ENTREVISTA

Constelação Astral

Na edição impressa que chegou nas bancas em 13 de dezembro de 2024, Xenia França conversou com a Rolling Stone Brasil sobre a carreira, perspectivas para 2025 e toda complexidade sonora de sua discografia que define como Nova Música Brasileira, narrativas resgatadas pelos protagonistas de suas próprias histórias

Felipe Grutter

Publicado em 12/12/2024, às 10h00
Xenia França estampou a capa da edição de 18 anos da Rolling Stone Brasil (Foto: Higor Bastos)
Xenia França estampou a capa da edição de 18 anos da Rolling Stone Brasil (Foto: Higor Bastos)

Uma música que atravessa um momento potente e bonito, com narrativas contadas pelos sujeitos da história. É assim que Xenia França define, ou elabora, aquilo que descreve melhor, a chamada Nova Música Brasileira. O cacife, ela tem: nascida Xenia Érica Estrela França, a cantora baiana de 38 anos é um dos nomes contemporâneos que mais faz brilhar os olhos de uma indústria que adora olhar para o passado. Foi indicada a três categorias do Grammy Latino e foi vencedora em uma delas, a de Melhor Álbum de Pop Contemporâneo em Língua Portuguesa em 2023 pelo excelente Em Nome da Estrela (2022) – o segundo com seu nome, depois da estreia em Xenia (2017).

“Tenho um jeito de fazer as coisas que é muito particular, é muito meu jeito. Quando eu encontro uma galera com quem eu compartilho das mesmas ideias, como é desde o meu primeiro trabalho, acabo me fechando mesmo nesse mundo para poder tentar colapsar coisas que saiam bem originais”, explica.

Talvez por isso seja percebida de forma hermética por terceiros, como se fosse mais fechada. Tudo  impressão, garante. A própria música, ela conta, trouxe-lhe a possibilidade de estar popularmente na vida das pessoas. Desde o começo da carreira, faz as canções e álbuns de forma única, sem seguir fórmulas internas ou aquilo que é tendência mundo afora.

“Faço música para mim, que me dá na telha e gosto. Demoro, às vezes, para me conectar com algo porque precisa falar comigo em diversos aspectos”, avisou. “Baseado nas influências e escolhas que tenho, acredito que não é uma coisa que chegue tão rápido, mas eu tenho sorte porque muita gente gosta do que faço.”

O que ela define como “sorte”, muitos definiriam como talento desde que pisou em São Paulo, no início dos anos 2000, para atuar como modelo e trabalhar em bares. Não demorou muito para chamar atenção. Um dos principais nomes do rap brasileiro, Emicida, a convidou para cantar em faixas do EP Sua Mina Ouve Meu Rep Tamém (“Volúpia”, primeira gravação que ela fez em estúdio) e do álbum Emicídio (“Isso Não Pode Se Perder” e “Beira de Piscina”).

Emicida conheceu Xenia quando ela ainda cantava em bares de São Paulo, em uma época que já planejava os trabalhos autorais. A conexão entre os dois foi o cineasta Fred Ouro Preto, grande amigo da artista, que trabalhou com o rapper em alguns projetos, como o clipe de “Triunfo” e o documentário Emicida: Amarelo - É Tudo pra Ontem (2020).

Quando Xenia fazia uma passagem de som, nos arredores do centro da capital paulista, Emicida viu e se impressionou. Logo, chegaram os convites para as três gravações, divididas entre o EP e álbum lançados em 2010. No ano seguinte, chegou o momento de iniciar outra etapa na carreira.

Como integrante da Aláfia, que formou com Pipo Pegoraro e Lucas Cirillo, no começo dos anos 2010, Xenia França encabeçou um projeto musical muito ligado e enraizado nas sonoridades de matriz afro-brasileira e africana – começando ali, a definir sua cosmologia musical.

Xenia França na capa da Rolling Stone Brasil
Xenia França na capa da Rolling Stone Brasil (Foto: Higor Bastos)

Bagagem da alma

Se o pragmatismo de viver sob suas regras define seu modus operandi, Xenia garante que atua em um âmbito de espiritualidade com o próprio trabalho. Muito inspirada no imaterial e no zodíaco, ela diz que “dedicar, ou mesmo citar seres, entidades, enfim... é uma coisa muito natural porque faz parte do meu cotidiano e da minha vida”.

A artista gosta de associar, relacionar e descobrir os pontos de intersecção entre narrativas budistas, candomblé, entidades, linguagens e sabedorias. “Espiritualidade é um assunto muito estimado para mim, eu não uso isso como um panfleto ou uma caricatura, eu não fico falando da minha espiritualidade por aí, porque é algo que faz parte da minha intimidade e coloco o trabalho como uma forma de levar para frente um legado, especificamente, que faz parte da minha narrativa e traz muita força para quem eu sou”, disse.

Xenia França nunca utilizou este aspecto de maneira leviana, mas busca trazê-lo em um lugar de exaltação, tanto do espírito quanto da cultura, porque é uma tecnologia. Sim, uma tecnologia. “Música é uma expressão oral. Então a oralidade é uma das tecnologias mais antigas do mundo. Civilizações e contextos que nunca escreveram nada passaram saberes muito importantes por meio da fala, músicas e cânticos.”

Um grande exemplo disso na arte dela acontece no primeiro interlúdio de Em Nome da Estrela, intitulado “Cantiga da Nação Jêje, por Mãe Menininha (1940-1941)”. A faixa harmonizou uma cantoria de Mãe Menininha do Gantois, gravada por um estrangeiro que levou um gravador de som para o Brasil. Ou seja, esta foi uma maneira de honrar a memória e fazê-la continuar indo para frente.

“A maioria dos meus colegas de trabalho, dessa Nova Música Brasileira, dedicam-se a fazer
com que a sonoridade e as culturas afro-brasileiras estejam inseridas nos trabalhos musicais para que isso seja um legado em movimento. [...] Toca muito fundo ao meu coração e eu faço questão de expressar da melhor forma do jeito mais humilde e honesto que eu consigo.”

A hora da estrela

Foi a busca pela honestidade artística que a moveu nos anos seguintes ao Aláfia, o grupo com Pipo e Cirillo, quando França realmente encontrou o norte em seu trabalho solo. Em setembro de 2017, veio Xenia, pelo qual logo foi reconhecida em duas categorias do Grammy Latino: Melhor Álbum Pop Contemporâneo (perdeu para Noturno, de Anaadi) e Melhor Canção em Língua Portuguesa (perdeu para “Caravanas”, de Chico Buarque).

Os meses seguintes também foram positivos para a cantora, que se apresentou no South by Southwest, ou SxSW, importante festival de música, cinema, tecnologia e mídia interativa realizado anualmente no Texas, nos Estados Unidos; fez show em um grande teatro de Bogotá, capital da Colômbia, e países da Europa; e foi a primeira brasileira a gravar para COLORS, plataforma de música com estética única que apresenta talentos excepcionais de todo o mundo. Isso só para citar alguns exemplos.

O ano de 2019 ainda foi marcante, com presença em evento de Bill Gates, ex-diretor executivo da Microsoft, e participação no show de Seal no Rock in Rio 2019. “Então várias coisas foram acontecendo em sequência e me levando para esse lugar.”

A ascensão meteórica de Xenia acabou perdendo o brilho quando ela precisou interromper, junto com todo o mundo, o que vinha fazendo. Era 2020 e a pandemia colocou em suspenso o que parecia um caminho único. Com a retomada da indústria, a cantora precisou passar por uma espécie de recomeço.

Recomeço, sim; oportunidade também: foi reunindo a introspecção do período de dúvida que ela imprimiu no Em Nome da Estrela um lado mais vulnerável e honesto de sua própria espiritualidade. Com participações de Rico Dalasam e Arthur Verocai, o álbum retoma a parceria com Pipo Pegoraro, que assume a produção ao lado de Lourenço Rebetez.

Cura, renascimento, a busca pelo sentido da vida, entre a ancestralidade e o futuro são temas que ganham visibilidade na voz, agora ainda mais madura, da artista. Foi o ponto de partida para o reconhecimento e vitória no Grammy Latino 2023, quando ela retoma a trajetória ascendente.

Nas duas edições da premiação em que recebeu nomeações, França ficou surpresa com o
reconhecimento, mas tem a consciência de que foi um acontecimento justo, visto o comprometimento e excelência artística presentes na discografia. “Acredito que esse reconhecimento não é gratuito, faz parte desse panorama de justiças em ser uma artista e poder exercer a minha arte”, comemorou.

“Sabendo desde o princípio das limitações que eu tinha para poder fazer o trabalho que eu precisava fazer, consegui concretizá-lo com louvor. Chegar nesse nível internacional de reconhecimento é uma coisa muito especial e me deixa muito grata, feliz e com vontade de fazer mais coisas.”

Meu próximo trabalho não tem a ver com ter ganho um prêmio, tem a ver com me superar enquanto artista.

Todo esse sucesso em importantes premiações não impacta ou inflige a artista, que não gosta de se apegar a nada, no estúdio. Segundo a própria, um prêmio é um resultado, como se você estudasse muito para uma prova ou vestibular e fosse aprovado. Apesar de serem acontecimentos maravilhosos, ela não se prende.

“Nesse aspecto já não tem nada a ver mais com arte. Um resultado é algo que o que está fora te dá, mas o que vem de dentro é o que vem de dentro”, comentou. “São os meus anseios artísticos, para onde quero transpor minhas meditações. Meu próximo trabalho não tem a ver com ter ganho um prêmio, tem a ver com querer fazer outro trabalho, dar continuidade e me superar enquanto artista.”

Claro, essas vitórias trazem um status para os envolvidos, mas Xenia França não faz disco para concorrer e ganhar prêmios. Na opinião dela, a música tem um papel de serviço, considerado como uma dádiva para a vida e carreira.

“Eu faço isso para embelezar o mundo, entendeu? Faço disco para dar sentido à minha vida, colocar minhas potências em movimento, inspirar-me e tentar me mimetizar ao mínimo das belezas que têm nesse mundo e para fazer as pessoas felizes.”

Responsável por um dos repertórios mais únicos e interessantes da música brasileira contemporânea, ela não se limita a apenas um gênero musical. A Nova Música Brasileira é só mais um nome para sua criação que explora Soul, Neo Soul, R&B, MPB e Jazz. O processo criativo dela acontece no estúdio, o grande filtro de sua subjetividade.

Ela enxerga o local de gravação como um laboratório de alquimista, onde entra e deixa a música falar por si. Com os músicos de apoio e produtores, mistura as referências para criar camadas e mais camadas complexas. Nadando sempre contra a maré, a cantora tem um processo que pode ser descrito como “experimento”. Xenia sempre prefere o “isso aqui, sim”, ao “isso aqui, não”.

“Sempre me esquivei muito dessas perguntas de ‘qual seu gênero musical?’ Cara, eu não sei! Ainda experimento, então agora posso ir para onde quiser, porque não tem nada definido e fechado. Coloquei nenhuma caixa”, admite.

Outra prioridade no estúdio é a gravação da maioria dos instrumentos. Defensora da potência das coisas que são feitas de forma analógica, Xenia França usa o mínimo possível de softwares que  simulam instrumentos, seja baixo, bateria, guitarra, entre outros, além de se dedicar a escolher a harmonia: “Gosto de me dedicar, dar o meu máximo, colocar toda a minha energia e lançar aquilo. Isso dá um puta trabalho.”

Já tem mais de dois anos que a artista lançou o segundo disco de estúdio, mas ela já se prepara para um novo trabalho em 2025. O terceiro álbum virá carregado de uma grande bagagem, montada com  grandes feitos em 2024, como primeiro show no Japão; lançamento de “Lua Soberana,” música-tema da novela Renascer cantada com Luedji Luna; participação em dois discos vencedores do Grammy Latino
2024 (Se Meu Peito Fosse Mundo, de Jota.pê, e Erasmo Esteves, álbum póstumo de Erasmo Carlos); retomada breve do grupo Ayabass, formado com Luna e Larissa Luz; “Place of Worship”, canção em colaboração com cantor e compositor estadunidense José James; o show em homenagem a Michael Jackson pela Rolling Stone Sessions; entre outros.

O ano de 2025 promete a abertura de uma nova era na carreira de Xenia, que planeja focar no desenvolvimento daquele que se tornará o terceiro disco de estúdio, o encerramento desta aclamada trilogia mostrada ao longo desses últimos sete anos. Muito dedicada à estrada, quer se focar na composição.

“Acredito que eu vá colaborar com mais gente do que nunca, porque eu sempre trabalhei de modo muito mais fechado”, adiantou. “Estou numa fase de pesquisa mais intensa, finalizando o ano estudando sobre o que será o disco.” Estudo esse que está alinhado com valores pessoais e espirituais de França. O trabalho dela é uma maneira de expressar a evolução, crenças, experiências e “como o
mundo tem me impactado e como eu tenho impactado o mundo”.

Xenia quer mostrar as próprias subjetividades, como ela é enquanto pessoa e o amadurecimento como mulher e artista. Esses projetos fora da discografia, com formatos e músicas diferentes, vieram com intuito de “me experimentar para me ver de outra forma.”

“Esse é sempre o objetivo, sempre escapar daquilo que imagino que já estou, que eu já fiz. Então, eu acredito muito nesse respeito bem espiritual com a minha arte e com a arte de modo geral. Acredito que essa é a tônica do que eu já fiz até agora. Tempo e respeito à arte.”

Uma Estrela de nascença, Xenia promete conquistar cada vez mais espaços para sua arte - uma Nova Música Brasileira ou uma música brasileira nova e com universos inexplorados.

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