Kendrick e Tupac: uma mesma glória, caminhos diferentes
Como o rapper escolheu a caneta às armas para celebrar sua melhor versão, em ‘GNX’
Lucas Cirillo (@cirigaita)
GNX, álbum mais recente da carreira de Kendrick Lamar, vem ao Brasil com tour em uma apresentação exclusiva em São Paulo. Porém, há algumas coisas que gostaria aqui de recapitular sobre sua carreira, especialmente o antecessor de GNX, Mr. Morale & the Big Steppers, peça chave para entendermos a nova fase de K-dot.
Kendrick vêm de um álbum denso para um mais radiofônico. E tem seguido nessa toada desde seu segundo trabalho de carreira, Good Kid, M.A.A.D City (2012). Um disco para os que gostam de mergulhar fundo nas complexidades sonoras e líricas e outro para ampliar o público. Mas se engana quem pensa que há pontos sem nó em sua carreira ou que seus hits não contêm complexidade. Estamos falando aqui de um dos artistas mais criativos, consistentes e relevantes do milênio.
No meu trabalho como produtor e mentor de artistas que estão buscando a originalidade em suas obras, constantemente me apoio na obra de Kendrick, seja para conceber um álbum de MPB, jazz ou música urbana, pois há uma habilidade ali de aplicação universal que é construir narrativas muito bem amarradas dentro de conceitos profundos. O mais complexo é que quanto mais sua obra cresce, maior fica seu arco narrativo e a possibilidade de seu autorreferenciar; seja para se contradizer ou reafirmar ideias.
Para não me estender muito então nesse complexo arco narrativo, vou apenas fazer um panorama sobre o álbum que antecede GNX, seu lançamento mais recente, pois acredito que nele há certas rupturas que foram estabelecidas e que contam sobre um novo Kendrick, como veremos.
Mr. Morale & the Big Steppers é o álbum que marca seu jejum criativo de cinco anos sem lançar nada e também é a busca por cura, acentuada por reflexões a partir de um autoisolamento durante a pandemia. Sem dúvida, o disco mais vulnerável de Kendrick, pois nele somos convidados a ir a fundo, na origem de seus traumas, causados mormente por um ambiente hostil e violento que irá impactar diretamente em sua masculinidade. Um álbum para revelar e remover as máscaras que veste a sociedade.
Em uma sessão de terapia extremamente bem urdida musicalmente, descobrimos detalhes íntimos que tornam Kendrick longe da figura do Salvador que fora nele projetado, durante os protestos do Black Lives Matter, em 2021, entoando sua música “Alright”, como hino. Kendrick nega e diz “he’s not your savior” (“ele não é seu salvador”) em “Savior”, bem como pede para não contarem com ele em “Count Me Out”. Um anti-herói que se apresenta pela primeira vez como alguém que sofre de certa compulsão sexual, precisando curá-la antes que destrua sua família. A capa do álbum manifesta tudo isso. Como eu disse, não há ponto sem nó: Kendrick, com sua família, está em um refúgio, cujas paredes internas estão desgastadas; de costas, ele segura sua filha, Uzi, no colo; sua mulher, Whitney, nina seu outro filho, Enoch, sentada em uma cama de casal. Na cintura de Kendrick, um revólver. Na cabeça, uma coroa de espinhos feita de diamantes. Essa mesma intensidade de códigos e símbolos permeiam o álbum todo. Um disco tão duro quanto enfrentar os traumas mais profundos, enraizados num episódio de um abuso sofrido por sua mãe, testemunhado por ele aos cinco anos, e que nos é relatado em “Mother I Sober”.
Todo esse preâmbulo é fundamental para entendermos como Kendrick na faixa “Gloria”, de GNX, escolheu revelar para o mundo sua arma, através de uma carta aberta à sua companheira e confidente: a caneta. Na faixa, ouvimos a conversa íntima entre o escritor e ela, personificada e interpretada pela cantora SZA.
Essa relação de amor, também se estabelecia há quase 30 anos, em 1996, quando Tupac Shakur lançava a faixa “Me and My Girlfriend” (“Eu e Minha Namorada”, na tradução livre), onde conta sua relação com sua namorada, só que aqui objetificada na figura de uma arma. A faixa, muito provavelmente, foi inspirada em outra faixa, “I Gave You Power” (“Eu Te Dei Poder”), de Nas, na qual ouvimos também a personificação de uma arma, contando em primeira pessoa sua perspectiva sobre o crime. Há um verso em “Gloria” onde Kendrick cita a música de Nas e acrescenta outras dádivas oriundas, a arma-caneta: “I gave you life” (“te dei vida”), “I gave you power” (“te dei poder”), “I gave you hustle” (“te dei a força de lutar”).
Kendrick poderia ter ido para o crime, ambiente que permeou sua infância e adolescência, como nos é narrado no álbum Good Kid, M.A.A.D City, mas escolheu seguir outro caminho, não se associando a nenhuma gangue, não pegando em armas. Diferentemente de Tupac, sua maior inspiração possivelmente, e que teve seu fim trágico, assassinado no mesmo ano de 1996, ironicamente profetizado na frase “tell me why this bloody end, me and my girlfriend” (“me conte o porquê desse fim sangrento. Eu e minha namorada”).
Ouço “Gloria”, de Kendrick, como o estabelecimento de um homem que escolhe baixar as armas simbólicas de uma masculinidade viril, incentivada pela trajetória de vida em um ambiente violento e também uma continuidade do movimento feito, desde o dia que começou a escrever para tentar organizar os sentimentos que o atravessavam e que está acentuada, documentada, emocionalmente explícita e trabalhada no álbum Mr. Morale, onde o epicentro dessa narrativa nos é trazido no álbum com a seguinte passagem:
You did it, I’m proud of you
You broke a generational curse
Você conseguiu, Estou orgulhosa de você
Você quebrou uma maldição geracional
Ao escolher mostrar para o mundo sua verdadeira arma, a palavra, Kendrick, rompe uma maldição geracional, não escolhida nem cultivada por seus ídolos, inspirações e fundadores do movimento hip hop, pois esses, assim como a cultura que representam, são o oposto a isso: um ponto de salvação frente a um sistema racista, opressor e obsessor. E essa é a maldição que devemos extinguir.
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