Lançado em 1970, 'Foi Um Rio Que Passou Em Minha Vida', o segundo álbum de Paulinho, tornou-se uma obra-prima da cultura brasileira
Paulinho da Viola vinha de uma consagradora vitória no Festival da Record, em 1969, com “Sinal Fechado”. “A maior justiça feita em festivais de música no Brasil”, como definiria Zuza Homem de Mello, décadas depois. A música, com arranjo do maestro Gaya (1921-1987) e leitura política do clima dos anos de chumbo, não se parecia com nada que Paulinho da Viola tinha feito antes e foi lançada em um compacto duplo.
Mas “Sinal Fechado” acabou sendo engolida por um de seus lados B: “Foi Um Rio Que Passou Em Minha Vida”, um samba suavemente sincopado em que, de forma natural, as sílabas cantadas por Paulinho antecipam um tantinho o tempo forte. A qualidade da gravação ajudou, captando o ambiente autêntico de uma roda, com direito ao célebre “ai, porém” manhoso de um dos coristas, Jorge (doravante rebatizado como Jorge Porém). Em pouco tempo, o samba de amor à Portela começaria sua jornada rumo ao panteão das obras-primas da cultura popular.
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Sucesso inicialmente no bairro Oswaldo Cruz, no Rio, a canção ajudou Paulinho a superar uma saia justa de suposta traição à escola, imposta pelo lançamento de “Sei Lá, Mangueira”, parceria com Hermínio Bello de Carvalho que Elza Soares defendeu em outro Festival da Record, em 1968. “Foi Um Rio Que Passou Em Minha Vida” acabou escolhida pela Portela para abrir os trabalhos, quando sua delegação foi recebida pelo governador da Guanabara, Negrão de Lima, em homenagem ao título conquistado na avenida, em 1970.
O segundo LP de Paulinho da Viola, que, a essa altura, só poderia se chamar Foi Um Rio Que Passou Em Minha Vida, foi lançado em junho, com críticas entusiasmadas, na base do “a coisa mais séria que se fez em seis meses de música brasileira”. Dois anos depois da estreia solo, e com muito mais moral, Paulinho conseguiu um equilíbrio melhor entre suas concepções musicais e as contribuições do maestro Lindolfo Gaya.
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Com orquestrações menos intrusivas nos arranjos, a abordagem minimalista de algumas faixas gera maravilhas, como a releitura quase bossa nova de “Meu Pecado”, obra-prima do padrinho Zé Kéti, e “Nada De Novo”, pérola da dor de cotovelo esclarecida que até hoje embeleza os setlists de Paulinho.
No clássico igualmente sofrido “Tudo Se Transformou”, o arranjo trilha um caminho do meio entre o pós-bossanovismo e a identidade de Paulinho, que se repete em calibragens oscilantes, seja na faixa de abertura “Para Não Contrariar Você”, seja na última, “Não Quero Você Assim”, que ganha um grand finale orquestral.
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Mas um dos trunfos do LP é a informalidade retratada em faixas como “Jurar Com Lágrimas”, comandada pelo coro e com ambiência sonora de quadra de escola. Em “Estou Marcado”, o gravador capta os acertos de andamento na batucada – “Vai um pouquinho mais ligeiro. Assim não, assim não! Tá demais”.
E não falta uma joia a ser redescoberta, “Papo Furado”, recado malandro de Paulinho sobre os informantes da ditadura que infestavam o meio artístico e as rodas de samba: “Olha, cuidado com esse cara aí, que ele entrega, hein? O cara que tá do seu lado entrega tudo”.
Foi Um Rio Que Passou Em Minha Vida (1970) é um dos discos resenhados no Especial 80 Anos de Música, uma edição exclusiva da Rolling Stone Brasil dedicada à Geração 1942, que reúne nomes essenciais da MPB, como Gilberto Gil, Milton Nascimento, Caetano Veloso e o próprio Paulinho da Viola. Já nas bancas físicas e digitais, o especial ainda traz um panorama global dos artistas nascidos neste período. Clique aqui para saber mais. Ouça o disco completo abaixo:
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