Disco lançado por Gilberto Gil em 1975, Refazenda representa um artista em seu auge
Perto de completar dez anos de carreira fonográfica, Gilberto Gil resolveu recolher-se. Refazenda (1975), gravado depois do ápice criativo e expansivo que foi seu disco com Jorge Ben (Gil Jorge), vai ao extremo oposto da musicalidade do baiano e busca suas raízes sertanejas, as quais ele nunca havia escondido. Gil é tão do samba quanto do forró e, mais do que isso, tanto da cidade grande quanto do interior. Talvez por isso, as justaposições contraditórias defendidas dylanescamente por Caetano Veloso durante a época da Tropicália não se refletem tanto na obra de seu irmão de música.
E com Refazenda, Gil pega carona no neo-arcadismo hippie e volta a um interior tão nostálgico quanto novo. Mais uma vez, o compositor não enxerga os polos opostos como discrepantes, e sim, complementares, e assinala isso desde o neologismo do título. “Refazenda” significa um retorno à fazenda, mas também uma reconstrução de uma nova fazenda, de um novo interior, e ele refaz o percurso que havia feito entre Inglaterra e Brasil em Expresso 2222, três anos antes, para observar com candura e orgulho o interior brasileiro tão caro a sua formação.
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Para isso, Gil conta com uma arma secreta irresistível: a doçura e a sensibilidade do acordeão de Dominguinhos. Refazenda é um disco em que Gil aproveita para mergulhar na cultura sertaneja nordestina, como se para frisar que o tropicalismo só poderia acontecer a partir de suas raízes na região. Só a presença de “Lamento Sertanejo”, uma das maiores canções da música brasileira, faria de Refazenda um disco imprescindível para nossa cultura como para a carreira de seu autor. Mas ela não está sozinha.
Pelo contrário, Refazenda é um daqueles discos que até parecem coletâneas, de tantas músicas perfeitas reunidas em uma única obra. O álbum abre com a suingada “Ela”, que parece remeter ao recente encontro criativo com Jorge Ben, mas logo chama o ouvinte para dentro, mais uma vez com Dominguinhos como o guia, na maravilhosa “Tenho Sede”.
A faixa-título desconstrói palavras para desconstruir conceitos, algo que também persiste na belíssima “Pai e Mãe”, em que Gil conversa abertamente sobre sua sexualidade com seus pais. ”Jeca Total” e “Essa é Pra Tocar no Rádio” assumem o ponto de vista urbano e influências do jazz e do funk do período, mas sem tirar os pés do interior, encerrando o lado A com um dedo discreto na eletricidade, quase ausente do restante do disco.
O lado B é voltado ainda mais para o lado de dentro. Começa com a festiva e melancólica “Ê, Povo, Ê” e continua com a introspecção tropicalista de “Retiros Espirituais”, em que mais uma vez ele cita o luar de Celly Campelo em sua discografia, em uma introspecção em frente à televisão. Depois, vem o rock acústico “O Rouxinol”, composto ao lado de Jorge Mautner, e a imortal “Lamento Sertanejo”, a qual, por si só, já valeria a indicação de Gilberto Gil à cadeira da Academia Brasileira de Letras.
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“Dentro de si mesmo / mesmo que lá fora / fora de si mesmo / mesmo que distante / e assim por diante / de si mesmo, ad infinitum” são os versos que encerram um disco perfeito, na conclusiva e definitiva “Meditação”. “Tudo de si mesmo / mesmo que pra nada / nada pra si mesmo / mesmo porque tudo / sempre acaba sendo / o que era de se esperar.” Refazenda representa um artista em seu auge.
Refazenda (1975) é um dos discos resenhados no Especial 80 Anos de Música, uma edição exclusiva da Rolling Stone Brasildedicada à Geração 1942, que reúne nomes essenciais da MPB, como o próprio Gilberto Gil, Milton Nascimento, Paulinho da Viola e Caetano Veloso, além de um panorama global dos nascidos neste ano. O especial impresso já está nas bancas e nas bancas digitais. Clique aqui para saber mais. Ouça o disco completo abaixo: