Caranaval eu chego lá (2024) revisita a obra do sambista e conta com participações de Vandal, Céu, Josyara e Alice e Danilo Caymmi
O cantor e compositor baiano Giovani Cidreira lançou no último mês o álbum Carnaval eu chego lá (2024), o primeiro em sua discografia que não conta com suas composições, mas traz ao longo de 11 faixas, canções de um conterrâneo, o sambista Ederaldo Gentil, falecido em 2012
O primeiro contato de Giovani com a música de Gentil se deu na adolescência por intermédio de um amigo e parceiro de composição. "Um grande amigo meu de Salvador chamado Paulo Diniz, o Paulinho," relembra em conversa com a Rolling Stone Brasil. "O pai dele também era um compositor, o Paulo Diniz, da Bahia. Ele me trouxe umas fitas, uns CDs, com coisas que o pai dele tinha gravado e composto para alguns artistas, como Jair Rodrigues, Gal Costa, Wilson Simonal. E aí ei ouvi uma versão de Ederaldo Gentil da música 'O Rei'."
A faixa impressionou o jovem pelas características do samba. "Não é o samba chula de Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo da Bahia, mas traz essa coisa do candomblé no samba muito forte," explica. A faixa foi a porta de entrada para que o artista mergulhasse na obra do sambista. Na mesma época, acompanhado dos amigos, Giovani frequentava os sambas da cidade de Salvador.
Íamos para todos os sambas, pelo pai do Paulo ser parte daquele núcleo, os sambistas já conheciam ele e começavam a contar a história de Ederaldo e eu fui descobrindo esse universo do samba da Bahia assim na adolescência.
O tempo passou, Giovani lança seu primeiro álbum — Japanese Food (2017) — com outras referências e a relação com a arte de Ederaldo passa a ser de "idas e vindas." O contato mais frequente retorna quando o músico, pesquisador e sobrinho de Ederaldo, Luisão Pereira, lança uma coletânea com a obra do sambista.
"Eu descobri outro estilo de Ederaldo que eu não sabia que existia, porque ele tinha várias facetas também," explica. O empurrão para o trabalho em torno da obra de Gentil veio a partir de uma sugestão da diretora artística Renata Gatha. "Numa época que eu estava meio em crise com a composição ela falou pra mim 'Gio, a gente vai gravar um disco sobre Ederaldo Gentil.' Eu falei 'C***lho, por que eu nunca pensei nisso?'"
O músico adianta que, além do disco, eles trabalham também em um documentário sobre o artista. "Fomos recentemente a Salvador, entrevistamos alguns amigos, pessoas da família e foi muito bonito, muito forte. Quem vai dirigir esse filme é Safira Moreira."
Apesar de já ter feito covers de algumas músicas de Ederaldo como "Provinciano" e "Identidade," o processo de seleção de repertório teve outras camadas. "A minha grande coisa com a releitura é eu internalizar a música de tal maneira, que ela não é mais de ninguém. É minha música. Eu tenho que sentir isso. E eu lembro que a primeira música que eu senti assim foi 'O Samba e Você', estava em casa, comecei a cantar em outro andamento e falei 'Pronto, temos a primeira música do disco.'"
A partir disso, Giovani partiu por um caminho mais pessoal, escolhendo as músicas que mais gostava e contou com a ajuda de Filipe Castro — seu primo, e que atuou como produtor musical ao lado de Mahal Pita. Os dois também assinam a direção musical do projeto com o cantor. "Ele começou a direcionar os gêneros das músicas. Por exemplo, 'Rose,' que é muito mais alegre e dançante na versão original, ele falou pra mim 'Gio, vamos fazer um Roberto Carlos nessa música.' Se você ouvir a música 'Se eu partir' do Roberto, você vai ver que parece bastante."
"Provinciano" também foi um caso que ganhou uma releitura com uma nova roupagem. Na versão de Giovani, a faixa ganha a sonoridade da zabumba e do triângulo. Outra canção, "Feira do Rolo," ganhou uma nova perspectiva com Mahal. "Ele me fez entender que tínhamos que falar as coisas profundas, mas estamos contando a história de um cara que parece com muita gente que conhecemos hoje no meio artístico. Uma pessoa de periferia, preta, atravessada por vários problemas. E queríamos contar também os nossos louros."
Fazer de maneira que a gente consiga contar a história com força com afirmação. Porque é muito bom para as pessoas me ouvirem cantar uma música dizendo que eu sou um pequenino, o último dos plebeus. Mahal me propôs que a gente fizesse coisas mais solares.
Giovani diz que o disco o salvou da depressão e durante o processo passou a malhar, se alimentar melhor e fazer análise. "Comecei a ouvir muito samba e outras coisas que nos levam a lugares de energia mais edificante. Foi isso que aconteceu com o repertório."
Não se faz carnaval sozinho e Giovani sabe muito bem disso. Além do time que trabalhou com ele na produção, o artista trouxe participações de grandes nomes para colaborar nas faixas. Ele classifica os convidados como essenciais.
É o caso de Vandal. Ele conta que ele e Gatha ouviam muito o trabalho do rapper enquanto trabalhavam no projeto, ficou evidente para eles que o rapper precisava estar no disco. "Há uma coincidência geográfica da vida deles. O Vandal cresceu na Cidade Nova — eu também — e hoje ele mora na Vila Laura. Ederaldo, por sua vez, morou e cantou a Cidade Nova e os lugares que ele transitou, são lugares que Vandal transita também. Há uma singularidade em relação à postura deles também. São trabalhos muito comprometidos com a verdade. Não me parece ser artistas que fazem certas concessões que algumas pessoas fazem para estar em certos lugares. Eu também não faço."
Josyara, parceira de longa data do cantor, entra no projeto para fazer um novo arranjo para "O Rei" Giovani, que considera a versão original "irretocável," sabia que ela era a artista certa para trazer uma nova roupagem para o álbum.
A paulistana Céu também participa do disco. O cantor é fã de seu trabalho e exatamente por isso pensava que ela não aceitaria o convite. "Ficamos protelando até o fim da gravação e aí, ouvindo a música em casa, eu ouvia a voz dela, aquela coisa rouca. Aí pensei 'não é que é Céu mesmo?' e mandei uma mensagem pra ela. Ela respondeu rapidamente. Ela estava em São Paulo e eu em Salvador, não conseguimos nos encontrar na gravação, mas deu tudo certo. Fiquei muito feliz."
Tem pessoas que gravam com a gente e vão embora. Nunca mais se vê, nunca mais se fala. A música não é pra isso. Céu não fez isso. Ela tem contato comigo até hoje, me pergunta 'como está o disco? Como está você?' e agora a gente está junto com certeza pra mó cara.
Quando a ideia do álbum surgiu, o cantor morava com Filipe, Gatha e Alice Caymmi. "Naturalmente, ouvindo as músicas, ela quis cantar 'Rose' e o pai dela, o Danilo, sempre ia lá em casa," relembra. "Eram noites de conversa e revolução e eu me identifico muito com ele. E eu acho que ele gosta de mim também, porque eu chamei ele pra cantar e ele ficou muito empolgado." Também participaram do disco Léo Mendes, tocando violão, Antônio Neto e Marcelo Cabral.
Para Giovani, "celebrar um nome como Ederaldo é entender que estamos contando uma história nossa" e perpetuar essa obra tem a ver também com justiça. Levar adiante o nome de um artista como ele é nos lembrar do valor que há de mais precioso na nossa música. Nós concordamos.