dedicam a canção ao amigo de bando, Moraes Moreira, morto em 2020.
O momento banquinho ainda tem "Menino do Rio" (1979), em que Baby emplaca um "Jesus Forever tatuado no braço" em vez do dragão da letra. Eles comentam sobre suas inspirações musicais. Falam em Tom Zé, Dorival Caymmi e outros baianos, a que alguém na plateia responde com um "Raul!". Pepeu dedilha de improviso "Maluco Beleza", Baby ensaia cantarolar e o público leva a capella.
Daí só podia dar em "Samba da Minha Terra" (1961), de Caymmi, que também foi gravada pelos Novos Baianos e encerra de vez o momento intimista com Baby sambando, claro, em uma roupagem mais samba-rock. Ainda na sessão de homenagens às suas referências, cantam "Todo Amor ao Jimi" (1980), em honra a Jimi Hendrix.
Com "Tudo Blue" (1978) voltam para a lista das essenciais, para desembocar em "A Menina Dança" (1972), um dos pontos altos do show que faz esquecer as cinco décadas que separam a jovem de voz suave da potência multicolorida no palco. Nesse meio tempo, a voz de Baby encorpou, mas não perdeu um fiapo da sua potência, daquele arranhado audacioso à Elza Soares.
Em "Planeta Vênus" (1982) Pepeu se vira para a banda e a rege como um maestro e, já na reta final, vem "Seus Olhos" (1982) e "Eu Também Quero Beijar" (1981), quando Baby tira a bota de salto para poder pular com mais tranquilidade. A flor do desejo e do maracujá une as gerações mais velhas e os trintões, que a conheceram pela voz de Toni Garrido, em 1999, no álbum do Cidade Negra.
Aí o fim do show fica confuso – animação de estreia, talvez. Voltam para "Masculino e Feminino", que abriu o show, e ensaiam a despedida de praxe antes do bis, interrompida por Baby. "Em vez de a gente fazer tudo isso, vamos voltar logo? Assim dá tempo de fazer mais coisa, tô cheia de ideia", promete.
Mas aí, de novo, repetem "Mil e Uma Noites de Amor", que o público canta junto meio sem entender o bis literal, pensando em tantas músicas que tinham ficado de fora do repertório da noite. Chega a hora de encerrar mesmo ao som de "Curumim Chama Cunhatã Que Vou Contar" (1981) – e não sobra uma só pessoa parada. Pepeu sorri de orelha a orelha. Baby estende o tule verde no palco e se deita sobre ele para simular a mata. Já está em casa, e, depois de tanto tempo, a Concha Acústica abre os braços para a dupla.
Pepeu Gomes fala com exclusividade à Rolling Stone logo após a estreia em Salvador
Rolling Stone Brasil: Como está sendo começar a turnê por Salvador?
Pepeu Gomes: Está sendo maravilhoso porque nós escolhemos o lugar onde nós começamos tudo, nossa vida artística, os Novos Baianos, o primeiro trio elétrico, o primeiro bloco, meu primeiro show foi no [Teatro] Castro Alves aos 17 anos, com Gil e Caetano. A importância de ser na Bahia foi fundamental pra gente começar.
Rolling Stone Brasil: A Concha, em especial, o que ela significa pra você?
Pepeu Gomes: Ela significa tudo pra mim, eu morava aqui atrás, no [bairro] Garcia. Nasci aqui do lado e foi muito importante porque nós inauguramos a Concha e depois reinauguramos com os Novos Baianos. Então ela é de uma importância muito grande na nossa cultura, dentro da nossa cabeça, do nosso trabalho e começar uma turnê grande por aqui está sendo fantástico.
Rolling Stone Brasil: Você estava ali numa função de maestro, tentando ajustar os detalhes que ainda não estão azeitados porque, obviamente, é começo de turnê. Como avalia a estreia?
Pepeu Gomes: Aos poucos a gente vai corrigindo, porque o show ainda está pegando o jeito, tem 20 anos que a gente não toca junto. A banda é muito coesa, muito firme, muito profissionais, e tenho certeza de que no terceiro ou quarto show a gente já vai estar afinado.
Rolling Stone Brasil: Como está sendo tocar com a Baby de novo em turnê?
Pepeu Gomes: Está sendo maravilhoso o reencontro musical da gente, a família, os filhos todos grandes, todos músicos, está sendo só alegria.
Rolling Stone Brasil: E os fãs podem esperar novos frutos dessa turnê que começou hoje?
Pepeu Gomes: Com certeza, a gente já está pensando em fazer um disco inédito ano que vem, já começamos a fazer as músicas, devagarzinho a gente chega lá.