CRÍTICA

Com passos largos e gêneros inéditos, Baco Exu do Blues faz arder no íntimo

“Hasos”, novo disco do rapper, joga sal na ferida e guia a Facção Carinhosa por uma sessão de terapia dolorosa, com lirismo literário e narrativa poética construída tijolo a tijolo

Pamela Malva (@pamelamalva)

Baco Exu do Blues (Foto: Roncca)
Baco Exu do Blues (Foto: Roncca)

Quando Baco Exu do Blues anunciou o seu quarto disco de estúdio, a expectativa tomou conta e construiu aqui dentro uma vontade de continuação. O EP Fetiche, afinal, havia deixado um gostinho de quero mais na boca, com 20 minutos (insuficientes para os fãs) de faixas sensuais e aveludadas, para ouvir com uma taça de vinho nas mãos.

Após um anúncio de desfecho, de abandono da fase que pingava luxúria, o rapper divulgou seu mais novo trabalho, Hasos. O título, uma abreviação em latim da frase “a humildade mata o orgulho” (“H-AS OS”), é tema central do projeto. A ideia, uma vontade sincera de aproximar os fãs de seu íntimo — ou afastá-los de vez, como revelou na fase de divulgação do disco.

A primeira impressão veio com a melancólica “Que eu sofra”, lançada em 7 de novembro. De uma intensidade, a faixa parecia dar continuidade à versão romântica de Baco que protagonizou o estrondoso QVVJFA — não uma persona amorosa, mas poética, densa, que dispara eufemismos para se fazer entender. O que, se eu estiver sendo sincera, gerou certa preocupação com a possibilidade de um lançamento parecido com o que já vimos.

Em uma melodia instrumental, com elementos clássicos e falsetes chorosos de Zeca Veloso, “Que eu sofra” é uma carta aberta para um certo alguém e, mais importante ainda, para a tentativa de entender o dito sofrimento. De onde vem a dor? Por que ela arde? Quando tudo mudou? Era o primeiro toque incerto em uma piscina cristalina da intimidade de Exu do Blues.

O mergulho veio mais tarde, em 18 de novembro, quando Hasos viu a luz do dia. Em 48 minutos, os resultados das experiências feitas no laboratório Fetiche sanaram as dúvidas e eliminaram o medo do “mais do mesmo”. Um trabalho de viagem para dentro, com um fio condutor: a literatura dos mestres Jorge Amado, Ariano Suassuna, Glauber Rocha e Rubem Alves.

Galo de Briga: uma introdução

Baco Exu do Blues nunca conteve a voz para falar de suas dores. Só que, na primeira fase da viagem introspectiva que é o lançamento, o baiano expandiu seu campo semântico com força, transitando entre religião e poesia com indignação e uma justíssima revolta.

Tudo começa desconjuntado, em “Gladiadores de Areia”, como quem se desequilibra do meio fio de uma calçada. O jazz confuso após a bateria introdutória, o teclado ansioso junto dos versos irritados e o fim dissolvido em atabaque apresentam um Baco que atropela, mesmo sem querer atropelar. “Lembre de quem eu carrego no nome” — Exu ou Baco, que assim seja.

A frustração com o mundo à sua volta, com o lobo do próprio homem, continua nesta primeira fase, uma linha de pensamento indigesta e cansada diante de uma realidade pintada com as feições frias de Caravaggio. Crueldade e verdade crua tornam-se autocrítica na coreografia de “Garçom da Ausência”, com Mirella Costa, e “Fugindo do Espelho”.

A fuga, o momento de pausa de quem sai da rotina para visitar a noite, vem com a balada “Romance Latino”. Uma parceria com Teto (que é referência no trap, mas, na casa de Baco, visita outros universos), a faixa tem elementos de ritmos dos anos 1970 e lembra aquele momento da conversa em que se deseja falar apenas de romance, do carnal e do erótico.

Hasos: volte aqui um segundo

Após “Fugindo do Espelho”, uma faixa praticamente transicional, que flui do ódio cuspido para a análise do íntimo, somos convidados à primeira sessão de terapia. Sessão essa que começa de queixo erguido, mão na guia e ponto de encruzilhada. Olhar para frente, entender o que está atrás e seguir com instinto de sobrevivência. “Me manter vivo é minha obrigação.”

Deu Meia Noite” é praticamente um grito de guerra, a preparação para uma batalha dura. Só que Hasos não fala de batalha externa. “Mar de Guerra” lembra que essas lutas são travadas dentro do peito e, com a visita doce de Sued Nunes, apresenta um tipo de dor diferente, conformado, que conhece a verdade por trás de alguns sorrisos.

Pior Que o Mal” faz as pazes com a dura reflexão do interlúdio. Às vezes, nós realmente precisamos ser nossa pior versão. E está tudo bem. Aqui apressados, Baco e Joyce Alane correm por um labirinto, buscando se encontrar. Por cima dos muros, um positivismo tímido, de quem ainda está acordando do pesadelo, mas já consegue ver a luz na janela.

Pai Nosso Que Está No Céu: sim, dói

Catarse. Falar realmente ajuda. A terceira e argumentavelmente mais dolorosa parte do disco chega com uma saudade que não vai embora. Com introdução de Dona Selma do Coco, “Raiva da Morte” é a primeira vez que Baco visita onde realmente rasga: a perda de seu pai. É o momento do processo terapêutico em que percebemos que a cura está na retomada.

Se “só o filho de um rei ruim não teme o trono”, as faixas “Pequeno Príncipe” e “Que eu sofra” culminam na coroação de um herdeiro cheio de cicatrizes, na “força de uma pessoa quebrada”, como o próprio Baco narrou, em entrevista à Rolling Stone Brasil. É o resultado da construção dolorosa de alguém que canta love songs porque nunca teve tempo de ser emotivo.

Baco Exu do Blues explora o caos interno em novo álbum
Baco Exu do Blues explora o caos interno em novo álbum – Crédito: Roncca

Síndrome do Herói: bem-vindo de volta

A terapia do último interlúdio vem como um soco no estômago de quem passou pelo processo de desconstrução das faixas passadas. Desembarcamos, curiosamente, em uma love song, uma melodia que só consigo definir como “música de casamento”, mas não indicando simplicidade. Até porque, com Vanessa da Mata, “simples” não faz nem parte do dicionário.

Assassinos de Saudade” tem choro de violão, tem bateria emocionada, tem crescente e agudo de fazer careta. Caminhamos para a despedida em um forró inesperado, mas muito bem-vindo. “Sertão Sem Flor“, com IVYSON, nos recebe com uma armadilha doce. O ritmo choroso, de sofrência na sanfona, abre espaço para os versos deprimidos de quem viu seu amor secar.

No fim, “Um Pouco” é aquela faixa e ouvir na cama, olhando para o teto, com as lágrimas rolando e a viscosidade da voz de Carol Biazin. É a conclusão depois da terapia, o enfrentamento das ideias e o otimismo animado após muita dor. Narrativamente, é o desfecho que mais faz sentido, após muita análise. Falando de melodia, fecha o álbum com uma escolha óbvia e questionável, principalmente diante dos ritmos visitados mais cedo.

Hasos é dolorido, um convite ao íntimo de Diogo Moncorvo, que apenas empresta o lirismo de Baco Exu do Blues. Tem, é claro, faixas de escutar — com alguns versos pouco explorados, que, devo ser sincera, fogem da intensidade do restante e da expectativa criada por um disco com uma história tão bem construída. Só que também tem faixas de sentir. Sentir profundo, chorar feio, conhecer a si. Não é fácil. Mas Exu do Blues nunca disse que seria.

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Jornalista pela Faculdade Cásper Líbero, apaixona-se pela música todos os dias e escreve para entender os sentimentos. Com passagens pela Revista CLAUDIA, Aventuras na História, UOL e Rolling Stone, hoje é coordenadora de redes do Grupo Perfil.
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