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Como Nervos de Aço, de Paulinho da Viola, reuniu grandes músicos em 1973

Composto por sucessos da época, 'Nervos de Aço' marcou a música nacional, promovendo evoluções no samba sem deixar de ser samba

Pedro Só Publicado em 08/02/2023, às 13h00

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Paulinho da Viola (Foto: Divulgação/ Instagram/ @paulinhodaviola)
Paulinho da Viola (Foto: Divulgação/ Instagram/ @paulinhodaviola)

Mito um: Nervos de Aço é um álbum conceitual. Em depoimento a Charles Gavin, no programa Som do Vinil, Paulinho da Viola conta que, se dependesse dele, o disco sequer teria título, como aconteceu com os dois LPs que lançou em 1971. Milton Miranda, diretor da Odeon, foi quem escolheu o nome, pensando nas possibilidades comerciais.

Segundo mito a ser questionado: é um disco triste, como indicam a capa e a maioria das letras, pelo fato de Paulinho estar recém-separado na época de sua produção. Em várias entrevistas, o artista minimizou isso, dizendo que a situação já estava superada durante a feitura do LP.

Triste? Sim, mas nem tanto. “Não Leve a Mal” não se encaixa nessa categoria. É um samba todo para cima, com cuíca roncando desde os primeiros compassos e um cravo (que estava perdido pelos estúdios da Odeon) fazendo as vezes de cavaco. Outra que vai contra isso é “Nega Luzia”, pândega crônica de Wilson Baptista, com a flauta de Copinha e o trombone de Nelsinho achando graça da situação: “a nega recebeu um Nero e queria botar fogo no morro”.

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O trabalho mais cultuado de Paulinho da Viola não é dedicado a nenhum baluarte de escola de samba ou herói esquecido do choro. Tal honra é reservada ao pintor catarinense Walter Wendhausen, “um amigo que sabia dos segredos da nossa alma e sorriria se pudesse nos ouvir falar assim de saudade”. Os dois se conheceram quando Paulinho, moleque, era levado pelo pai, Cesar Faria, aos saraus na casa de Jacob do Bandolim. Adulto, o sambista o reencontraria em reuniões de artistas e intelectuais, típicas da efervescência dos anos 1960, junto de outro amigo e parceiro fundamental, o produtor e poeta Hermínio Bello de Carvalho.

Grande conhecedor de samba e jazz, Walter também atuou como crítico musical. Carismático e culto, foi ele quem apresentou Hermínio e toda uma geração a Noel Rosa, Ismael Silva e outros bambas do Estácio. Como descreve João Máximo em Paulinho da Viola — Sambista e Chorão: “Walter era um comunista que se recusava a pagar o aluguel por achar que o proprietário do apartamento ganhava a vida com o suor do rosto alheio”.

Foi Walter quem profetizou para Hermínio, ao ouvir o jovem Paulo César tocar violão, em uma feijoada, bem antes de sua estreia no musical Rosa de Ouro: “Este garoto vai ser um dos grandes da nossa música”. Cenógrafo, ilustrador e autor de quadros modernos, Walter Wendhausen é o autor da capa do primeiro disco de Paulinho, feito em dupla com Elton Medeiros, Samba na Madrugada (1966). Morreu em 1973.

Nervos de Aço
Capa de 'Nervos de Aço', de Paulinho da Viola (Foto: Divulgação)

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Já a capa de Nervos de Aço é de Elifas Andreato. Um trabalho icônico (maravilha usar essa palavra em seu sentido correto!), mas que acabou contribuindo para colar no disco a pecha de tristonho, melancólico. A imagem de Paulinho, lua cheia ao fundo, com um buquê de flores na mão e “lágrimas de esguicho” na face (na expressão de Nelson Rodrigues), podia ser classificada como hiper-realista — ou kitsch mesmo. Mas o jornalista Luiz Carlos Maciel (1938-2017), diretor da Rolling Stone nacional da fase 1970, definiu melhor: expressionismo caboclo.

Essa conversa é para deixar claro que o Paulinho da Viola de 30 anos que chega a este disco não é um pintor naîf criado e autenticado no morro, nem tampouco um purista envolto em uma bolha de choro, cultor rigoroso das tradições. Ele é um músico e poeta com lastro popular, respeitado desde cedo pelos maiores artesãos do samba de morro (Zé Kéti, Cartola, Candeia), com vivência autêntica em escolas (Portela, Unidos de Jacarepaguá); mas também é um artista engajado nas questões políticas e estéticas de seu tempo (por um ano, ele fez parte de um célula comunista junto do parceiro Capinan). E, claro, é o cara que tinha feito “Sinal Fechado” em 1969.

Nervos de Aço é o álbum de Paulinho que tem mais saídas em direção à MPB — ou expansões do samba, dependendo do referencial. São caminhos para os quais ele só retornaria raramente. Aliás, na época do lançamento, Paulinho declarou ao Jornal do Brasil que a linha de experimentações de “Sinal Fechado” estava encerrada: “Parei de propósito. Achei que o samba como linguagem era muito mais importante”.

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Nervos... fica na história como um ponto raro. Promove evoluções no samba, sem que ele deixe de ser samba. A releitura da faixa-título, de Lupicínio Rodrigues, é modernizante, tanto no canto suave, que valoriza a melodia, quanto no arranjo de piano. E mesmo o samba de terreiro “Não Quero Mais Amar a Ninguém”, de Carlos Cachaça, Cartola e Zé da Zilda, tem sua divisão elegantemente ajeitada de um jeito que virou referência.

A abertura é com “Sentimentos”, joia melódica criada por Mijinha, irmão de Manacéa e Aniceto, da Velha Guarda da Portela. Analfabeto, Mijinha não tocava instrumentos e só cantava suas músicas para mostrar aos irmãos e chegados. Paulinho passa um mel na letra “dura” (“depois daquele dia em que fui sabedor”) e, com o clarinete de Copinha à frente e as pastoras da Velha Guarda na retaguarda, só quebra o tom tradicional com o piano de um jovem músico recém-incorporado a seu grupo.

Cristóvão Bastos, autodidata que começou no acordeão, criado no subúrbio carioca, em Marechal Hermes, ganhou Paulinho de cara, por dialogar com ele em alto nível no idioma do choro, ao mesmo tempo em que mostrava domínio de referências de jazz. Isso aconteceu em janeiro de 1973, quando Paulinho estreou um show na boate Flag, em Copacabana. Paralelamente, Cristóvão desenvolveria um trabalho importantíssimo como um dos fundadores da Banda Black Rio, participando de seu primeiro LP, Maria Fumaça, em 1976. Isso, claro, é outro papo, mas ajuda a contextualizar a visão e a liberdade artística entre os protagonistas de Nervos de Aço.

Paulinho da Viola
Paulinho da Viola em meados de 1970 (Foto: Domínio público/ Acervo Arquivo Nacional)

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No encarte, Paulinho agradece aos “amigos Cristóvão, Copinha (Nicolino Copia, lenda da flauta), Nelsinho (trombonista e maestro) e (maestro Lindolfo) Goya pela complementação dos arranjos do disco através das inúmeras ideias discutidas”. E define: “Esse trabalho é a soma do amor descontraído como se tivéssemos tocado numa reunião informal em nossa casa”.

Nervos de Aço não empolgou os especialistas na época e houve até quem o detonasse. A alta reputação crítica do disco hoje em dia se deve, basicamente, a cinco faixas brilhantemente diferentonas em seus arranjos de talentos sobrepostos de maneira afetuosa.

Sonho de Carnaval”, de Chico Buarque, é relida em samba jazz, meio bossa, clima de piano bar, com um show de Copinha ao final. “Comprimido”, por sua vez, é um exercício buarquiano com dissonâncias e texto cortante na crônica de violência conjugal (“deixou a marca dos dentes dela no braço / pra depois mostrar pro delegado”), que cita (e dialoga com) “Cotidiano”, do próprio Chico.

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Roendo as Unhas”, moto contínuo construído a partir de três acordes, com célula harmônica sem tônica e dominante, é um samba quase cubano, genialmente subversivo e com texto à altura: “Meu samba não se importa / se desapareço”.

Cidade Submersa” é obra-prima em harmonia e arranjo desde a luxuosa introdução, não por acaso uma das favoritas do próprio cantor. Ancorada no piano elétrico, ela se revela também como homenagem a Valzinho, um dos heróis de Paulinho e considerado um dos precursores da bossa, admirado por Radamés Gnattali e Tom Jobim. “Não sei por que, me lembrei de Valzinho”, confessa o autor, ao final da faixa.

No encerramento, uma revolução com cara de contra-revoluçao: “Choro Negro”, em que Paulinho sai do armário para assumir o cavaquinho, bordando a linda melodia acompanhado apenas do piano de Cristóvão. Descortinava-se ali um novo caminho, mais chorão, para o filho de Cesar Faria, violonista do Conjunto Época de Ouro.

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Em outubro de 1973, o show que serviria para lançar Nervos de Aço deu um passo, não para trás, mas para o lado. “Sarau”, com direção de Sérgio Cabral, reformou o Época de Ouro de seu Cesar e, a partir de seu grande sucesso, revitalizou o choro, inspirando uma nova geração de músicos a abraçar o gênero.

Na entrevista do lançamento do álbum, Paulinho elaborou sobre essa guinada com cordas de aço (as do cavaquinho): “Sabe como estou? Numa serenidade incrível. Saquei muitas coisas. Quando você tem consciência, se mexe melhor. Mas minha serenidade não quer dizer que esteja resignado. Acontece que não gosto dessa coisa de desespero. Por isso costumo dizer que minha loucura é mansa”.

Rolling Stone Brasil Especial 80 Anos de Música
Rolling Stone Brasil Especial 80 Anos de Música

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